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Picasso 21/01/2004

Picasso - Texto do catálogo da exposição

DOMINIQUE DUPUIS-LABBÉ*

Os anos de juventude e de formação (1881-1900)

Pablo Picasso nasceu em Málaga, pequena cidade da Andaluzia, no sul da Espanha, em 25 de outubro de 1881, no seio de uma família burguesa sem grandes posses. Seu pai, d. José Ruiz Blasco (1838-1912), ensina desenho na Escola Provincial de Belas Artes, da qual é ex-aluno, desde 1879, e é também conservador do pequeno museu municipal desde junho do ano seguinte. É um homem brilhante, sedutor, espirituoso, mas que logo se vê confrontado com dificuldades financeiras: "Os deveres assumidos com o casamento e as dificuldades econômicas, que se agravaram quando sua família aumentou, entraram em choque com a petulância andaluza de seu ardor juvenil. Os anos passaram. Com o tempo, aprendeu a dissimular a amargura sob a máscara de um sorriso malicioso que, no homem inteligente que era, sublinhava o sarcasmo ou esmaecia o sonho que fazia nascer nele a imagem que os outros tinham sobre a sua pessoa e a idéia que ele próprio fazia de si.

"Sua verdadeira paixão é a pintura, à qual se entrega assim que dispõe de tempo livre. D. José pinta quadros realistas, que seu filho qualificará mais tarde de "quadros de sala de jantar".

De fato, não são grandes obras, mas antes telas destinadas à decoração e cujo motivo recorrente é o dos pombos, semelhantes aos que se aninhavam às centenas nos plátanos da Plaza de la Merced, onde morava a família Picasso: "Meu pai pintava quadros para sala de jantar, aqueles em que se vêem perdizes e pombos, lebres e coelhos; animais de pêlo e de pluma. Suas especialidades eram as aves e as flores. Sobretudo, pombos e lilases. Lilases e pombos... Um dia, fez uma tela imensa de um pombal cheio de pombos no poleiro."

O jovem Picasso vive assim num meio inteiramente devotado à arte, e é muito natural que o pai se encarregue de sua formação, sem dúvida tendo já no espírito o sonho de destinar ao filho a uma carreira acadêmica à qual ele próprio não pode aspirar. E o fez com tanto prazer que, de acordo com o testemunho da mãe do pintor, o primeiro som articulado pelo garoto foi "piz, piz" referindo-se a "lapiz" - lápis em espanhol. É claro que a profissão do pai favoreceu a eclosão rápida dos dons do artista ? com oito anos de idade, Picasso pinta seu primeiro quadro, representando um picador de tourada a entrar na arena sob o olhar dos aficionados ?, mas as evidentes propensões do menino eram tão acentuadas que teriam se manifestado cedo ou tarde. É difícil determinar exatamente o que foram as relações entre esse pai, modesto servidor da arte pictórica, e seu filho, no qual via desabrochar um talento que muito cedo o ultrapassou. Com certeza d. José deve ter tido um legítimo orgulho, mas pode-se pensar que, de forma inconsciente, ao mesmo tempo sentiu inveja. Fortemente impregnado das idéias acadêmicas de seu tempo, é certo também que ficou desconcertado com a orientação que Pablo seguiu, misturando-se ao meio vanguardista em Barcelona e depois em Paris, o que não impediu o pai de sustentá-lo financeiramente em sua primeira temporada parisiense, em 1900, durante a qual Picasso passará a assinar com o nome da mãe (outro desgosto para d. José?). A mãe, d. Maria Picasso y López (1855-1939), doce e afetuosa, cuida da casa e da educação dos filhos; depois do nascimento de Pablo, dá à luz duas filhas: Dolorès (1884-1958), a quem chamavam Lola, e Concepción (1887-1895), tratada por Conchita. A morte da última, em La Coruña, afetará particularmente Picasso, que adorava essa irmã mais jovem cujo nome deu à própria filha, Maria de la Concepción, apelidada Maya, nascida em 1935 de seu relacionamento com Marie-Thérèse Walter.

