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27/06/2004 - 07h18

Plano Real nasce da mistura de economia e política

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GUSTAVO PATU
da Folha de S.Paulo, em Brasília

O Plano Real seria, como costumavam repetir seus formuladores e executores, "o oitavo casamento de Elizabeth Taylor".

Em outras palavras, tratava-se de convencer trabalhadores, empresários e investidores --e eleitores, uma vez que era um ano, 1994, de eleições presidenciais-- de que, após os fracassados Cruzado, Cruzado 2, Bresser, Verão, Collor e Collor 2, um novo plano contra a inflação funcionaria.

Sob descrédito geral, Liz Taylor casara-se novamente, em 91, daquela vez com Larry Fortensky, um trabalhador da construção civil 20 anos mais jovem que a atriz inglesa. Os dois haviam se conhecido numa clínica de desintoxicação de álcool e drogas.

O cenário brasileiro não inspirava confiança maior. Itamar Franco estava na Presidência após o afastamento de Fernando Collor e, em seus primeiros oito meses no cargo, já havia demitido três ministros da Fazenda. Luiz Inácio Lula da Silva, ainda em seus tempos de ameaça aos mercados, liderava as pesquisas eleitorais, seguido por Paulo Maluf.

Na economia, a inflação chegava aos 40% em janeiro de 94 --naquele ritmo, terminaria o ano em 5.500%. O país não pagava integralmente sua dívida externa e estava fora do mapa dos investimentos estrangeiros que, na época, inundavam os emergentes.

O acaso

Havia algo novo em gestação. O acaso levara Itamar a nomear, em maio de 93, seu primeiro ministro da Fazenda de expressão, Fernando Henrique Cardoso --o antecessor, Eliseu Resende, deixara o cargo acusado de ligações com a empreiteira Norberto Odebrecht.

Até então, FHC, sociólogo de renome e uma das referências da esquerda nacional, chefiava o Itamaraty e estudava uma candidatura a deputado no ano seguinte.

O ministro, pouco versado nos temas da pasta, começou sua gestão com a cantilena até hoje repetida por seus sucessores: não se afastaria do que os economistas chamam de políticas ortodoxas, ou seja, combateria a inflação com as recomendações da cartilha tradicional --juros altos e controle dos gastos públicos.

Mas o desempenho da ortodoxia nos dois anos anteriores tampouco era animador. Afinal, os manuais econômicos não foram feitos para um país em que preços, salários e contratos eram quase todos atrelados a índices de correção monetária.

A volta dos heterodoxos

Enquanto fazia suas promessas de bom comportamento econômico, FHC trazia para sua equipe os papas da heterodoxia nacional: Edmar Bacha, André Lara Resende e Pérsio Arida, mentores do Plano Cruzado, de 1986.

Todos eram da Pontifícia Universidade Católica do Rio, de onde vieram também nomes como Pedro Malan, Gustavo Franco e Winston Fritsch, incorporados à chamada equipe econômica.

Em dezembro de 93, o "oitavo casamento de Elizabeth Taylor" foi proclamado com todo o cuidado. Em vez de um choque econômico destinado a pegar empresários de surpresa, foi anunciada uma estratégia gradual e fiel aos contratos estabelecidos.

Até ali, a obra da equipe era quase nada. Limitava-se a um corte de três zeros na moeda nacional, cujo nome passara de cruzeiro para cruzeiro real, e ao Programa de Ação Imediata, um conjunto de medidas fiscais anódinas. Ainda assim, a preexistência do PAI levou o novo plano a ser batizado de FHC 2.

Política e economia no altar

Dividido em três etapas, o plano casava política e economia. A primeira fase seria a aprovação, pelo Congresso, do Fundo Social de Emergência -uma autorização para que o governo gastasse na área social menos do que o determinado pela Constituição.

Nas negociações do FSE, aprovado pelo Congresso em fevereiro de 94, o ministro acertou nos bastidores o apoio do PFL a sua candidatura presidencial pelo PSDB.

Viabilizada a face ortodoxa do plano, entrou em cena --em 1º de março, aniversário do Cruzado-- a obra-prima da bruxaria econômica nacional, a Unidade Real de Valor. Mistura de moeda e indexador, a URV coexistia com o cruzeiro real, valia US$ 1 e corrigia salários e contratos.

