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09/09/2004 - 08h01

Interpretação de exames ainda determina diagnósticos

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ANTONIO ARRUDA
free-lance para a Folha

O primeiro endocrinologista, que não pediu nenhum exame à paciente, disse: "Você precisa parar de consumir refrigerante e doces". Mas a estudante Paula Nicoletti, 22, não bebe um copo de refrigerante há anos e come doces raramente. "Ele não investigou minha vida, falou o que é praxe, o que está pronto", critica.

O segundo médico a que recorreu pediu exames de sangue e solicitou uma bioimpedância --exame que mede a gordura corporal por meio de uma corrente elétrica de baixa intensidade. "Ele me deu um remédio para emagrecer que originou uma gastrite e pediu para eu repetir a bioimpedância nove vezes, uma por mês. Achei exagero, mas era melhor ele ter um dado objetivo para me analisar."

Porém, sem conseguir atingir seu objetivo de reduzir o peso, Paula procurou um terceiro profissional. "A médica olhou os resultados dos exames de sangue antigos, de seis meses atrás, e não quis saber da bioimpedância, disse que era bobagem. No final, me deu uma dieta para diabéticos, alegando que também era indicada para tratar colesterol." Paula ainda não conseguiu perder os 20 kg que alega ter ganho nos últimos três anos.

Pesquisas, exames, sintomas e sinais clínicos, a história do paciente, o ponto de vista do médico: de um lado, a medicina produz de forma cada vez mais eficiente e veloz informações e meios para obtê-las; de outro, depende cada vez mais do ser humano como principal fonte de conhecimento e análise.

Trafegar entre os dados objetivos e a interpretação subjetiva é a grande tarefa dos médicos. A tese de doutorado da médica Alice da Costa Uchôa, defendida no ano passado no Instituto de Medicina Social da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), resume bem a questão.

O trabalho procurou identificar como os protocolos --que, aprovados por comitês de ética em pesquisa de instituições de saúde, fornecem diretrizes e normas para auxiliar os profissionais na tomada de decisão clínica-- interferem na hora do médico fazer o diagnóstico. Para Alice, o arsenal de informações científicas é indispensável ao médico, mas pode esconder a realidade.

"Real, de fato, é o paciente que está diante dele. Por mais que o médico siga passo a passo o protocolo, pode deparar-se com informações que não estão descritas nas normas, como as sensações do paciente, suas expressões faciais de sofrimento, suas agitações e seu cheiro, entre outros fatores cuja análise depende da subjetividade do profissional", explica a pesquisadora.

Paula, por exemplo, que não conseguiu ainda encontrar um médico que a ajudasse, tem um palpite sobre seu aumento de peso. Ela acha que poderia ter sido ocasionado pelo anticoncepcional. Uma troca no medicamento poderia ser a solução. A peculiaridade da história da paciente, nesse caso, teria mais a dizer que os exames.

Dados em excesso?

Se o paciente é um ser humano com uma "história particular", também o médico "possui medos, traumas, inseguranças", afirma o psiquiatra Luiz Salvador de Miranda Sá Junior, primeiro-secretário do Conselho Federal de Medicina (CFM).

"Nenhuma ação do homem se desprende dos elementos psicológicos e ideológicos que ele carrega consigo. Assim, todo médico, ao interpretar um exame, acrescenta a esses objetos, ainda que de maneira inconsciente, o modo como ele vê e sente o mundo."

Um oncologista que conviveu com algum familiar com câncer, exemplifica Miranda, "ou vai desenvolver uma atitude positiva, de mais cuidado com o paciente, ou pode tentar encobrir resultados, justamente por estar abalado pela própria experiência pessoal".

Como se não bastasse a possibilidade de diferentes interpretações na hora de fazer o diagnóstico, a pesquisa médica não pára de produzir novos dados e informações. "Além disso, elas são realizadas em um ambiente-padrão, com pacientes ideais, e são focadas em um ponto muito específico", o que abre ainda mais espaço à interpretação médica, segundo José Antonio Atta, chefe do ambulatório de clínica-geral do Hospital das Clínicas (SP).

Para Atta, pode parecer um paradoxo, mas é difícil colocar objetividade em uma disciplina relativamente subjetiva como a medicina. "O médico monta um modelo matemático na cabeça que provavelmente não é igual ao de um outro médico que analisar o mesmo paciente", acredita.