O pintor cresce numa atmosfera quase exclusivamente feminina; além da mãe e das irmãs, vivem também na casa sua avó materna e as irmãs de d. José, Josefa e Matilda. Seu isolamento de único homem nesse gineceu voltado à educação, às conversas e às atividades "de mulher" pôde contribuir para o nascimento da curiosidade insaciável que Picasso experimentou a vida inteira pelo sexo oposto, pelo mistério feminino que para ele teria conotações eróticas permanentes. Sua mãe foi certamente sua mais fiel admiradora; a fé que depositava nele, em sua personalidade e em suas capacidades é tocante, como mostra o trecho de uma carta que escreveu ao filho, em 1936: "Disseram-me que estás escrevendo. De ti, acho tudo possível; se um dia me disserem que rezaste a missa, também acreditarei." Cercado de afeição, o pequeno Pablo se compraz em casa e na rua, mas se aborrece na escola, onde, para passar o tempo, rabisca nos livros e cadernos desenhos que revelam seu jovem talento. Para ele, felizmente, a vida está em outra parte.

A Málaga de sua infância é também a cidade do deslumbramento mediterrâneo, banhada de sombra e de luz, prostrada nas horas mais quentes do dia sob os raios violentos do sol, e que desperta para saborear as frutas maduras e os clamores da tourada, cujo espetáculo não pode deixar de marcar intensamente a sensibilidade do menino: o ouro e o sangue, o silêncio e o ruído, a vida e a morte ali se encontram.

"Eu devia ter uns dez anos quando meu pai levou-me para ver combater El Lagartijo. Lembro-me de seus cabelos brancos, de um branco de neve. Naquela época, os toureiros não se aposentavam tão jovens como agora. Aliás, os touros também eram diferentes, enormes, e investiam contra os cavalos até vinte vezes. E os cavalos caíam como moscas, espalhando suas entranhas por toda parte. Era horrível! Época diferente, touradas diferentes... (...) também conheci Cara Ancha, ainda que nunca o tenha visto tourear. Eu era muito jovem e meu pai, um grande aficionado, levou-me a seu quarto de hotel em Málaga, antes ou depois da tourada, não recordo. É uma de minhas lembranças mais fortes da infância. Eu estava sobre seus joelhos e olhava para ele, muito emocionado."

Esse encontro contribuiu para um fascínio nunca desmentido, e cuja sensualidade e crueldade Picasso registrou por escrito, em 1935: "O fedor e o horror das tripas arrebentadas entre mãos assassinas ensangüentadas transbordam do ventre do cavalo, e começa celebração."

É em Málaga que se instalam, em seu espírito e em seu coração, os temas que vão marcar sua obra: as mulheres, a arte, a tourada, o Mediterrâneo. No entanto, por mais profundamente andaluz que seja, Picasso em nada corresponde ao retrato imaginário feito por Sabartés antes de conhecê-lo: "Para um barcelonês de minha classe social, a palavra 'andaluz' soa como um guizo que desperta a curiosidade; entre nós não se poderia pronunciá-la sem um esgar de repulsa. Na imaginação das pessoas de minha província, andaluz quer dizer toureiro, cigano e chulo, aguardente e flamenco, e, para um catalão de Barcelona, nascido na classe média, isso são histórias estrangeiras, sem relação com nossos usos e costumes. Andaluz? Calça apertada na cintura, colete curto, feltro cordobês e madeixas na testa. Pff!..."

Picasso vê sua vida tomar uma nova direção em 1891, com a nomeação do pai para o Instituto da Guarda em La Coruña, na Galícia, costa atlântica da Espanha. Ao sol andaluz sucedem os tons cinzentos e a chuva de La Coruña; à alegria de viver e à despreocupação sucedem, talvez, a monotonia e o desencanto para d. José, e depois o drama da morte da pequena Concepción em conseqüência de uma difteria: "Em La Coruña, meu pai não sai a não ser para ir à Escola de Belas Artes e Ofícios. Ao voltar, pinta. O resto do tempo, olha pela janela a chuva cair...".

A partir de 1892, Pablo freqüenta os cursos de desenho de ornamento ministrados por seu pai e, dois anos mais tarde, outros cursos de três grupos: cópia de gesso; desenho da figura e seção de gesso; pintura e cópia a partir de modelo. Começa então o ensino acadêmico a partir de moldes em gesso de estátuas antigas (pelo qual, aliás, ele nunca sentirá a mesma aversão que Henri Matisse), paralelamente à produção de pequenos desenhos rápidos, ousados, mais livres e espontâneos, nos quais deixa exprimir sua personalidade. Pode-se ficar surpreso com a precocidade do talento de Picasso, de seu perfeito domínio da linha e da cor, da técnica: "Uma coisa curiosa é que nunca fiz desenho de criança. Nunca. Mesmo quando era muito pequeno."9 Mas seu "treinamento acadêmico" lhe permite certamente aprimorar esse talento, como acontece com qualquer aluno dotado nas mesmas condições. De uma outra inspiração, porém, é o retrato pouco convencional da Fillette aux pieds nus [Menina com pés descalços] (início de 1895, Paris, Museu Picasso), cuja virtuosidade é propriamente assombrosa: "As meninas de nossa terra andam sempre com os pés descalços, e a pequena tinha os pés cobertos de frieiras." O tratamento realista e a gravidade do tema mostram a acuidade do olhar do adolescente sobre a condição humana; é uma qualidade que reaparecerá no momento do período azul.

