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São Paulo, 450 25/01/2001

Tietê influenciou a formação da cidade

NICOLAU SEVCENKO
especial para a Folha de S. Paulo

O que explica São Paulo é o Tietê. Com seu curso surpreendente, correndo para as terras interiores, ao invés de descer para o mar, ele se tornou desde muito cedo um instrumento estratégico para o controle de vastas extensões territoriais. Através dele se pode facilmente atingir a ampla cadeia hidrográfica do rio Paraná, rumando então em direção às regiões platinas ou para os lados do Pantanal e da Amazônia ou ainda para as cabeceiras do São Francisco.

Essa é a razão pela qual, desde tempos imemoriais, inúmeros agrupamentos indígenas se estabeleceram nos campos de Piratininga, dispondo de uma natureza prodigiosa e das possibilidades de conexão com praticamente todos os quadrantes do território. No sentido em que os fenícios eram considerados um povo do mar, esses indígenas eram os povos dos rios.

É claro que essa situação privilegiada não escapou aos primeiros colonizadores nem, muito especialmente, aos jesuítas. Os padres da Companhia de Jesus logo perceberam quão decisivo seria o domínio dos campos de Piratininga e, a partir daí, o controle sobre o Tietê, abrindo o caminho para a consolidação de seu sonho visionário de um vasto império jesuítico-guarani, abrangendo todos os vastos sertões interiores do Brasil, até o infinito dos pampas platinos. Uma aspiração quase realizada, não fora o fato de os vicentinos, fracassados no seu projeto açucareiro, acharem mais lucrativo traficarem com os índios educados pelos padres.

No processo de se especializarem na escravização dos indígenas e diante da total carência de mulheres européias, os vicentinos, através de múltiplos acasalamentos com as moças locais, deram origem a uma civilização de mamelucos. Gente essa que, criada pelas suas mães índias, só se comunicava pela língua-geral (uma língua pidgin comum aos povos tupi-guarani), mantinha os hábitos indígenas mesclados com rudimentos do cristianismo dos jesuítas e, mais importante de tudo, se movia habilmente pelos rios. A partir desse ponto eles não eram mais vicentinos, mas haviam se transformado no que se passou a chamar de "os paulistas". A mera menção desse nome causava terror e ódio, pelas práticas brutais desses predadores de seres humanos e pelo fato de as autoridades portuguesas, fixadas nas orlas litorâneas, não conseguirem exercer qualquer controle sobre eles.

Desde suas origens, portanto, São Paulo era, literalmente, uma ponta de lança. A população mameluca do aldeamento o usava como base a partir da qual flagelavam as missões jesuíticas pelos sertões. Criou-se a partir daí um padrão histórico básico, que se tornaria permanente. Por exemplo, após a custosa campanha para se livrar do domínio espanhol (1580-1640), a Coroa portuguesa enviou técnicos para treinar os paulistas no reconhecimento de pedras e metais preciosos. Nas suas incansáveis itinerâncias pelo território, eles não demorariam a encontrá-los, na região das Gerais, em fins do século 17.

A partir daí, toda a vida da cidade passa a girar em torno do abastecimento das minas. Quando as minas esgotam, mas os imprevistos da história trazem a corte imperial portuguesa para um exílio involuntário no Rio de Janeiro, em 1808, de novo toda a atividade paulista se volta para servir os ricos alienígenas.

Como se vê, a situação se repete como um moto-contínuo. O destino de São Paulo, assinalado pelo curso profético do Tietê, é o de se mover para além de si mesma. Desde suas origens, a comunidade existe como um fluir contínuo, uma área de transição, um lugar de onde se parte, um ponto de fuga. Daí a miríade de cidades do interior paulista, ou as inúmeras comunidades do Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Uruguai por um lado, Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás pelo outro, fundadas por essas falanges errantes. Ao mesmo tempo, São Paulo era um ponto obrigatório de passagem para todas as tropas que vinham do sul, em direção às minas ou à corte. Ou o ponto de encontro dos latifundiários do interior, que se reuniam um mês por ano na capital, onde estava sediada a Câmara da Província. Afora as feiras, as tropas, os deputados ou os estudantes, quando após a Independência foi criada a Academia do Largo de São Francisco, todos transitórios, São Paulo era uma cidade dominada pelas mulheres e seus filhos, na medida em que os homens viviam numa permanente itinerância, multiplicando famílias por onde passavam.

Essa condição transiente da história paulista foi brilhantemente estudada pelo professor Sérgio Buarque de Holanda e sua discípula, a professora Maria Odila da Silva Dias. Pode ser constatada nos documentos históricos, como por exemplo a estupenda coleção de aquarelas de Edmund Pink --recentemente adquirida pela Bovespa num leilão londrino--, revelando São Paulo no momento da Independência. Em grande destaque na coleção, aparecem o chafariz da Misericórdia e a torre da antiga Catedral da Sé, construídos pelo genial arquiteto negro Tebas, atestando como depois de ter sido aldeamento indígena e mameluco, São Paulo se tornou uma comunidade predominantemente negra e mulata.

Com o advento do café e da grande imigração estrangeira, a cidade virou metrópole e logo, com as indústrias e as migrações internas, em menos de um século, tornou-se a segunda maior conurbação do planeta. As sucessivas reformas urbanas devastaram os vestígios do passado e a possibilidade de qualquer sentido de identidade. O que restou foi a sensação de local provisório, a base de ação de um núcleo de oportunistas, um bando de predadores que, depois de terem devastado tudo ao redor, se puseram a saquear a própria cidade e seus concidadãos. No limiar de um novo século, mais que nunca é hora de virada. Que São Paulo, de uma vez por todas, se volte para si mesma e para seus filhos, nativos e adotivos. Hora de inverter o curso dessa história e inventar as bandeiras da solidariedade.

Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura da Universidade de São Paulo. É autor, entre outros, de "Pindorama Revisitada".

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