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Cidade de Deus

Crítica: Paulo Lins é um autor e tanto

MARCELO RUBENS PAIVA
articulista da Folha de S. Paulo

O que faz um livro ser bom? Parte do leitorado credita a qualidade ao apelo emocional _é a parte que quer rir, chorar, assustar-se ou se excitar. Parte credita ao espelho: aquilo que fala de mim coisas que eu não consigo verbalizar é que é bom.

Enquanto uma fatia do mercado quer conforto, uma outra quer provocação. Alguns querem ajuda, outros, sonhos. Mas do que um leitor nunca abre mão é de uma boa história.

"Cidade de Deus" é uma história e tanto. Desculpe, histórias. Histórias de tipos que moram em uma favela e sonham, intrigam, invejam, disputam, amam e odeiam, às claras ou às escondidas, como bem é o leitor.

O que faz um autor ser bom? Sua capacidade de contar a história, sua inventividade poética, seus personagens, os conflitos.

Paulo Lins é um autor e tanto. Esmiuça as sombras de seus personagens, como o marginal que sofre por ter um irmão homossexual, ou o cobrador, cuja namorada loura foi estuprada.

Na crueza de sua linguagem, explora a crueza das contradições humanas, onde rico vai "para" um lugar e pobre "pra" outro.

São inúmeros seus personagens: Zé Pequeno, Barbantinho, Zé das Alfaces, Marreco, Alicate, Busca-Pé. Cada qual ganha vida, ganha voz, numa rede de nós que compõem o retrato de uma só gente, a comunidade da Cidade de Deus.

Lins é um ótimo escritor. Constrói imagens com um jogo de inusitadas palavras, como "mangas engordando" e "cobra alisando o mato".

Uma infinidade de tipos aparecem e interagem. Muitas crianças disputam o chão com as cobras, sapos e preás. A maioria dos moradores é trabalhadora. Mas, em poucas palavras, o autor define a lei que começa a imperar no antes bucólico paraíso, uma cidade de Deus: "Falha a fala. Fala a bala".

"Olhou para o céu, depois para o chão, concluiu que Deus ficava muito longe... Se o inferno é embaixo da terra, ele está muito mais próximo", escreveu.

E o que é apenas um condomínio isolado ultrapassa as fronteiras. Lins fala do Brasil, um Brasil de poesia, sangue e mangues. Um Brasil que violentou sua natureza, construiu sua desgraça e tingiu o chão de um vermelho da violência desmedida.

 As cotações
Texto publicado na Folha de 16 de agosto de 1997, por ocasião do lançamento do livro "Cidade de Deus", de Paulo Lins

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