Em 1895, nova virada na vida do jovem Picasso: a família instala-se em Barcelona, onde o pai é nomeado para a prestigiosa Escola de Belas Artes, a Lonja. Picasso realiza ali uma verdadeira proeza, nos dias 25 e 30 de setembro, passando sem esforço pelas provas de admissão da instituição: em dois dias termina os desenhos, para os quais se concedia geralmente aos candidatos um prazo de um mês. Em conseqüência dessa façanha, é autorizado no segundo ano a seguir o curso superior, arte clássica e natureza-morta. Dois anos mais tarde, entrará também facilmente na Academia San Fernando, em Madri ? que pouco freqüentará ?, preferindo as visitas ao Museu do Prado, que lhe permitem o convívio íntimo com El Greco, Velázquez, Zurbarán, Ribera, Sanchez Cotán, Valdes Leal, Goya, os grandes mestres da pintura espanhola dos quais encontramos vestígios em sua obra. De 1895 a 1899, seu pai torna-se seu modelo preferido, em detrimento das representações da mãe ou da irmã Lola. A atenção dada ao pai, além do sinal de afeto que supõe, é também um meio de aperfeiçoar sua arte a partir do mesmo motivo, incessantemente repetido. O rosto amado apaga-se diante do gesto, diante da forma cuja estrutura é estudada em detalhe. Essa investigação acabará sendo o primeiro exemplo de série na obra de Picasso. A figura do pai não cessará de acompanhá-lo, como ele confiará mais tarde a Brassaï: "Toda vez que desenho um homem, involuntariamente é em meu pai que penso... Para mim, o homem é 'd. José', e isso permanecerá para o resto de minha vida (...) Todos os homens que desenho, vejo-os mais ou menos sob seus traços..."

As telas executadas em 1896, La Première communion [A primeira comunhão] (Barcelona, Museu Picasso), e em 1897, Science et Charité [Ciência e caridade] (Barcelona, Museu Picasso), são as primeiras pinturas de gênero de Picasso, realizadas tanto para confrontar novos desafios quanto para agradar d. José que, além disso, é o personagem principal nas duas obras. São composições tradicionais, acadêmicas, com efeitos de iluminação e uma vontade um tanto naturalista, que foram favoravelmente acolhidas ? Ciência e caridade recebe uma menção honrosa na Exposição Geral de Belas Artes de Madri e, depois, uma medalha de ouro em Málaga.

Em 1898, Picasso sofre de uma febre escarlatina que iria debilitá-lo consideravelmente. Para restabelecer-se, passa mais de sete meses em Horta de Ebro, aldeia natal de Manuel Pallarés, seis anos mais velho que ele, seu amigo desde os primeiros cursos de La Lonja e de quem fez vários croquis absorvido em seu dever de estudante.

