Caindo na (no) Real...

ROBERTO CAMPOS

Nos dias de hoje, só um montão de políticas estúpidas, ou instituições ruins e instáveis, podem bloquear o desenvolvimento econômico.
Infelizmente, regimes políticos e instituições infensas ao desenvolvimento são a regra antes que a exceção, e a maioria do mundo vive na miséria.
(Mancur Olson)

É tempo de balanço para o Plano Real, convertido em lei em seu primeiro aniversário. Foi uma “transformação cultural”, um “sucesso político” e um “avanço econômico”, que ainda tem de se provar sustentável.
A contribuição cultural reside no início de uma cultura de estabilidade monetária, como valor condicionante, sem a qual a retomada do desenvolvimento e a “justiça social” são masturbações socioeconômicas.
Houve uma redução do fatalismo, que nos levava a crer que a inflação era defeito congênito e não infecção adquirida. Reconheceu-se o papel causal do déficit público no processo inflacionário.
Finalmente, começou-se a perceber que o Estado deixou de ser o motor do crescimento e é infinanciável em suas dimensões atuais. Tem de ser rebaixado da função de engenheiro social, que planeja construções sobre o terreno, para ser um jardineiro, que deixa as plantas crescerem.
Não resta dúvida de que o Plano Real foi um sucesso político. Eleitoralmente, livrou-nos do Lula e, consequentemente, da ditadura dos filhos da CUT, com sua visão pré-muro de Berlim e sua incurável capacidade de combater a riqueza, sob o pretexto de curar a pobreza. A aceitação popular influiu na formação de uma coalizão parlamentar majoritária, reduzindo nossa taxa de ingovernabilidade. Criou-se um ímpeto reformista.
No plano econômico, conseguiu-se o objetivo principal _reduzir a explosão inflacionária de 50% para um ritmo em torno de 2% ao mês, temperatura febril pelos padrões mundiais, mas refrescante nestes “tristes tropiques”. Mas é um avanço qualificado, pois há debilidades estruturais a corrigir e zonas de turbulência a atravessar.
Algumas debilidades são congênitas. Outras adquiridas. As congênitas derivam de que a lógica econômica difere da lógica política. A sequência econômica lógica seria que as reformas estruturais _abolição de monopólios, reestruturação fiscal, reformas administrativa e previdenciária_ precedessem a reforma do padrão monetário, ou pelo menos lhe fossem concomitantes. A nova moeda seria a cumeeira da estrutura e não seu alicerce.
Mas a sequência logicamente desejável não é a sequência politicamente factível. Fernando Henrique Cardoso inverteu os termos do problema e talvez seu julgamento político esteja correto. Não são as reformas que viabilizariam economicamente o Plano Real. É o Plano Real que viabilizaria politicamente as reformas. Foi uma aposta ousada que, até o momento, tem dado certo.
Nascido como engenharia financeira antes que transformação estrutural, o Plano Real exige milagres de gerenciamento, de vez que conta apenas com dois instrumentos ambivalentes e com um acaso feliz. O acaso feliz foram as gordas colheitas agrícolas. Os instrumentos ambivalentes são a taxa de juros e a taxa de câmbio, que passaram a carregar uma responsabilidade normalmente partilhada, em outros países, com a política fiscal.
Esta foi reduzida, à falta de outras reformas, a um “heroísmo de boca de caixa”, em que o equilíbrio fiscal é instável e precário. A rigor, a sustentabilidade do Plano Real exigiria não apenas o equilíbrio fiscal, mas um superávit equivalente a 2,5% ou 3% do PIB, pois esse era o tamanho do imposto inflacionário que deixou de ser coletado com a moeda estável. Esse o poder aquisitivo transferido às classes pobres (que não possuíam moeda indexada), levando a um superaquecimento da economia. Uma alternativa ao superávit fiscal seria um acelerado processo de privatização para redução da dívida pública interna.
A taxa de câmbio valorizada favoreceu importações, o que, superpondo-se à boa oferta agrícola, atenuou pressões inflacionárias. A abertura comercial foi útil e desejável para estimular melhorias de qualidade e produtividade. Seu efeito foi, entretanto, indesejavelmente magnetizado pela valorização cambial do real.
