Folha Online 
Ilustrada

Em cima da hora

Brasil

Mundo

Dinheiro

Cotidiano

Esporte

Ilustrada

Informática

Ciência

Educação

Galeria

Manchetes

Especiais

Erramos

BUSCA


CANAIS

Ambiente

Bate-papo

Blogs

Equilíbrio

Folhainvest em Ação

FolhaNews

Fovest

Horóscopo

Novelas

Pensata

Turismo

SERVIÇOS

Arquivos Folha

Assine Folha

Classificados

Fale com a gente

FolhaShop

Loterias

Sobre o site

Tempo

JORNAIS E REVISTAS

Folha de S.Paulo

Revista da Folha

Guia da Folha

Agora SP

Alô Negócios

Picasso 08/12/1996

Retrato de um artista quando velho

Carlos Uchôa estuda o lugar e a influência de Picasso na arte contemporânea

TADEU CHIARELLI
especial para a Folha

Passadas duas décadas da morte de Pablo Picasso, surge este livro de Carlos Uchôa, comprometido com o resgate do caráter contemporâneo da obra do artista, por meio sobretudo da análise dos últimos anos de sua produção. Para entender de fato seu propósito, seria fundamental partir do preconceito existente sobre a arte de Picasso --preconceito que o autor ousou desafiar: a circunscrição da importância da obra picassiana apenas ao período moderno da arte deste século.

Para a maioria dos estudiosos da obra de Pablo Picasso, ela se confunde com a própria modernidade da arte deste século, sendo em muitos casos a principal propulsora da mesma. Inventor do cubismo, articulador avant la lettre do surrealismo, artista moderno que soube plasmar valores éticos à sua estética moderna, a obra de Picasso até o final da segunda metade deste século acabou por se misturar à sua própria biografia, tornando impossível para muitos distinguir os limites entre autor e obra, transformando Picasso num dos principais mitos da modernidade.

No entanto, após o seu último período áureo (leia-se a época da produção de "Guernica", 1937), Picasso teria deixado de articular em sua obra a própria modernidade tornando-se dali para frente, quando muito, um epígono de si mesmo, um pintor que, devido à perda de qualquer criatividade, teria passado o resto da vida a citar grandes mestres da pintura, filtrados pela poética cubista, que ajudara a fundar.

Uchôa demonstra claramente essa visão sobre os últimos anos da obra picassiana ao citar as palavras do estudioso inglês John Berger no livro "The Success & Failure of Picasso":

"A maioria dos trabalhos tardios importantes de Picasso são variações de temas emprestados a outros pintores. Por mais interessantes que possam ser, não são mais que exercícios de pintura --tais como se esperaria que um jovem praticasse, mas não um velho que conquistou a liberdade de ser ele mesmo".

Contra esse tipo de abordagem é que Uchôa centrará seu interesse.

Ancorado tanto em sua sensibilidade de artista conectado com as questões da arte contemporânea, quanto em sua formação de historiador, Uchôa, em seu propósito de resgatar a obra de Picasso para o debate artístico da atualidade, teve que lutar contra um outro preconceito, já enunciado acima e do qual por pouco não se torna mais uma vítima: aquele que não distingue Picasso de sua obra, aquele que enxerga o artista como um dos maiores mitos da modernidade.

No caso de Uchôa, o perigo ainda era maior: na tentativa de tornar visível a contemporaneidade de Picasso, o autor corria o risco de estender aquele preconceito para toda a arte do século 20. Ou melhor, se ele não tomasse cuidado, o leitor poderia sair da leitura de seu estudo com a impressão de que o pintor espanhol não apenas teria sido o herói da arte moderna como também o "grande pai" da arte pós-moderna.

Em alguns momentos do livro, até é possível flagrar Uchôa a pensar Picasso como tal. Porém essa absolutamente não é a tônica do estudo. Pelo contrário: munido de uma forte bagagem intelectual, que equilibra a admiração pelo seu objeto de estudo, Uchôa consegue, de maneira extremamente original --e sem resquício nenhum de idolatria acrítica--, lançar novas possibilidades de se pensar a obra de Pablo Picasso no quadro dos questionamentos da arte surgidos após a Segunda Grande Guerra.

Para ele, o índice principal da transformação de Picasso, de emblema de artista moderno, também para emblema do artista contemporâneo, residiria justamente em suas pinturas produzidas a partir dos anos 50, quando o artista vai aos poucos deixando de lado os seus "temas" --muitíssimas vezes buscados nos grandes mestres do passado--, transformando-os em "procedimentos" puramente pictóricos. Para o autor, esse "último Picasso" teria reafirmado que o devir da pintura se encontraria na exacerbação de sua fidelidade a si mesma, buscando em seus próprios elementos constitutivos as bases para a sua sobrevivência.

Nota-se por esse argumento que, por trás do pensamento do autor, estariam resquícios do pensamento do crítico americano Clement Greenberg, extremamente preocupado em reafirmar a necessidade de a pintura preservar sua autonomia dentro da contínua análise de seus limites. Mas será a própria produção tardia de Picasso quem livrará Uchôa desse determinismo modernista tão restritivo.

