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ensino
05/08/2004
Publicação analisa relação dos povos indígenas com a educação no Brasil

Há mais de 500 anos, logo após a chegada de Cabral ao Brasil, viviam por aqui cerca de 10 milhões de índios, que falavam mais de 1.200 línguas diferentes. Hoje, embora tenha se registrado crescimento da população indígena nos últimos anos, vários povos estão correndo o risco de extinção, principalmente as pequenas tribos. Mais de 50% do total das comunidades indígenas têm população inferior a 500 habitantes.

Atualmente, a população indígena está calculada em apenas 550 mil pessoas. Sobraram menos de 180 línguas, sendo que somente 40 mil pessoas as dominam. A grande parte dos grupos é monolíngüe. Entretanto, a maioria fala também o português, considerado a língua dos assuntos oficiais. Já as línguas indígenas são, em maior ou menor grau, consideradas como "gírias", "dialetos", "sem gramática".

A imposição da educação e dos modelos pedagógicos dos colonizadores portugueses podem explicar esse processo de extinção da língua indígena, que, muitas vezes, é considerada sem utilidade pelas próprias comunidades. Neste contexto, os novos modelos propostos para a educação indígena, baseado na valorização e respeito à cultura e aos costumes dos povos, surgem como reivindicação dos índios que querem fazer da educação não mais um modelo de imposição, mas de crescimento e desenvolvimento.

A legislação a respeito do assunto avançou, mas, na prática, as escolas indígenas estão ainda longe de tornarem espaços efetivos para a promoção da diversidade, com a qualidade devida para se garantir uma educação diferenciada. "Antes, a sociedade negava a cultura, as línguas e o direito dos índios e, hoje, isso passa a ser reconhecido e valorizado. É uma mudança qualitativa. Mas avançamos mais no papel do que na ação. As políticas muitas vezes são elaboradas, mas não há recursos para concretizá-las ou não são aplicadas em todas as escolas indígenas. Falta vontade política", afirma, em entrevista ao portal setor3, o antropólogo Luís Donisete Grupioni, do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da Universidade de São Paulo (USP), e um dos autores do livro "Educação Escolar Indígena em Terra Brasilis, Tempo de Novo Descobrimento", lançado no final de julho, em Porto Alegre (RS).

A publicação foi produzida pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e as entidades parceiras do Grupo de Referência do Observatório da Cidadania, base brasileira da rede Social Watch, com apoio da Fundação Ford e da Novib, e procura discutir e analisar a relação dos povos indígenas com a escola, quais suas conquistas, perdas e mudanças.

Atualmente, de acordo com o Censo Escolar 2003, realizado pelo Instituto de Pesquisas Educacionais (Inep) do Ministério da Educação (MEC), há no país 2.079 escolas indígenas, com cerca de 147 mil estudantes. A maioria (91%) está no ensino fundamental e concentrada nas primeiras séries. Mais 61,9% das escolas estão na região Norte do país. De todas as escolas, 1.059 estão vinculadas às secretarias municipais de educação e 993 às secretarias estaduais. Há ainda outras ligadas a projetos especiais e três pertencem ao governo federal.

José Ribamar Bessa Freire, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e da UNI-Rio e também autor do livro, destaca na publicação que a escola é algo recente na história destes povos, trazida pelos jesuítas, na segunda metade do século XVI. Antes disso, segundo ele, a reprodução dos conhecimentos era realizada por outros meios. A educação se baseava no "valor da tradição oral", "o valor da ação", levando pessoas adultas a envolverem crianças e adolescentes em suas atividades e "o valor do exemplo". Toda a transmissão de saberes era feita no intercâmbio cotidiano, com o princípio de "todos educam todos".

Com a chegada dos portugueses, as primeiras escolas para indígenas – e não de
indígenas – ignoraram as instituições educativas dos índios, tendo como objetivo desarticular a identidade das etnias, discriminando suas línguas e culturas. Isso porque os portugueses consideravam que as instituições e os fundamentos filosóficos do sistema educacional europeu eram "universais" e deviam ser incorporados. Desta forma, os saberes indígenas, os processos próprios de aprendizagem, as concepções pedagógicas de cada grupo ficaram excluídos da sala de aula. A função da escola era fazer com que estudantes indígenas desaprendessem suas culturas.

