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ensino público
31 /05/2004
Bairros da elite de SP dominam vagas da USP

Tudo começou com um erro. Aos 17 anos, Dário Ferreira Neto, saiu de Guaianases, no extremo leste de São Paulo, e foi procurar o posto do Exército em Osasco (zona oeste). Ia se alistar. Desacostumado com a geografia da região, o rapaz desceu do trem na estação errada. Quando se deu conta, estava no campus da Universidade de São Paulo. "Fiquei deslumbrado. Não tinha idéia do que era a USP", conta. "Saí de lá com uma idéia fixa: Vou estudar aqui."

Ferreira, que abandonara a escola aos 16 anos, antes de concluir o ensino médio, retomou os estudos. Aturou as gozações de seus próprios professores, que achavam absurdo o sonho de entrar na USP. Fez um ano de cursinho popular. Por fim, passou no vestibular do curso de letras.

Bem diferente é a trajetória de Luana Kawamura Demange, 23. Filha de professores universitários, Luana sempre soube que um dia estaria em uma faculdade pública. "Nem prestei vestibular nas particulares", conta. Entrou em arquitetura na Unicamp e na USP - a instituição eleita por ela.

Ele é de Guaianases, um dos bairros mais pobres e violentos da zona leste. Ela é dos Jardins, o miolo da elite econômica e cultural paulistana.

Ele vem de uma família com renda inferior a um salário mínimo por pessoa, estudou a vida toda em escolas públicas e só saiu de São Paulo pela primeira vez aos 19 anos. Ela tem família com renda superior a 20 salários mínimos, morou no Japão aos 13 anos e fala inglês, espanhol e francês.

Para se ter uma idéia do precipício que separa os locais de origem de Ferreira e de Luana, segundo o Mapa da Juventude (estudo da Prefeitura de São Paulo sobre o perfil dos jovens da cidade), na região que inclui Guaianases, 43% dos jovens estão fora das escolas. Na região onde estão os Jardins, 63,4% dos jovens estão matriculados em escolas particulares.

Em comum, os dois agora têm a instituição em que estudam: a USP. Só que, enquanto a presença de Luana na universidade é a regra, a de Dário é a exceção. É isso o que mostra um estudo concluído na semana passada pelo Núcleo de Apoio a
Estudos da Graduação, o Naeg, órgão da USP.

Pelo trabalho do Naeg, mapearam-se os endereços dos ingressantes na USP entre 1995 e 2004. Já se imaginava uma concentração de estudantes oriundos dos bairros mais ricos, mas o resultado surpreendeu pelo excesso.

Apenas uma rua, a Bela Cintra, na região dos Jardins, conseguiu, no vestibular de 2004, emplacar mais moradores nos bancos uspianos do que a soma de 74 bairros periféricos da zona sul.

A Bela Cintra, porém, é apenas o caso mais vistoso de um quadro de hiperconcentração da oportunidade de acesso ao ensino superior público nas mãos de uma pequena parcela da população.

Muito para poucos
Quando se mapeiam as moradias dos ingressantes da USP ao longo dos últimos dez anos, percebe-se que uma mancha de bairros em volta do centro da cidade, contendo apenas 19,5% da população total de São Paulo, açambarca 70,3% do total de vagas.

O lado "B" dessa história é evidente: aos bairros periféricos, que compreendem 80,5% da população da cidade, cabem 29,7% das vagas da universidade.

Basta um simples exercício matemático, baseado nos dados do estudo do Naeg, para concluir que um candidato ao vestibular da USP que viva no centro da cidade e seus arredores tem até nove vezes mais chances de conseguir a sua vaga do que aqueles oriundos do entorno dessa área.

Acontece que essa desigualdade retratada no estudo não foi criada pela USP, nem existe apenas em relação à universidade.

Dados de renda e de qualidade de vida reproduzem o mesmo resultado sociodemográfico.

Aplicado a São Paulo, o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), criado pela ONU (Organização das Nações Unidas) para medir o desenvolvimento local com base na expectativa de vida, no nível educacional e na renda per capita, classificou as regiões da capital de acordo com sua semelhança em relação a índices de países ou continentes.

Bairros como Pinheiros, Jardim Paulista, Moema, Itaim Bibi e Morumbi ganharam a classificação de "região européia", por reproduzirem índices de desenvolvimento de Primeiro Mundo. No outro extremo, as periferias leste e sul, especialmente, receberam o título de "regiões africanas" pela similaridade com o continente mais subdesenvolvido do mundo.

"O modelo de desenvolvimento da atual política urbana exclui os pobres das regiões centrais e os empurra para as periferias da cidade, reduzindo seu acesso às oportunidades", diz Raquel Rolnik, secretária Nacional de Programas Urbanos do
Ministério das Cidades. "É o que eu chamo de exclusão territorial, que não é exatamente a exclusão social, mas que a acentua e obstrui o processo de ascensão social. E uma das formas de ascensão é o estudo, particularmente na universidade."
Para Rolnik, os dados da pesquisa do Naeg demonstram que "a riqueza e as oportunidades circulam nas mãos de quem já as têm". "E a exclusão territorial acentua isso porque cria guetos."

O estudo da USP é resultado do esforço do Núcleo de Apoio a Estudos da Graduação (Naeg), coordenado pelo professor Adilson Simonis, do Instituto de Matemática e Estatística. Resultou da engenhosidade e do esforço obsessivo do professor de dotar a USP de estatísticas que permitam entender o lugar da universidade na cidade de São Paulo e no país.

O próximo desafio é saber o que será dos alunos que se formarem. O site do Naeg (naeg.prg.usp.br) está cadastrando ex-alunos da USP. Um dos objetivos é saber se a universidade é capaz de encurtar a distância social que separa Ferreira de Luana. Nem isso ainda dá para saber.

LAURA CAPRIGLIONE
FERNANDA MENA
da Folha de S.Paulo

   
 
 
 

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