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Picasso 06/10/1996

Linhas que conduzem do moderno ao contemporâneo

Obras expostas na Bienal constituem um aprendizado para o espectador

CARLOS E. UCHÔA FAGUNDES JR.
especial para a Folha

Ao fazer dialogar as principais tendências da arte no mundo e dar-lhes lastro histórico, a Bienal Internacional de São Paulo areja o olhar do público e dos artistas brasileiros e tem papel formativo importante. Sabendo bem disso, o curador dos dois últimos eventos, Nelson Aguilar, tem enfatizado este papel. Como a mostra passada, em sua parte histórica, esta traz artistas que são balizas para a arte contemporânea, dando-lhe contexto a partir do modernismo. Este ano vieram, de maneira enxuta e qualidade contundente, inventores da arte deste século do calibre de Picasso, Munch, Klee e Warhol.

É a principal exposição de Picasso no Brasil até hoje. Na verdade, a 2ª Bienal, em 1953, tinha mostrado "Guernica", talvez a mais importante obra do modernismo, que resume as principais questões de que trata a arte moderna, tanto plásticas como em relação ao entorno histórico. Mas agora estão aqui 47 boas obras, representantes de todos os momentos cruciais da obra picassiana. O que vale dizer que elas tocam nos pontos nevrálgicos da articulação entre a arte moderna e a arte contemporânea: vão de 1895 a 1970, quase um século de história da arte bem escrita.

Dando um passeio pela mostra, logo encontramos "Nu sobre Fundo Vermelho", de 1906, obra importante para entender as duas linhas que vão se tramando na obra inteira de Picasso. Essa mulher volumosa junta uma vertente que podemos chamar de "classicismo" picassiano --cujas origens são o universo mediterrâneo, greco-romano e o classicismo francês--, mas traz junto de si a investigação de um novo espaço pictórico, preocupando-se, nesse momento, com os volumes, e em seguida tratará dos planos e conduzirá ao cubismo.

Em Picasso, portanto, há sempre esta sobriedade "clássica", humanista, que é constantemente contraposta a uma agressividade formal, iconoclasta. Esta traz o novo e introduz ao intra-artístico, à auto-referenciação da arte, à progressiva destruição do referente e do tema que é o achado da arte moderna. Logo depois destas mulheres maciças, em 1907, Picasso pintou "Les Demoiselles d'Avignon", pontapé inicial do cubismo.

Caminhando mais um passo achamos "Femme en Vert", de 1909, retrato cubista de Fernande Olivier, companheira do artista na época. Aí já estamos no início do cubismo. São obras em que o artista vai tateando os planos que compõem a figura, até que chegue a decompô-la nos planos paralelos à tela; então estará plenamente no cubismo analítico e depois, ainda mais enxuto e radical, no cubismo sintético --bem representado na exposição.

Nas obras seguintes da mostra, vê-se que o "tema" passa a ser quase um pretexto ou um jogo de suspensão de sentido; o que conta é a operação pictórica que lida com a indeterminação da espessura espacial. Também o sujeito-artista se apaga, sendo uma espécie de operador impessoal desse "método" de pintar. É como uma dissecação da pintura em seus elementos internos, sobretudo o espaço, e em suas relações, cada vez mais mediadas, com o fora, com o mundo e a história --ruptura com o referente. Foi nessa época que Picasso pintava com Braque, e ambos produziam obras do cubismo analítico, das quais não se podia dizer qual dos dois era o autor, dado que elas resultavam desse "método".

Na parede dos desenhos há um com colagem de jornal, "Cabeça de Homem", de 1912, em que um grande "T" articula toda a composição. Ela é importante como amostra de um momento crucial de enxugamento da obra de Picasso, em que se pode ver a "representação da ausência", ou um raciocínio plástico e conceitual que leva à noção de simulacro e anuncia questões centrais da arte contemporânea, fazendo entrever um Picasso "pós-moderno" que é rastreado em sua última fase, dos anos 60-70, que tenho chamado "Picasso de Avignon".

Depois de vários exemplos da radicalidade do cubismo sintético, vai surgindo uma linha sinuosa que acompanha aqueles planos paralelos à tela, destravando-se em sinuosidades quase automáticas, que passam a constituir o "surrealismo" de Picasso, nos anos 20. Desse momento é o inquietante "O Acrobata Azul", de 1929. Já nos anos 30 essa linha se infla em volumes, criando grandes cabeças surrealistas e banhistas arredondadas (sua amante Marie-Thérèse), ou em retratos femininos angulosos (sua companheira Dora Maar), de que "La Muse", de 1935, é um ótimo exemplar na Bienal. Dessa mesma combinação de cubismo e surrealismo nasceu "Guernica" em 1937.

Nos anos 50, Picasso se volta, em grandes séries de pinturas, à consideração dos mestres e da história da arte, transpondo-a ao seu próprio universo. Desse momento nos lembra na mostra "La Californie", de 1956, ano da primeira grande série, "Ateliers".

Entrando nos anos 60, o espaço na pintura vai se tornando mais fluido e a pintura vai se compondo por manchas de tinta de saturação desigual, superpostas, adensadas, ou deixando intervalos de tela nua. Como já tinha acontecido no período cubista com as colagens e a areia na tinta, a pintura se deixa entrever no seu fazer-se em sua contextura material e temporal, nas superposições e estratos simultâneos, o que leva à consideração de um novo estatuto de existência da obra e uma nova temporalidade. Podemos ver isso em "Rembrandt e Saskia", de 1963, que faz parte de uma série de obras sobre "O Pintor e Seu Modelo", em que são investigadas as relações pintor-pintura e sua contraface homem-mulher, ou a libido como energia vital, transformadora reversível à operação de arte.

Vendo "Matador e Mulher Nua", de 1970, chegamos ao período de Avignon, corolário da obra de Picasso (1968-73), em que ele repensa toda a pintura, a mitologia interna de sua obra, que preside a retransformação contínua do "tema" internalizando-se no automático e precário do gesto até chegar a ser "procedimento". Inquire as temporalidades envolvidas na obra e sua espessura vivencial, deixando perguntas que seriam assumidas pela arte dos anos 80 e 90.

Entre tantos achados, um olhar atento e prazeroso a essas obras pode desvendar o início de muitas linhas que conduzem a investigação contemporânea visível na Bienal. O principal deles diz respeito aos momentos da transformação do sujeito: ao fim, a obra passa a ser sujeito, e nós, observadores, passamos a ser seu objeto. Ela nos engole com seu universo próprio. Engole-nos como um sorvedouro de sentidos. E às vezes engole-nos fisicamente, como nas obras de Walter de Maria ou de Regina Silveira. Enfim, a arte possibilita novos territórios existenciais para esse fim de milênio, como antídoto à banalização sem espessura, ahistórica e totalizante do puro simulacro presente na cultura de consumo. Mas esta inversão, que se dá progressivamente nos desdobramentos do moderno para o contemporâneo, só é visível plenamente em artistas mais recentes. Pensemos no sujeito em Anish Kapoor, em Sol Lewitt e Louise Bourgeois, entre tantos outros.

Carlos E. Uchôa Fagundes Jr. é artista plástico e historiador, autor de "O Beijo da História: Picasso como Emblema da Contemporaneidade".

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