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01/02/2001 - 07h14

Artigo: A Califórnia é aqui; vivemos uma crise disfarçada

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LUIZ PINGUELLI ROSA
artigo para a Folha de S. Paulo

Parodiando a letra de uma canção do Caetano que diz que o Haiti é aqui, o Brasil vive hoje uma situação no setor de energia elétrica semelhante, em alguns aspectos, à da Califórnia. Está nos jornais que a famosa ponte de San Francisco foi apagada por uma falta de energia causada pela crise de abastecimento. Imaginem o Rio de Janeiro com o Cristo Redentor apagado por idênticas razões. É isso um exagero?

Talvez sim, talvez não. Na Califórnia, a crise se deve a uma desregulamentação malfeita, baseada na crença de ser o puro mercado suficiente para estimular os geradores independentes de energia elétrica a competir, reduzindo o preço.

Isso não ocorreu. As duas concessionárias, a Edison e a Pacific, estão atravessando dificuldades por causa do elevado preço da energia elétrica gerada. E isso a ponto de tornar economicamente inviável a própria operação. Essas empresas alegam prejuízos. O Estado e a população ficaram à mercê da crise. Entre outros fatores, contribuíram para isso a alta do preço do gás, arrastado pelo petróleo, e a preferência pelo mercado "spot", em lugar de contratos de longo prazo. Isso aconteceu nos EUA, que tem um modelo semelhante ao do Brasil.

Quanto a nós, já vivemos uma crise disfarçada, evidente desde o famoso apagão de 1999, o qual não foi fruto de um fenômeno natural, um raio, que por azar teria caído numa subestação. Nem por culpa do então recém-criado ONS (Operador Nacional do Sistema). As causas do apagão foram a instabilidade do sistema elétrico, por falta de potência instalada, e a falta de capacidade de transmissão de energia elétrica. Essa falta vem da ausência do investimento não retomado pelo governo, já que as empresas de energia elétrica estatais foram incluídas no plano de desestatização.

O plano do governo de fazer 49 termelétricas a gás natural é um reconhecimento da crise, pois, se o mercado bastasse, os investidores estrangeiros estariam investindo no Brasil. E não só para comprar a bom preço empresas tão importantes quanto a Light, no Rio, a antiga Eletrosul, hoje Gerasul, a Eletropaulo e as companhias elétricas desmembradas da Cesp, em São Paulo. Já foi privatizada uma apreciável capacidade de geração, além de quase toda a distribuição importante de energia elétrica do país.

Mas não investiram na expansão. É preciso observar que a energia elétrica tem uma demanda crescente no país. Esse crescimento não é pequeno, como ocorre em muitos outros países nos quais o setor foi privatizado. Daí a crise. Os reservatórios de hidrelétricas no sistema interligado se esvaziaram a ponto de chegar ao ano 2000 em um nível de apenas 20% de sua capacidade, recuperado, com as chuvas do final do ano, para 30% _Deus é brasileiro, não californiano. Esses reservatórios foram feitos para acumular água por até cinco anos, para fazer frente às variações climáticas.

Entretanto gastou-se a água acumulada. Não há equipamentos de reserva suficientes para atender à demanda. Daí os apagões, não só o de 99. Há pouquíssimo tempo, ocorreu uma saída de rede de Angra 2, o que é normal, pois, pelas normas de segurança, um reator nuclear é obrigado a desligar se apontadas mínimas anomalias. Ficaram sem energia, como resultado, várias cidades do Estado do Rio, pois a saída não foi coberta pela entrada de usinas da chamada reserva girante das hidrelétricas.

O fato concreto é que, mesmo o governo vindo a público para dar estímulos aos investidores estrangeiros para a construção das usinas termelétricas, apenas a Petrobras está tomando as providências efetivas para fazê-las.

Apenas 14 das 49 programadas estão sendo concretamente providenciadas ou em início de obra, quase todas da Petrobras, em parceria com outras empresas. Ela tomou a iniciativa de colocar o dinheiro sem esperar o "project financing" e a garantia da compra da energia que os investidores estrangeiros exigem do governo _inclusive o repasse para o consumidor da variação cambial.

Creio que o quadro futuro tende a ser pior que o da Califórnia. Pelo menos lá não há o risco cambial, pois são os EUA que imprimem os dólares. O tema foi amplamente discutido numa reunião que participei no Fórum Social Mundial. Devemos reconhecer que o ministro de Minas e Energia, ao vir a público, assume um papel do governo no setor elétrico negado pela ortodoxia do FMI.

A termeletricidade é uma solução emergencial, por causa do menor prazo de construção das usinas. Mas, mesmo assim, esse prazo chega a três anos.

A crise está à porta. O Instituto Virtual de Mudanças Globais, fruto de um projeto da Coppe (Coordenação de Programas de Pós-Graduação em Engenharia da UFRJ) com a Faperj (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio), enviou ao governo federal um relatório propondo quatro medidas.

Uma medida é o Progredis (Programa de Geração Distribuída) em empresas, supermercados, shoppings, hospitais e hotéis, usando o gás natural que hoje está sobrando, queimado nos poços da bacia de Campos _ainda há quase 50% de capacidade ociosa no gasoduto da Bolívia. A segunda é reavivar o Procel (Programa de Conservação de Energia Elétrica), para aumentar a eficiência e reduzir as perdas de energia.

Uma terceira medida é o estímulo ao uso de energias alternativas, como a biomassa do bagaço de cana e do lixo urbano, usando inclusive tecnologias propostas em uma tese, defendida pelo pesquisador Luciano Basto, para que o Estado do Rio resolva o problema dos aterros sanitários. A quarta é sustar a privatização de Furnas, pois ela vende energia hidrelétrica a R$ 40/ MWh e, se privatizada, passará a R$ 80/ MWh, que é o da geração com gás natural.

Tudo isso exige discussão para evitarmos a repetição aqui do pesadelo que se transformou o "California Dreamin" sonhado pelo The Mammas and The Papas.

Luiz Pinguelli Rosa, 59, físico, é coordenador do Instituto Virtual de Mudanças Globais da Coppe e professor titular da UFRJ.
 

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