Folha Online ciencia DNA
DNA
07/03/2003

Outro homem, outro mundo

LAYMERT GARCIA DOS SANTOS
Especial para a Folha de S.Paulo

Eduardo Knapp/Folha Imagem
Obra de Nuno Ramos, sem título (80 cm X 55 cm X 10 CM, areia e silicato com injeção de gás carbônico), produzida especialmente para o caderno especial DNA da Folha
O impacto da genética na cultura contemporânea é muito grande, e só tende a aumentar, porque o mundo que hoje percebemos não é mais o mesmo, desde que Erwin Schrödinger, em fevereiro de 1943, proferiu sua série de conferências intitulada: "What Is Life? The Physical Aspect of the Living Cell" (O que É Vida? O Aspecto Físico da Célula Viva). O mundo mudou porque começou a mudar o entendimento do que é vida (o físico iconoclasta se situa no ponto crítico da história em que a física se tornava a parteira da biologia molecular).

A pergunta de Schrödinger parece ter desencadeado uma espécie de movimento que, desde então, não pára de ampliar nosso acesso à dimensão molecular da vida e, em consequência, de reformular nossa perspectiva e nossa experiência, levando-nos a abandonar muitas de nossas convicções e certezas. Tendo em vista que a concepção do que é vida mudou, o homem como ser vivo "superior" também não é mais o mesmo. Como dirá o filósofo italiano Franco Berardi, o homem deixou de ser a medida de todas as coisas, e o humanismo moderno deixou de fazer sentido.

Diversos autores já apontaram que as descobertas da biologia molecular e suas aplicações nos mais diversos campos, através das biotecnologias, não poderiam existir sem a contribuição decisiva da cibernética, que também se desenvolveu vertiginosamente a partir dos anos 50 do século 20. Considerando a questão retrospectivamente, fica evidente, com efeito, que a "revolução biotecnológica" não pode ser pensada sem a "revolução informática" —afinal, ambas se fundam no conceito de informação.

Na pequena fala introdutória à comunicação de Norbert Wiener no colóquio "Le Concept d’Information dans la Science Contemporaine" (O Conceito de Informação na Ciência Contemporânea), o filósofo Gilbert Simondon observa, a respeito da importância da publicação de "Cybernetics, Theory of Control and Communications in the Animal and the Machine" (Cibernética, Teoria de Controle e Comunicações no Animal e na Máquina):

"Logo percebemos que se tratava de algo novo, que trazia o ponto de partida de uma nova era de reflexões. Alguns pensaram que era a renovação do cartesianismo, outros perceberam que havia uma vontade de constituir uma unidade das ciências, enquanto todo o início do século 20 havia manifestado uma separação cada vez maior entre as especializações científicas; ocorreu que, após a Segunda Guerra Mundial, as 'no man’s lands' entre as ciências, as 'boundary regions' (...) eram consideradas como campos extremamente fecundos; e enquanto a especialização científica impedia as possibilidades de comunicação, nem que fosse por causa de linguagens diferentes entre especialistas de diferentes ciências, a cibernética, em contrapartida, resultava de vários homens trabalhando em equipe e tentando entender a linguagem uns dos outros. (...) a presença de médicos, de físicos e de matemáticos eminentíssimos nessa equipe mostrava que se produzia no campo das ciências algo que sem dúvida não havia existido desde Newton, pois, como o senhor dizia, Newton pode ser considerado o último homem de ciência a haver coberto todo o campo da reflexão objetiva. (...) Com efeito, historicamente, a cibernética surgiu como algo novo, querendo instituir uma síntese."

As palavras de Simondon dão a medida da relevância da cibernética não só na evolução da atividade científica como também, e principalmente, no campo da reflexão como um todo. A elaboração de uma linguagem comum para além das especificidades dos diversos ramos do conhecimento científico e a instituição de uma nova síntese, só comparável à revolução newtoniana, indicavam que a teoria da informação parecia assumir um papel central no pensamento humano contemporâneo.

É que a informação, como "terceira dimensão da matéria, além de massa e energia", no entender de Paul Virilio, permite acessar e explorar uma espécie de "solo" comum entre o objeto físico, o ser vivo e o objeto técnico. Assim, tanto o cristal quanto o animal e a planta quanto a máquina, numa determinada perspectiva, operam segundo uma mesma lógica. Por isso, analisando as reciprocidades informacionais entre diferentes organismos, e entre organismos e técnica, a bióloga Donna Haraway observa: "(...) as ciências da comunicação e as biologias modernas são construídas por um movimento comum _a tradução do mundo para um problema de codificação, uma busca de uma linguagem comum na qual toda a resistência ao controle instrumental desapareça, e toda a heterogeneidade possa ser submetida à desmontagem, à remontagem, ao investimento e à troca".

Movimento comum, linguagem comum, tradução universal. A partir da ciência e da técnica se instaura a possibilidade de abrir totalmente o mundo ao controle instrumental através da informação. A capacidade do homem de "falar" a linguagem do "centro consistente do ser", leva-o a aceder, segundo Gilles Deleuze, ao plano molecular do finito ilimitado, no qual um número finito de componentes produz uma diversidade praticamente ilimitada de combinações.

A informação genética e a informação digital abriram para a tecnociência e o capital global a dimensão virtual da realidade. Com elas, vieram a reestruturação do trabalho, a reprogramação da natureza, a recombinação da vida e a reconfiguração da linguagem.

Laymert Garcia dos Santos, 54, é professor de sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e autor de "Tempo de Ensaio" (Cia. das Letras)

Copyright Folha de S. Paulo. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress (pesquisa@folhapress.com.br).