O pânico cambial daí decorrente provocou retrocesso, por meio do aumento de tarifas e imposição de cotas. Idealmente, a abertura deveria ser acompanhada de desvalorização cambial, que aumentaria compensatoriamente a competitividade das exportações e moderaria o apetite importador. Uma alternativa à desvalorização cambial teriam sido reformas estruturais para redução do “custo Brasil”. Infelizmente, pouco ou nada tem sido feito para abater os custos portuários e aliviar a carga fiscal dos exportadores.
Com sua tradicional capacidade de tresler a história, à esquerda neoconservadora protestou contra o efeito recessivo do plano, coisa tão errada como as profecias de Marx. Ocorreu o contrário: crescimento explosivo.
Na realidade, à luz da experiência internacional de planos de estabilização, havia duas coisas fáceis de prever: o superaquecimento do consumo interno e a valorização da taxa de câmbio. Para nenuma delas estávamos adequadamente preparados. Não havia medidas fáceis, nem totalmente confiáveis, para evitar a sobrevalorização do real.
Um instrumento seria a quarentena, ou seja, o desencorajamento do influxo de capitais especulativos por meio da obrigatoriedade de um depósito compulsório, como feito no Chile. Um segundo seria a esterlização dos capitais ingressados, o que exigiria um superávit fiscal. Um terceiro seria a abolição do monopólio de câmbio do Banco Central, com permissão de depósito em moeda estrangeira e livre exportação de capitais.
Parte de volatilidade resulta do medo das restrições que o Banco Central impõe. Um quarto instrumento seria um programa acelerado de privatizações, para induzir a conversão de capitais voláteis em investimentos permanentes.
E, se a receita das privatizações fosse aplicada na redução da dívida interna, cairiam os juros e, portanto, a atratividade do Brasil como hospedeiro de capital turista. Nenhuma dessas medidas foi tomada, talvez intencionalmente, pois a valorização do real tem um atraente subproduto: auxilia a estabilização dos preços internos; pela competição dos importados. O problema é que essa vantagem de curto prazo não é sustentável no longo prazo, em virtude do esmorecimento das exportações e queda de reservas.
Incapaz de conter seu consumo e de refrear a esbórnia dos governos estaduais (particularmente o de São Paulo, cujo problema fiscal é insolúvel sem maciça privatização), o governo federal transfere o custo do desaquecimento para o setor privado, por meio da alta de juros. O efeito, naturalmente, é ambivalente.
Desaquecem-se o consumo de bens duráveis e a demanda de importações, mas apenas parcialmente, de vez que, sendo o Tesouro o maior devedor, eleva-se a renda financeira dos detentores de papéis; e, paralelamente à queda de consumo, pode ocorrer uma queda de oferta, pela carência de capital de giro das empresas. Há, naturalmente, outro problema. A alta de juros, por sua vez, atrai capital especulativo, o que impede a desvalorização do câmbio para taxas mais realistas, necessárias paa restauração do saldo comercial.
Ao contrário do que se diz, o custo do ajuste do Plano Real não tem sido pago pelos trabalhadores e sim pelos agricultores. Estes sofreram queda de renda real, a despeito da supersafra (pelo efeito combinado da alta taxa de juros e do câmbio sobrevalorizado). É de se esperar que a agricultura não se vingue pelo encolhimento do plantio e que São Pedro continue cooperativo na próxima safra.
O delicado problema do momento é a administração da transição para taxas cambiais mais realistas e taxas de juros menos sufocantes. Não invejo os que têm de lidar com essas tensões, que Karl Jaspers chamaria de “tensões da insolubilidade”.
A sustentação do Plano Real exige aceleração da agenda reformista: desindexação (ou antes, desoficialização dos índices) e livre negociação salarial, simplificação fiscal, reformas previdenciária e administrativa e flexibilização rápida dos monopólios estatais responsáveis pelo atraso de nossa infra-estrutura.
Essa agenda pareceria utópica pouco tempo atrás. Houve uma mudança de clima. Ou, como diz Fernando Henrique Cardoso, a política deixou de ser a arte do possível para se tornar a arte de fazer possível o necessário.

ROBERTO CAMPOS, 77, economista e diplomata, é deputado federal (PPR-RJ) do Rio de Janeiro. Foi senador (PDS-MT) e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de ``A Lanterna na Popa'' (Ed. Topbooks, 1994)