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Picasso 14/08/1999

A criação radical

O poeta Ferreira Gullar escreve sobre Picasso, cujas obras do período entre 1937 e 1945 são expostas no Brasil

FERREIRA GULLAR

"Picasso - Anos de Guerra, 1937-1945" é o nome da exposição que o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro está apresentando. Esse título tem uma ligação apenas de referência com respeito às obras expostas, uma vez que, se é fato que a guerra encontrou expressão na obra de Picasso, não a determinou nem temática nem estilisticamente.

A obra que de fato nasceu do episódio da guerra foi "Guernica", quadro que expressa, como se sabe, a revolta do artista em face do bombardeio daquela cidade espanhola pelos fascistas. A obra não está na exposição e essa ausência, de certo modo, a descaracteriza, uma vez que todas as demais peças --à exceção talvez de "A Mulher que Chora"-- têm uma vinculação secundária com a guerra. Pode-se alegar, naturalmente, que os quadros e gravuras produzidos por Picasso durante aqueles anos possuem uma dramaticidade --expressa nas cores sombrias e nos temas às vezes macabros-- que refletem o massacre e a destruição resultantes do conflito, o que é correto.

Obra dramática

Não obstante, os terras e cinzas sombrios que dominam algumas dessas telas já se encontram em obras anteriores do artista, o mesmo ocorrendo com a violentação da figura humana. Não pretendo com isso negar a influência que aqueles anos de guerra tiveram sobre Picasso, mas apenas ponderar que essa influência não opera nenhuma mudança fundamental em sua obra, essencialmente dramática.

A exposição reúne 140 peças, mas, dessas, menos de 20 são quadros e poucas são esculturas; a vasta maioria é constituída de gravuras, desenhos e fotografias. Dentre as fotos --além das que apenas registram momentos da vida do artista com seus amigos e familiares ou em seu espaço de trabalho--, há uma série, de especial interesse, feita por Dora Maar, que registra as diferentes etapas por que passou a realização da grande tela "Guernica".

Já as gravuras são todas elas expressão legítima do extraordinário desenhista e gravador que foi Picasso: nelas se manifesta, além da inventividade temática e formal, a competência do gravador, do artesão, que, também nesse plano, violenta as normas e as técnicas. A maior parte das gravuras expostas tem por tema o rosto de Dora Maar, companheira do artista nesses anos de guerra. Tanto na gravura quanto na pintura o rosto de Dora aparece como uma obsessão.

A levar-se em conta as palavras do próprio Picasso, segundo as quais ela era essencialmente "a mulher que chora", pode-se admitir que, ao retratá-la, estava expressando o estado de espírito que a guerra lhe provocava. Essa explicação temática não exclui, porém, antes inclui, a exploração formal do tema: na série em que a figura de Dora se repete com mínimas mudanças, evidencia-se um dos procedimentos básicos do artista no tratamento de seus temas: a necessidade de explorar-lhe as possibilidades formais e cromáticas até exauri-los. A gravura, por suas características técnicas, oferecia-lhe campo propício a esse procedimento.

Picasso escultor

Na escultura, Picasso não foi menos audacioso e criativo. Já em 1912, as guitarras que fez com metal e arame abriram um novo caminho para a escultura moderna: uma espécie de escultura nascida da pintura, como as que realizaria, em 1914 ("Bandolim e Clarinete") e em 1915 ("Violão"), com madeira e metal. Na mostra atual, destacam-se a impressionante "Caveira" (1943) e "O Ceifador", esta um misto de "assemblage" e formas inventadas, resultando numa figura ambígua e enigmática que tanto parece expressar a vida quanto a morte. A "Caveira" demonstra o profundo sentido da expressividade das formas, traço marcante de tudo o que Picasso realiza.

Essa mesma expressividade garante a qualidade dos quadros que integram a mostra do MAM carioca. Ela está presente com igual força tanto no "Grande Nu Deitado" quanto na "Mulher de Chapéu Azul", tanto no "Menino com Pombas" quanto na "Mulher que Chora" ou em qualquer dos outros exemplares expostos. A deformação das figuras (seja um gato, seja uma ovelha, seja uma mulher), que às vezes pode confundir o espectador, resulta da necessidade do pintor de acentuar essa expressividade até o limite extremo.

