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São Paulo, 450 25/01/1997

A ótica de um sergipano

FRANCISCO J. C. DANTAS
especial para a Folha de S. Paulo

De que paulistano posso esboçar uma idéia? Como encaixotar numa única visada essa multidão espantosa e variegada, esse turbilhão que desemboca do metrô, se encarreira pela avenida São João, fervilha nos shoppings, se comprime nos grandes edifícios? E com que ótica devo enxergá-lo? Vou baixar a pálpebra sobre o meu olho de esquadro, de lâmina gelada, e afiar este outro, chorão e fumegante.

Sobre São Paulo e os paulistanos, mantive, por mais de três décadas, uma imagem de secura e desumanidade, de mercantilismo e poluição, e que só foi modificada quando fui me bater nas suas ruas, onde me demorei por dois anos. Cresci assistindo meus conterrâneos de Riachão a se atreparem, de mochila na cintura, nos paus-de-arara que, após 15 dias de sol e poeira, descarregavam o fardo humano na barriga insaciável e prometedora da metrópole do Tietê. Eram levas e levas que se iam. Para a pobreza mais indigente de minha terra, tudo valia arriscar em busca dessa Terra da Promissão.

Mas era do Rio de Janeiro, talvez por ser a capital do país, que faziam a nossa cabeça através do Repórter Esso, da Hora do Brasil, dos livros, das revistas, dos jornais que nos traziam todas as solicitações e fantasias: futebol, política, Carnaval; o sortilégio das praias, do biquíni, das vedetes; postais do Corcovado, do Pão-de-Açúcar... O Rio era o único roteiro de nosso turismo. Da Cidade Maravilhosa desembarcavam os donos da minha terra, carregados de novidades, malas e alumbramento. Desse amálgama de informações indiretas, apanhadas à deriva, se superpunha a nossos olhos inexperientes, como contraparte da deliciosa Rio de Janeiro, a imagem de uma São Paulo sem espírito e sem recreação, metalizada e seca, sem banhistas seminuas, sem escolas de samba, fumacenta e poluída; uma cidade que admitia apenas o trabalho impiedoso e a especulação financeira, implacável nos seus horários e regulamentos, regida à mão de ferro, com qualquer coisa de bem kafkiana.

Foi assim que, já quarentão, aportei em São Paulo de cabeça-feita, encolhido na minha carapaça de provinciano, acautelado contra os paulistanos, o seu trato ósseo movimentado a cifras. Chegada de ônibus, numa madrugada friorenta. Na sua aparência imediata, São Paulo se mostrou de cara amarrada. Me mantive na moita, em estado de expectativa, emparedado. Mas os olhos do homem já não eram a cabeça do menino. Mais logo, no corpo-a-corpo do dia-a-dia, furtivamente, a secura da cidade foi se esgarçando, e pude arrancar-lhe os disfarces de pedra, penetrar nas galerias algodoadas de seus meandros. Minha iniciação se deu através de retalhos, fragmentos.

Com mais umas semanas, na feira do Pacaembu, Jandira das Canárias guardava para o meu paladar os figos mais gostosos e aveludados do mundo; das suas mãos rosadas de vendeira, eu recolhia oferecidas polpas entreabertas; na Casa do Norte, avenida São João, encontrei, no fundo de um saco de aniagem (e não de plástico!) o mudubim do meu avô, a farinha de mandioca de Itabaiana, a cachaça de Frei Paulo --era demais! E ainda os grãos de milho com que enchia os bolsos para os pombos do Arouche, onde Joaquina florista, entre dois dedos de prosa, me preparava um buquê com as rosas encarnadas do canteiro da minha finada avó. Quando a solidão apertava, eu tomava a São João a partir da Marechal Deodoro, batia perna até o viaduto do Chá. Mas nunca me deixei afetar pelas fantasmagorias e errâncias de "flanêur". Digam aí, vocês que me saudavam: Simeão, o meu barbeiro; Romualdo, o garçom da Sé, de turmalina grandona no anular. Me afundava na multidão, mas o seu fascínio nunca me inebriou, jamais fui a ela como a um espetáculo.

Dessas andanças e da gente boa que me cercou na USP, nos bares e nas ruas, recolhi outra imagem de São Paulo. Não guardo dela uma visão arrebatadora, mas algo muito mais entranhado e profundo: uma sensação de amorosa plenitude, de íntima cumplicidade. Me acostumei a enxergar São Paulo como uma cidade cheia de pruridos e pudores. Só pouco a pouco nos desvela a sua intimidade, se faz aconchegante, reveladora de encantos. Resignada e pedagógica, aguarda que cada um reconheça os seus equívocos. Apesar da violência, do corre-corre, nela se cultiva o respeito pelo próximo, o senso de justiça. Aqui as relações humanas são mais brutais, mais descarnadas. Nela há mais brandura, organização, seriedade, deferência. O seu habitante não desaparece ou se anula. A multidão não estrangula a vida afetiva. Dela, a quem nada dei de proveitoso, tenho recebido todos os favores.

São Paulo consegue amalgamar todas as diferenças no mesmo cadinho, e empresta a cada pessoa alguns dos traços que modelam o paulistano. Isso sempre me pareceu uma coisa espantosa. Todos os que chegam são receptivos a seu ritmo e a seus costumes. inconscientemente, vão adotando os seus hábitos, caindo nas suas malhas, se rendendo ao fascínio de um doce governo invisível. Em vez de a cidade se desfigurar no torvelinho das influências mais díspares, essa domadora de gentes se impõe carinhosamente com o carisma da personalidade que a torna soberba e distinta.

Francisco J. C. Dantas, sergipano, é autor de "O Coivara da Memória", "Os Desvalidos" e "Cartilha do Silêncio"

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