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Construções
esquecidas de Niemeyer e Ramos de Azevedo, no centro de SP,
recebem galeria de arte africana e nova residência artística,
ponte com Luanda
No volume máximo, o pagode
grita nos alto-falantes das lojas. No chão em frente
ao prédio, alguns sem-teto tentam dormir. Mas bem pouco
do som nervoso do centro vaza para dentro do mais novo cubo
branco de São Paulo, a imaculada Soso Arte Contemporânea
Africana, galeria que será inaugurada amanhã
no segundo andar do edifício Seguradoras.
Foi neste prédio quase esquecido de Oscar Niemeyer,
na avenida São João, a alguns metros do vale
do Anhangabaú, que se instalou a primeira galeria de
arte africana do país.
"Mesmo que haja gente dormindo na rua, há segurança
aqui", diz Mário de Almeida, empresário
hoteleiro angolano, dono da Soso. "Este é o centro
de uma das maiores cidades do mundo, e o centro de uma das
maiores metrópoles do mundo não pode ser decadente."
Deslumbrado, Almeida conta à Folha que decidiu comprar
o segundo andar do Seguradoras quando soube que era um projeto
de Niemeyer, pelo qual diz ter pago R$ 300 mil. Desembolsou
mais R$ 1,5 milhão para comprar o antigo Hotel Central,
projeto de Ramos de Azevedo, do outro lado do calçadão
da avenida São João.
"As pessoas querem prédios com assinatura",
afirma o secretário municipal da Cultura, Carlos Augusto
Calil, que está tocando agora um projeto de revitalização
da área, a chamada "praça das artes",
orçado em R$ 100 milhões. "Essas iniciativas
espontâneas de empresários nos sinalizam que
há uma demanda de parte da sociedade por prédios
de qualidade."
Cada um dos 40 quartos do antigo hotel de Ramos de Azevedo
vai receber artistas africanos para residências a partir
de agora, sendo que em maio cada apartamento abrigará
uma instalação, parte de uma grande mostra que
integra o calendário da próxima Trienal de Luanda,
marcada para 2010.
A reforma do hotel, que deve ser concluída em 2011,
está orçada por Almeida em cerca de R$ 11,6
milhões -valor que deve vir do próprio bolso,
mas terá parte captada por leis de incentivo e créditos
do BNDES.
"Eu já fiz isso em Angola, investir numa área
decadente, que depois vira motor do desenvolvimento",
diz Almeida. "Eu tenho um complexo em Luanda que era
uma construção do século 18, um armazém
destelhado, que hoje virou um grande espaço de lazer."
Almeida, casado com a filha do cantor Djavan, não descarta
também a possibilidade de sua atual residência
artística virar hotel de luxo no futuro, algo na linha
dos "concept hotels" que pipocam pelo mundo, sendo
que "cada quarto será uma possível instalação
de arte".
Artista como epicentro
No lado artístico da jogada, Almeida também
não faz feio. Tem o apoio do artista e curador angolano
Fernando Alvim, responsável pelo primeiro pavilhão
africano na Bienal de Veneza, em 2007, e também mentor
da Trienal de Luanda.
"Venho de uma situação particular em Angola,
em que artistas têm de ser curadores, críticos
e galeristas ao mesmo tempo, porque não temos os sistemas
da arte", conta Alvim. "Por isso consideramos o
artista o epicentro de um fenômeno cultural e criamos
um movimento cultural para tentar legitimar a arte africana."
Alvim é também vice-presidente da Fundação
Sindika Dokolo, por trás da maior coleção
de arte contemporânea africana do mundo, com mais de
3.000 peças, e em parte responsável pelos gastos
dos artistas angolanos que participam da nova residência
paulistana, grande aposta da fundação.
"É importante uma galeria que mostra um pouco
da África, mas com uma versão da história
contada por nós mesmos", diz Alvim. "Queremos
o comando da nossa própria história, já
que ninguém sabe mais disso do que nós mesmos."
São Paulo acaba surgindo então como vitrine
da produção contemporânea africana e contraponto
a Veneza, que, nas palavras de Alvim, "já morreu".
"No pavilhão africano, pusemos líderes
políticos que lutaram pelo fim do preconceito, porque
achamos que Veneza era preconceituosa", afirma Alvim.
"Foram 112 anos sem arte africana, e ainda fomos submetidos
a um júri mais incompetente do que nós. Não
é preciso passar por Veneza para fazer arte contemporânea."
Silas Martí
Folha de S. Paulo
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