Em alguns momentos --especialmente quando se trata de figuras humanas--, a deformação beira a caricatura, fazendo com que a leitura imediata dificulte a percepção da expressividade da forma em sim mesma. Por isso é necessário, diante de cada uma dessas obras, abstrair-se do que as formas figuram ou representam para apreender-lhes o significado essencial e a intenção efetiva do artista, e sua força criativa. Vale destacar, por outro lado, a tela "Homem com Chapéu de Palha", construída de pinceladas isoladas e pontos variados de cor, gerando um campo cromático e gráfico intenso e coruscante.

Neste sentido, esta exposição, muito embora não seja uma antologia de obras-primas de Picasso, oferece-nos a oportunidade de refletir sobre o significado de sua obra e de novo testemunhar sua genialidade. Neste caso, como em outros, é de bom tom negar a importância de quem, como ele, esteve tão presente na arte deste século, sendo por todos louvado e incensado. Dizer, como alguns críticos disseram, a propósito desta exposição, que Picasso "não criou nada, apenas canibalizou a arte alheia", não pode ser levado em consideração, já que nenhum crítico faria, de boa fé, semelhante afirmação.

É do conhecimento geral que Picasso, graças a sua audácia e criatividade, implodiu a linguagem da arte e desencadeou a revolução artística do século 20. Ele não foi o diluidor de invenções alheias e sim o antecipador daquelas invenções. Basta lembrar o "papier collé" (antecipador do "ready made") e a subversão da linguagem pictórica com o uso de estopa, areia, prego, arame e barbantes na realização dos quadros. Com isso antecipa Kurt Schwitters, que com o "merzbau" anunciou as futuras instalações.

Mas a importância real dos artistas não reside em eventuais antecipações, mas na obra que realizam, como ocorre com Picasso, uma vez que, em cada um de seus quadros, cada desenho, cada gravura, escultura, colagem, cerâmica, sopra a força criadora do artista.

E ao me deter, hoje, nesta exposição, diante de seus desenhos e pinturas, verifico que, sob a aparente facilidade das figuras arbitrariamente inventadas, está o trabalho duro do pintor, a exigência e seriedade com que cada traço, cada forma, cada detalhe é trabalhado. A cabeça da mulher tem dois narizes, e olhos e boca fora de lugar? Mas repare como esses olhos e lábios são fascinantes, como os traços são vibrantes e definitivos. As linhas, as cores, os planos não estão ali apenas para compor as figuras, mas também e sobretudo como elementos expressivos em si mesmos. É uma arte nascida da imaginação fundada no trabalho, no domínio da linguagem que ele subverte e reinventa. Entendo que é não é fácil aceitar plenamente, numa época como a nossa, a genialidade de um artista para quem fazer arte era a entrega total ao trabalho e ao aprofundamento constante das virtualidades da linguagem artística.

Picasso promove a revolução copernicana na pintura: é com ele que a linguagem pictórica liberta-se da imitação da natureza e ganha plena autonomia. Cézanne muda o mundo em pintura. Picasso reinventa o mundo na pintura. Nele a pintura não repete a natureza, mas cria os seus próprios objetos, seus próprios "seres": a pintura concorre com a natureza.

Não é que esses objetos e seres criados por ele sejam alheios à natureza, que repilam qualquer ligação com ela, como na pintura de Mondrian, por exemplo. Em Picasso, os objetos-signo são parentes dos objetos-coisa, mas não são duplos deles: têm sua própria natureza --que é pictórica, gráfica, "artística"-- e suas próprias leis.

Não se trata de que, nesses objetos, a natureza esteja decifrada, revelada. Nada disso. Neles, a natureza se exprime como "Picasso", exprime-se picasseanamente: por meio dessa arte, a natureza cria, expõe-se com uma intensidade, síntese e força expressiva que ela, como natureza, criando diretamente, raras vezes tem.

É com Picasso que a pintura deixa de ser --em qualquer nível-- imitação para tornar-se criação. Mas esse salto gera um impasse, uma vez que, na verdade, destrói as normas da linguagem pictórica e "propõe" sua permanente invenção: a arte como criação radical a cada momento, a cada obra. Para consegui-lo há que ser gênio. E nem Picasso o conseguia sempre.

A pintura contemporânea não logrou libertar-se desse impasse até hoje. Mas se Picasso não apresenta fórmulas, indica o caminho a seguir: a arte é uma recriação da natureza, não a partir dela, nem a partir da linguagem existente, e sim a partir da tela em branco. Ou seja: funda-se na capacidade de invenção do artista. Por isso ele dizia: "Eu não procuro, encontro".

Ferreira Gullar é poeta, autor, entre outros livros, de "Rabo de Foguete" (Revan) e "Muitas Vozes" (José Olympio).

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