O autor, analisando essa produção, perceberá que o artista, em sua fixação em citar os mestres do passado, acabará trazendo para os limites da pintura a história da visualidade que ela própria criou. Picasso, buscando nos artistas do passado as questões pictóricas que eles propuseram, e inserindo-as dentro de sua própria linguagem, teria trazido para o presente da arte um questionamento que acabaria por superar a autolimitação da arte moderna, tornando os últimos trabalhos que realizou verdadeiras pinturas pós-modernistas, anunciando os elementos que caracterizariam a pintura dos anos 80 e 90.

Para Uchôa, a partir de 1953, as citações feitas por Picasso dos antigos mestres não se configurariam mais como "paródias", e sim como "pastiches", citações auto-referentes. Ao contrário de Manet, que, em seu diálogo com o museu, com o passado pictórico, teria inaugurado o modernismo, em Picasso "o referente, Ingres, Delacroix, David, é destruído enquanto tal ao ser ilhado num passado inacessível que só pode ser visto por intermédio da imagem pré-formada que se tem dele. Tal é o processo de formação de ilhas de presente absoluto, incomunicáveis entre si, que marcam a característica 'esquizofrênica' da 'pós-modernidade'±".

Essa interpretação está profundamente ligada ao conceito de pós-modernidade encontrado em Fredric Jameson, para quem o pós-modernismo, no plano da arte e da cultura, estaria ancorado no território do "pastiche" e da "esquizofrenia". É no conceito de "pastiche" --um procedimento de citação que "se desprende do modelo a que se refere, criando um outro plano de existência com uma lógica própria, passando a ser auto-referente"-- que Uchôa encontraria o argumento principal para introduzir definitivamente a obra picassiana como emblema da contemporaneidade na arte.

Foi por meio do uso exacerbado desse procedimento metalinguístico que Picasso redimensionou o percurso final de sua obra, distanciando-a dos preceitos mais aceitos da modernidade. Com esse raciocínio extremamente bem apresentado, Carlos Uchôa demonstra, portanto, que o "último Picasso" não é absolutamente menor que aquele primeiro. Se esse pôde ser visto como elemento emblemático da modernidade na arte, a produção que realizou nas últimas décadas de sua vida pode ser entendida como emblema da arte pós-moderna.

Sem dúvida alguma, este estudo reconduz de maneira extremamente original a obra de Picasso para o debate da arte contemporânea, uma vez que amplia de maneira até então inusitada o caráter seminal de Picasso para além da arte moderna.

Sei que é extremamente antipático em qualquer resenha levantar questões que desde o início o autor do livro comentado não se propôs a discutir. No entanto, o estudo de Uchôa levanta tantas questões para repensar a contribuição de Picasso no âmbito da arte deste final de século que não resisto à tentação de levantar aqui algumas indagações que o autor não abordou (ou não viu necessidade de aprofundar) em seu livro. Teria sido interessantíssimo, por exemplo, que, ao trazer Picasso para o papel de "emblema da contemporaneidade", o autor se propusesse a discutir dois artistas dos quais ele necessariamente sequestrou esse papel para dá-lo ao pintor espanhol: Marcel Duchamp e Giorgio De Chirico.

Embora Uchôa faça referência ao primeiro, talvez coubesse debruçar-se mais atentamente sobre o caráter de "oposição" que as atitudes duchampianas ganharam no quadro da arte deste século, quando comparadas à obra de Picasso. Até que ponto a obra, ou "não-obra", de Duchamp representaria, de fato, o "outro lado" da arte deste século, no qual se localizaria Picasso? Após a leitura do estudo de Uchôa seria possível ainda pensar a arte do século 20 dentro desse caráter dicotômico, tendo Picasso e Duchamp sempre em oposição?

Por outro lado, se o autor demonstra de maneira tão plausível que é impossível refletir sobre a pós-modernidade na arte sem levar em conta o legado do "último Picasso" --uma vez que o artista se relaciona com a pintura da mesma maneira que seus futuros pares dos anos 80 e 90--, não seria pertinente relacionar a obra do artista espanhol com aquela de Giorgio De Chirico? A obra de De Chirico, logo após sua fase "metafísica" também não teria se processado sob o signo do "pastiche", antecipando não apenas os pós-modernistas dos últimos anos, como igualmente as últimas produções de Picasso?

Apenas um estudo que de maneira tão arguta faz a revisão do papel da obra de um artista da estatura de Picasso dentro do quadro da arte deste século pode suscitar a necessidade de revisão do papel que esses outros artistas de fato exerceram nesse mesmo contexto.

Este é o verdadeiro beijo da história, dado por esse importantíssimo estudo feito por Carlos Uchôa.

Tadeu Chiarelli é professor de história da arte no Brasil na Escola de Comunicações e Artes da USP e curador-chefe do Museu de Arte Moderna de São Paulo.

A OBRA
O Beijo da História - Picasso como Emblema da Contemporaneidade - Carlos E. Uchôa Fagundes Jr.
Editora 34
(r. Hungria, 592, SP, CEP 01455-000, tel. 011/816-6777).
192 págs.
R$ 21,00.

Assine a Folha

Classificados Folha

CURSOS ON-LINE

Aprenda Inglês

Aprenda Alemão


Copyright Folha de S. Paulo. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress (pesquisa@folhapress.com.br).