Luís Donisete Grupioni aponta no livro que a história brasileira sempre colocou os povos indígenas como um problema, criando políticas para que deixassem de ser o que eram. Uma das estratégias utilizadas, destaca Luís Donisete, foi a criação de internatos indígenas com o intuito de promover a educação formal das crianças. No local, as crianças eram proibidas de se comunicar em suas línguas, obrigadas a aprender o português e introduzidas ao aprendizado de uma série de ofícios.

Tupinambá
A língua geral – cuja base era o tupinambá – foi usada inicialmente na escola e na catequese até meado do século XVIII. A partir de então, o uso do português na escola se tornou obrigatório. O choque cultural trouxe conseqüências trágicas para as sociedades indígenas e suas culturas.

Durante o período colonial, analisa o professor José Ribamar, foram realizados alguns levantamentos para saber o quanto as escolas estavam desempenhando bem o seu papel. De acordo com um estudo feito pelo padre Luiz da Grã, no século XVI, sobre o destino da primeira turma de estudantes dos jesuítas, dizia que "os alunos andavam fugidos pelo mato". O poeta Antônio Gonçalves Dias também realizou uma pesquisa, quando foi nomeado, em 1861, pelo presidente da Província do Amazonas, para o cargo de visitador das "Escolas Públicas de Primeiras Letras de suas Freguesias".

O visitador encontrou vários problemas, como a precária formação dos docentes, falta de infra-estrutura, evasão escolar, além da dificuldade destes modelos frente aos padrões de povoamento na Amazônia. Na ocasião, o pesquisador verificou ainda que o sistema de ensino não funcionava porque o português ensinado não era a língua falada pelas comunidades locais. Dez anos depois, a situação em outras localidades, como Pará, Mato Grosso e Goiás, também não eram diferentes.

José Ribamar aponta no seu texto que, nos séculos XIX e XX, a escola destinada aos povos indígenas continuou com a missão colonizadora e "civilizadora" que lhe fora atribuída pela Coroa Portuguesa. Segundo o professor, algumas leis, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB/Lei 4.024/61) e, dez anos depois, a reforma proporcionada pela Lei 5.692/71, acabaram conservando e consolidando as políticas educativas do período colonial, taxando o índio como uma "categoria transitória, fadada à extinção".

De acordo com os autores, a mudança significativa na política de educação indígena ocorreu com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que reconheceu aos povos indígenas o direito à diferença. Passou a ser dever do Estado o oferecimento de uma educação escolar bilíngüe e intercultural, que fortalecesse as práticas socioculturais e a língua materna de cada comunidade.

As leis subseqüentes ampliaram e detalharam a questão indígena, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394) e o Plano Nacional de Educação (Lei 10.172). Elas apontam o direito dos povos indígenas a uma educação diferenciada, com a valorização dos conhecimentos e saberes milenares desses povos e pela formação profissional indígena para a atuação docente em suas aldeias.

Luís Donisete ressalta na publicação que a educação escolar em terras indígenas é um espaço em que estes povos têm buscado o exercício de uma nova cidadania, resgatando valores, práticas e histórias. Segundo ele, novos modelos de escola indígena estão surgindo, pautados por paradigmas de respeito ao pluralismo cultural e de valorização das identidades étnicas.

O depoimento da professora Francisca Novantino, da cidade de Pareci de Mato Grosso, ressalta este novo ideal. "Estamos num momento importante da Educação Escolar Indígena, num período de transição entre a escola para índios imposta desde a colonização e a nova escola indígena construída pelos índios".

Na opinião de Luís Donisete, a mobilização dos povos indígenas e de suas organizações, além do apoio de setores organizados da sociedade civil, foram fundamentais para a conquista dos direitos indígenas e das mudanças na área educacional. "Foi a partir das experiências destas entidades com projetos alternativos de educação que se gerou um novo modelo incorporado gradativamente pelo Estado, virando política pública. Nos últimos 10 anos, estas organizações são chamadas para participar dos processos de formulações destas ações", explica o antropólogo. Entre 1980 e 2000, foram criadas cerca de 183 organizações indígenas, só na região amazônica.