Mais tarde, Picasso declarou: "Tudo o que sei, aprendi na aldeia de Pallarés." Embora a afirmação seja um tanto exagerada, é certo que o artista conheceu um grande prazer nesses meses passados na montanha, como o mostram os pequenos croquis representando camponeses e pastores em trajes rústicos. É aí, nesses desenhos de Horta e particularmente em seu auto-retrato, que se percebe a passagem do adolescente ao homem, a emergência da personalidade de pintor, o conhecimento de si e de seu valor. Quando volta a Barcelona, em janeiro de 1899, sua preocupação é com a independência. Instala-se num ateliê situado na Rua dos Escudillers e, daí por diante, irá desabrochar na grande cidade catalã, então em plena expansão econômica e artística. A cidade é florescente: a indústria do algodão e a siderurgia movimentam as atividades portuárias e enriquecem uma burguesia que, ao tomar consciência de seu valor, volta-se para os artistas e os poetas a fim de melhorar seu meio ambiente, sua maneira de viver. O "modernismo" catalão está então no apogeu. Começou em 1890, com as primeiras exposições de Ramon Casas e de Santiago Rusiñol na Sala Pares, em Barcelona, e terminou em 1911, com a morte de Isidre Nonell. É a nova Idade do Ouro da pintura catalã, um verdadeiro Renascimento, no qual se combinam as contribuições de um realismo a Courbet, a luz impressionista e acentos do simbolismo que se espalha pela Europa desde 1886. À angústia ou à perversidade de pintores germânicos, como Böcklin e Von Stück, ou escandinavos, como Edvard Munch, mistura-se a influência francesa, a dos impressionistas e neo-impressionistas, em particular Degas e Toulouse-Lautrec. Jornais e revistas propagam as idéias dos modernistas catalães. Picasso, apesar da diferença de idade que o separa dos diversos representantes dessa corrente pictórica, mergulha sem hesitar nesse universo desconhecido para ele, o da vanguarda, da modernidade. Imagina-se facilmente o fascínio que deve ter sentido o jovem Picasso diante desses gloriosos irmãos mais velhos, a excitação ante a idéia de fazer parte de um grupo de pintores que dava o tom e julgava poder alçar sua pintura ao nível internacional.

O cabaré Els Quatre Gats, Os Quatro Gatos, é fundado em 12 de julho de 1897 pelos pintores Miguel Utrillo, Santiago Rusiñol, Ramon Casas, com o apoio de Manuel Girona, então presidente da Câmara do Comércio de Barcelona, e do industrial Ardeniz, e torna-se o lugar de predileção da intelectualidade. A animação é confiada a Pere Romeu i Borrás, pintor e amigo próximo de Ramon Casas. Ele havia morado em Paris, colaborando com Steinlen na animação do teatro de sombras chinesas e, posteriormente, com Rodolphe Salis no Chat noir, em Montmartre, lugar mítico que com certeza inspirou a criação, em Barcelona, de um cabaré à sua imagem. Els Quatre Gats, situado na Casa Marti, exemplo da arquitetura neogótica em voga devida ao arquiteto catalão Josep Puig i Cadafalch, torna-se um dos locais mais conhecidos da cidade, associando divertimento e vida intelectual, freqüentado por pintores, músicos, escritores, poetas, panfletários e rebeldes de todo tipo, que passavam horas a refazer o mundo como convém a todas as "gerações em fúria", por ocasião de saraus literários, de concertos ou ainda depois das representações de teatro de sombra e de marionetes. Os modernistas catalães abriam-se mais facilmente às influências exteriores por terem vivido, em sua maior parte, no exterior, sobretudo em Paris. Para Picasso, foi decisivo esse encontro com artistas e intelectuais que lhe facilitaram o acesso a um mundo desconhecido: o da literatura, da filosofia e da música. O cabaré virou seu lugar predileto, e foi lá que conheceu amigos de sua idade, alguns dos quais o acompanharam por toda a vida: o escultor Manolo, o pintor Carles Casagemas, Jaime Sabartés, o poeta que logo se tornou seu confidente e, bem mais tarde, seu secretário, os irmãos Ramon e Jacint Reventos. Em outubro de 1899, Ramon Casas acabava de triunfar na Sala Parés com uma exposição de retratos de celebridades catalãs. Quis Picasso levar mais longe o desafio? Seja como for, seus novos amigos o apóiam e organizam, em 1º de fevereiro de 1900, uma exposição de 150 desenhos no espaço do Quatre Gats. Trata-se de uma verdadeira galeria de retratos dos freqüentadores do cabaré, de corpo inteiro ou meio corpo, nos quais Jaime Sabartés figura como "poeta decadente". Alguns meses mais tarde, mais seguro de si, também consciente, talvez, dos limites que o modernismo arriscava impor à sua personalidade, e tentado a buscar novas experiências, Picasso parte para Paris com seu amigo Carles Casagemas. Uma outra aventura começa.