E o que faz um médico ver um exame de um jeito diferente de outro médico? "O médico enxerga o que aprendeu a ver. O que disseram para ele que tem de ser visto", afirma Rosana Horio Monteiro, professora de cultura visual da Universidade Federal de Goiás, que desenvolveu um estudo sobre como médicos residentes em cardiologia intervencionista em um hospital-escola norte-americano faziam diagnósticos diferentes a partir dos mesmos dados.

No hospital, uma paciente de 33 anos que deveria passar por um transplante de rim teve de fazer exames, entre os quais o cateterismo, para poder ser liberada para a cirurgia. Foi detectada uma obstrução de 60% da artéria. A equipe de médicos dividiu-se. "Os cardiologistas clínicos tendem a investir em tratamentos medicamentosos e os intervencionistas preferem logo a cirurgia", diz Rosana.

Não são todos os exames que abrem margens a dúvidas --muitos dos exames de análises clínicas fornecem dados seguros e inquestionáveis. "Se identifiquei uma bactéria qualquer no organismo do paciente ou se o colesterol dele está alterado, não há espaço para a subjetividade", explica o médico Ulysses Moraes de Oliveira, presidente da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial.

Mas, quando entram em questão os sofisticados exames de diagnóstico por imagem, a atuação muda um pouco. "Existem limites físicos e biológicos que fazem com que sempre ocorra algum grau de subjetividade", diz o radiologista Jacob Szejnfeld, chefe do Departamento de Diagnóstico por Imagem da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

O cardiologista Max Grinberg, do Instituto do Coração (Incor), acredita até que muitos médicos peçam exames "para mostrar que são conhecedores das novidades e para causar boa impressão no paciente".

Fetiche da imagem

No meio de tantas imagens, o médico pode se perder. Um dos fatores que podem atrapalhar o diagnóstico acertado sobre resultados de exames, segundo os especialistas, é encarar a imagem como fonte principal da realidade, afastando o profissional do próprio paciente. A conseqüência disso, para Francisco Ortega, professor da pós-graduação do Instituto de Medicina Social da Uerj, é que a visão, que é o sentido da distância, toma o lugar do tato e da audição, "sentidos que estabelecem uma relação direta do médico com o paciente".

A preferência pelos exames acaba fazendo com que, de acordo com Jacob Szejnfeld, "o médico não queira perder tempo conversando com o paciente e interpretando seus sintomas. Ele opta pelo exame, que pode assegurar de forma mais rápida o diagnóstico". Há uma tendência, segundo José Antonio Atta, pela substituição da história do paciente e do exame clínico pelos resultados de exames laboratoriais. "A gente vê acontecer com freqüência médicos tratarem o exame, e não a pessoa", diz Atta.

Esse "fetiche da imagem" também atinge os pacientes: "já perdi pacientes porque não pedi o ecocardiograma e ele queria fazê-lo", conta o cardiologista Grinberg.

Aldemir Soares, da Associação Médica Brasileira (AMB), acredita que a TV e a mídia alardeiam o que há de novo, e o paciente acaba valorizando mais as tecnologias modernas que o médico que o atende.

A Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM), segundo seu presidente, o cirurgião Guido Corrêa de Araújo, procura atualmente conscientizar professores e alunos das escolas médicas a voltarem a realizar uma medicina mais humana, que valoriza o contato do médico com o paciente. Afinal, como diz Atta, "o principal meio de diagnóstico é a entrevista com o paciente, que pode fornecer mais respostas do que qualquer exame laboratorial e, além disso, vai dizer ao médico quais exames ele deve pedir".

Foi o que percebeu a artista plástica Mônica Cristina Pereira de Souza, 47, em 1998.

Desde os 18 anos, quando identificou uma endometriose (doença na membrana que reveste o útero), ela já havia passado por diversos médicos, retirado o ovário direito, parte do esquerdo, passado por internação na UTI, feito dezenas de exames, mas continuava sofrendo com hemorragias constantes.

Há quase seis anos, depois de quase 30 anos sem resolver o problema, ela resolveu procurar um novo profissional. Na primeira consulta, Mônica levou todos os exames que havia feito. "Não quero ver nada disso", disse o médico, que passou duas horas com ela, fazendo perguntas e respondendo a outras.

"Só depois de ter vasculhado a minha vida, ele quis ver os exames. Desde então, não tenho nada. E o que o médico me receitou? Nada que outros não poderiam: dieta equilibrada e exercícios físicos. Aprendi que nem sempre a objetividade da ciência resolve os nossos problemas", acredita.

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