Formação de educadores
Hoje, a educação se tornou uma demanda dos próprios povos indígenas, que querem uma escola gerida por representantes das comunidades. Para isso, a formação de professores indígenas se torna fundamental. Segundo o Censo Escolar, cerca de 7 mil educadores atuam nas escolas, sendo que 85% são indígenas. No entanto, de acordo com Luís Donisete, há ainda muitos obstáculos para a incorporação dessas práticas, como a falta de estruturação das secretarias de educação para o trabalho com a educação indígena, não contando nem com recursos financeiros, nem com equipe técnica qualificada para ações de formação profissional.

Há ainda outros impasses, como a falta de vontade política. Muitas escolas são distantes das cidades e não contam com recursos pedagógicos e didáticos. "Em diversos locais, a sala de aula e o professor ficam largados lá. As secretarias não estão preparadas para trabalhar com estas questões e exportam currículos e calendários escolares de escolas da região, às vezes camponesas, sem respeitar a diversidade local. Quando os professores não são indígenas, muitas vezes são aqueles que tiveram colocações baixas nos concursos públicos. Ou seja, onde deveriam atuar professores mais preparados para enfrentar uma realidade diferente, enviam professores menos qualificados", comenta o antropólogo Luís Donisete.

"As secretarias de educação têm que cumprir a legislação. Têm que assumir suas responsabilidades e oferecer uma educação decente para os povos indígenas, porque isto está garantido nas leis. Nós, professores indígenas, não somos só aliados. Somos os cobradores do cumprimento da política de educação indígena para benefício das nossas comunidades", afirma o professor Jerry Adriane Matalawê, Pataxó da Bahia, em depoimento extraído do livro.

Segundo Luís Donisete, a escola tem hoje grande relevância e destaque nas discussões do movimento indígena. Os professores indígenas estão organizados em associações e desenvolveram uma pauta de reivindicações perante diferentes órgãos de governo.

As principais reivindicações dos professores dizem respeito, principalmente, à formação e apóio pedagógico. Muitos ainda não se formaram nem no Ensino Médio e não tiveram preparação específica para atuarem como professores. Quando são envolvidos em algum programa de capacitação, não há um aprofundamento em temas e necessidades específicas da educação indígena. Além disso, enfrentam problemas na contratação. Como eles não têm escolarização para participarem de concursos públicos, seus contratos são irregulares e provisórios.

Na opinião do antropólogo, hoje, um dos principais desafios para que a educação indígena se consolide no país, é fazer com que as comunidades indígenas assumam a sua educação e o controle social sobre estas instituições, para que não fiquem à margem da sua realidade. Outra ação importante seria a criação de políticas públicas consistentes e perenes, em longo prazo, para que não se dissolvam com a mudança de governos, por exemplo.

Luís Donisete acredita que a sociedade deve ficar atenta às ações que podem ter uso político. "Quando há participação indígena no processo de decisão e construção das ações é mais fácil delas terem uma continuidade. Mas, se vão surtir efeito, isso também vai depender da situação sóciopolítico de cada comunidade, ou seja, como elas irão absorver as ações. Os Centros de Educação e Cultura Indígena (CECI), por exemplo, da prefeitura de São Paulo, só terão impacto quando os indígenas criarem um sentido para eles dentro de sua realidade, senão, vai ser um Centro de Educação Integrado (CEU), numa área indígena", destaca.

O professor José Ribamar ressalta no livro que muitas escolas indígenas já mostraram sinais de relativa eficácia escolar de acordo com os objetivos propostos no projeto político-pedagógico, como é o caso das escolas do Alto Rio Negro e, mais precisamente, dos projetos desenvolvidos pelo Instituto Socioambiental com a Federação das Organizações Indígenas do rio Negro na área Baniwa e Tuyuka. Essas práticas estão contidas também no livro, em que Marina Kahn e Marta Azevedo, do Instituto Socioambiental, mostram como é o processo de formação de uma escola, desde a elaboração do projeto político-pedagógico até as negociações com as autoridades.



DANIELE PRÓSPERO
do site setor3

   
 
 
 

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