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23/01/2004 - 10h41

Primeiros alunos da USP recuperam 70 anos de história

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CASSIANO ELEK MACHADO
da Folha de S. Paulo

Se a Universidade de São Paulo tivesse a faculdade de poder olhar os seus primeiros momentos em um espelho não reconheceria aí quase nenhum de seus traços mais marcantes de hoje.

No retrovisor, enxergaria uma instituição polvilhada por diversos pontos da cidade, com salas de aulas em que uns poucos rapazes assistiam as lições de outros tantos, dadas em boa parte em francês, italiano e alemão.

Oficialmente criada em 25 de janeiro de 1934, por decreto do interventor de Getúlio Vargas em São Paulo, Armando de Salles Oliveira, a USP saiu do ninho como uma "avis rara". Em seu corpo, tinha partes estalando de novas e outras com mais de cem anos de idade, como a pioneira Faculdade de Direito, do largo de São Francisco, criada em 1827.

Ao menos no papel, reunia outras nove unidades. As já existentes Escola Politécnica (1894), Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (1901) e Faculdade de Medicina (1913), as reformuladas faculdades de Farmácia e Odontologia e a de Veterinária, os institutos que deveriam ser criados, de Educação, Economia e Artes, e a novata Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL).

Fruto de debates que vinham dos agitados anos 20, encorpados pelos "inquéritos" que o jornal "O Estado de S.Paulo" publicava, a USP é fermentada durante o governo Vargas, que estabelece em 1931 a primeira política nacional do ensino superior. Cada universidade deveria ter uma FFCL.

Os paulistas saíram na frente, ainda que já existissem no país instituições chamadas de universidades --há quem aponte a do Paraná, de 1912, como a primeira; outros sustentam ter sido pioneira a do Rio de Janeiro, de 1920.

A USP, não se discute, foi a que nasceu maior. Quando apareceu na praça, é verdade, a instituição não causou comoção popular. Palavra de quem viu. Duas vezes reitor da universidade, o jurista Miguel Reale, hoje com 93 anos, já se formava em direito em 1934. Ele diz que naquele ano "não tomou conhecimento maior da USP".

O assunto entrava nas margens dos jornais, muitos dos quais não chegaram a noticiar nem a aula inaugural da universidade, dada pelo geógrafo francês Pierre Deffontaines (1894-1978), em junho de 1934, no prédio da medicina.

Não é à toa que tenha sido um francês e professor da FFCL o escolhido para o pontapé inicial uspiano. Eram franceses a maior parte de professores da recém-criada faculdade de filosofia, que era tratada pelos criadores da USP com termos como "célula mater".

Também não foi o acaso que escalou a aula "O que é geografia" para o teatro de uma instituição que não a FFCL. "Xodó" da universidade, ela não tinha casa própria que abrigasse todos os seus múltiplos braços (nem teve, até virar a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, em 70).

Faziam parte dessa faculdade-polvo desde disciplinas "humanas", como história, filosofia e geografia, até as "biológicas", agrupadas sob o guarda-chuva história natural, e as "exatas" química, física e matemática.

Somadas todas essas cadeiras, em uma São Paulo que rompia a marca de 1 milhão de habitantes, foram só 26 os diplomados na primeira turma, safra 1936.

Entre os pioneiros, estava Marcello Damy. O senhor alto e magro, que equilibra uma memória afiada sobre seus 89 anos, assistiu a coisa desde o big-bang --e de camarote. Ele era aluno do terceiro ano da Politécnica quando a universidade incorporou sua escola e, no mesmo prédio, no bairro do Bom Retiro, instalou os cursos de física e matemática.

Pioneiro da física nuclear no Brasil, com destaque internacional, ele diz que só se falava italiano nesses cursos. "Era um problema. Aqui não existiam os livros de ciência de lá. Vivíamos de apostilas, tomando notas em italiano. Eu, que nasci em Campinas, conhecia menos o idioma do que o paulistano médio", conta Damy.

Cigarro aceso na mão direita, Damy fala com desenvoltura, seja sobre raios cósmicos ("em São Paulo, em cada centímetro quadrado de área você tem dois raios cósmicos por minuto"), seja sobre a quase tão complexa movimentação dos cursos da USP pela cidade nos seus primeiros anos.

A física, por exemplo, começou na Poli, foi a um prédio na então rua São Luiz, depois para outro na av. Tiradentes e então mudou para a Brigadeiro Luís Antônio.

Foi para lá que se encaminhou Elza Furtado Gomide em 1942, "entusiasmada com os sucessos da física". "Lia muito nos jornais sobre Einstein", diz a jovem senhora de 78 anos.

As leis de Newton não foram o bastante para segurá-la. Ela logo mudou para a matemática, ramo que vem ensinando há 59 anos na USP. Dona Elza já era velha amiga da universidade. Seu pai, amigo de Teodoro Ramos, um dos criadores da instituição, servia no jantar conversas sobre esse tema.

Na mesa, em casa, tinha por vezes mais companhia do que nas classes de física e matemática. "Minha turma de física tinha três pessoas." Na matemática, no terceiro piso do colégio Caetano de Campos, na praça da República (a USP era onipresente), eram sete.

Foi também um septeto a turma de letras clássicas de um grande nome do estudo da literatura brasileira, José Aderaldo Castello, que freqüentava o mesmo terceiro piso da matemática (e achava essa "interdisciplinaridade", termo que ainda não existia, uma das riquezas dessa primeira USP).

Companheiro de retrato na turma de 1943 de nomes como o sociólogo Florestan Fernandes e o físico César Lattes, o professor de 82 anos tem em sua biblioteca de 10 mil exemplares uma prova da integração da primeira FFCL.

Ele aponta a capa da primeira revista "Filosofia, Ciências e Letras" (1936). Era editada pelo grêmio, mas, além de textos de alunos, como do historiador Eduardo D'Oliveira França (1915-2003) e do físico Mário Schenberg (1914-90), tinha textos de professores, entre eles os cientistas sociais franceses Lévi-Strauss e Paul-Arbousse Bastide ("o Bastidão", em contraposição ao mais baixo Roger Bastide), que escrevia em seu artigo: "É belo assistir ao nascimento de uma universidade".

"Nos anos 40, quando a USP formou a primeira geração de seus grandes docentes, alunos e professores de todas as disciplinas tinham um convívio acadêmico muito intenso", diz Castello. Nas palavras do professor, parceiro na série de livros "Presença da Literatura Brasileira", do grande crítico uspiano Antonio Candido, hoje com 85 anos, mais do que "belo" o nascer da USP foi "eufórico".

"O entusiasmo desses primeiros momentos foi fundamental. A euforia que gera a convicção, que gera o ideal de fazer. Sentia-se que era necessário fazer algo de novo e se fez algo de novo e fundamental para o país. Já tínhamos noção disso naquela época."

Dono do título mais recente de professor emérito da USP, recebido em novembro, o historiador José Sebastião Witter, 70, participou de um segundo ciclo de euforia da universidade.

Foi no prédio da rua Maria Antonia, hoje um centro cultural da USP, o período-chave da consolidação de um "pensamento uspiano". Ali ficaram a partir do começo dos anos 50 as seções de ciências humanas e os departamentos de matemática, entre outros.

"A Maria Antonia foi um monumento da nossa inteligência, formado pelo convívio. Nas escadas, topava-se com o Fernando de Azevedo, o Florestan, o Fernando Henrique Cardoso. Agora nos vemos, quando muito, no Banespa, no dia do pagamento", diz Witter, sobre a mudança para a Cidade Universitária, processo iniciado nos anos 40 e consolidado em 70.
 

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