Aos poucos, trabalhadores e empresários passaram a calcular em URV. Uma pessoa sabia quanto ganhava em URV; um empresário sabia quanto valiam seus produtos em URV.

Na visão técnica da equipe econômica, a URV deveria durar até sua plena adoção pela sociedade --talvez até o final do ano. A visão política, porém, era outra. FHC, que havia deixado o cargo em abril para concorrer ao Planalto, precisava de resultados mais concretos para apresentar ao eleitorado. E a etapa final do plano foi marcada para 1º de julho.

Quanto vale o real?

Sabia-se que, naquela data, o novo dinheiro entraria em circulação. Numa estratégia inédita e quase impecavelmente levada a cabo, todas as cédulas e moedas do país seriam substituídas.

A nova moeda teria o mesmo valor da URV e do dólar em 1º de julho, ou CR$ 2.750. Tudo correu como previsto. Mas, para a data fatídica, foi reservada a única grande surpresa do plano: o real não poderia valer menos que o dólar, mas poderia valer mais.

E foi o que aconteceu. Em algumas semanas, US$ 1 podia ser comprado por R$ 0,83. Os importados ficaram mais baratos, obrigando os produtores nacionais a segurar ou a reduzir seus preços. A inflação despencou. FHC venceu a eleição no primeiro turno.

Estava criada a versão brasileira do que o mundo chamava de âncora cambial --a estratégia pela qual vários países latino-americanos puserem fim a anos de inflação crônica, de aproveitar a fartura de dólares no mercado global para segurar os preços.

O marketing do Real argumentava que o plano não se resumia a isso. Havia também, dizia-se, um ajuste fiscal e metas monetárias rígidas, mostrando respeito à ortodoxia. Era falso.

Erros de cálculo

O sucesso da nova moeda tratou de derrubar as tais metas monetárias --limites para a quantidade de reais em circulação na economia. Como a população queria utilizar mais e mais do novo dinheiro, as metas foram sistematicamente descumpridas e abandonadas em poucos meses.

Outro erro de cálculo teria conseqüências mais dramáticas. O dólar barato provocou uma enxurrada de importações e viagens ao exterior; o buraco nas contas externas tornou o país dependente de capital externo. Acreditava-se, porém, que o problema não era tão grave, pela então abundância de capital no mundo.

O primeiro susto veio com a crise do México, no final de 94. A âncora cambial mexicana mostrava seu preço, e o peso sucumbia depois de perdas sucessivas das reservas em dólar do país. Mais tarde viriam as crises da Ásia, em 97, e da Rússia, em 98.

Enquanto as turbulências se acumulavam, crescia a desconfiança quanto ao plano brasileiro, e o Banco Central era obrigado a elevar os juros para atrair capital externo. Os juros fulminaram a promessa de equilíbrio fiscal, e a dívida pública explodiu.

O fim do casamento

Um colecionador de estatísticas se assustaria com os resultados do final do primeiro mandato de FHC, em 1998. Déficit comercial, juros, déficit público, dívida pública, dívida externa, desemprego, quase tudo nos maiores patamares da história recente.

No entanto, a inflação, de mais de 1% ao dia nos dias do cruzeiro real, caminhava para pouco mais de 1% ao ano. Uma estabilidade nunca vista desde os anos 30, quando os índices de preços começaram a ser apurados no país.

Foi o bastante para que FHC derrotasse novamente Lula no primeiro turno das eleições, prometendo manter o plano de pé. A promessa, porém, seria descumprida na primeira quinzena de seu segundo mandato.

Itamar voltou à história no papel de vilão. Ao assumir o governo de Minas, anunciou que não pagaria a dívida do Estado com a União. Não era muito mais que uma bravata, mas bastou para derrubar o castelo de cartas em que havia se transformado o Real.

Gustavo Franco, último grande defensor da âncora cambial, foi expelido do BC, que via minguarem suas reservas em dólar. A âncora cambial foi abandonada em 15 de janeiro de 1999. Semanas depois, Armínio Fraga assumiria o BC para implementar uma política econômica toda reformulada.

O plano chegava ao fim depois de quatro anos e meio, mais ou menos a mesma duração do oitavo casamento de Elizabeth Taylor --que anunciou sua separação em 95. Ficaram, porém, o nome da moeda e uma inflação civilizada, hoje mantida a duras penas por Lula e pelo sucessor de Malan no Ministério da Fazenda, Antonio Palocci Filho.

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