Paris-Barcelona. O período azul: 1901-1904

Até 1904, data de sua instalação definitiva em Paris, Picasso fará pelo menos três viagens entre a Espanha e a capital francesa; o contato só se estabelece progressivamente por causa, de um lado, da barreira lingüística e, de outro, da forte ligação que ele mantém com o meio catalão instalado em Paris. A escolha desta cidade ficou sendo "uma aventura que não se explica", embora não seja raro um passarinho sair do ninho para voar com as próprias asas. Era preciso, porém, achar o lugar onde pousar. Ele parece ter hesitado: pensou em Londres, como sugere John Richardson? Em todo caso, considerou também Munique, centro artístico alemão muito animado no início do século: "Mas não te iludas, aqui na Espanha não somos tão estúpidos como sempre demos a impressão de ser, apenas o ensino que nos dão é muito ruim... Desse modo, como te dizia, se eu tivesse um filho que quisesse ser pintor, não o deixaria por um instante na Espanha, e não creio que o enviaria a Paris (onde por certo gostaria muito de estar), mas a Munik (não sei se é assim que se escreve), pois é uma cidade onde se estuda a pintura a sério, sem se deixar deslumbrar por nada, como pelo pontilhismo e todo o resto; não digo que seja ruim trabalhar num sentido ou noutro, mas não é porque isso deu certo para um indivíduo que os outros devem fazer como ele. Sou contra seguir uma Escola porque só leva ao materialismo, como acontece com todos que fazem assim."

Ele fixa sua escolha em Paris, certamente por instigação de seus amigos modernistas; no entanto, apesar de suas idas e vindas, convém lembrar que é em Barcelona que ele pinta o essencial das obras do período azul. O contato regular com a atmosfera parisiense permite-lhe por certo se fortalecer, ampliar seus horizontes, reaprender tudo. Paris, na aurora do século, é um centro artístico sem comparação com as outras capitais. Os artistas, ávidos de vanguarda e de novidades, convergem para lá de todos os cantos do mundo ? Europa, Estados Unidos e Rússia, em particular. Alguns lá se estabelecerão, outros retornarão a seu país para semear o grão recolhido no seio da modernidade artística. O papel dos impressionistas foi fundamental nesse entusiasmo pela cidade desde os anos 1880-1890, não somente porque as idéias inovadoras de Monet, de Renoir, de Degas, de Gauguin, de Van Gogh e de Toulouse-Lautrec se propagam rapidamente, mas também porque difundem para além das fronteiras uma imagem muito sedutora da vida parisiense. E Paris, para um artista, é ao mesmo tempo a oportunidade de aprender, de expor, de fazer-se conhecer; lá existem tantos marchands, tantas galerias, tantos salões, tudo parece possível!

Durante os quinze primeiros anos do século, em torno de Montmartre e depois em Montparnasse ? sede da famosa Escola de Paris, de onde surgem os nomes de Soutine e de Modigliani ? formam-se colônias de artistas estrangeiros, que sonham com amanhãs triunfantes. Alguns conhecerão a glória; a maior parte, a miséria e o desespero. É nesse mundo que desembarca, num belo dia de setembro de 1900, Pablo Picasso (que ainda não completara 19 anos), acompanhado de seu amigo Casagemas. Ambos se instalam no ateliê que lhes deixou Isidre Nonell, na Rua Gabrielle, e juntam-se à colônia catalã de Paris: Ramon Pichot, Pompeu Gener, Alexandre Riera e o próprio Nonell. O encontro mais importante é com Pere Manyac, industrial catalão que passa a ser, por algum tempo, seu primeiro marchand e seu "mecenas", pagando-lhe 150 francos por mês em troca de uma parte de suas obras. Berthe Weil, que acabava de inaugurar sua galeria da Rua Victor Massé, também se interessa por ele e irá expor seus trabalhos no outono de 1902 e de 1904. Um belo desenho do outono de 1900 evoca esse período. Vemos Picasso acompanhado de seus amigos: Odette, com quem mantém uma ligação e é um de seus primeiros modelos parisienses, Ramon Pichot, Miguel Utrillo e Carles Casagemas dando o braço a uma mulher muito provocante, a única olhar diretamente para o espectador. Eles aparecem junto aos pavilhões da Exposição Universal, onde Picasso representava a Espanha com um quadro do mais puro filão acadêmico, Les Derniers moments [Os últimos momentos], posteriormente coberto pela grande composição La Vie [A Vida] (1903, Cleveland Museum of Art). Há uma obra que testemunha a apropriação, pelo jovem, de tendências artísticas já um tanto antigas: trata-se do Moulin de la Galette (outono de 1900, Nova York, The Salomon R. Guggenheim Museum). Não há como não evocar o Moulin de la Galette de Renoir (1876, Paris, Museu d'Orsay), embora a versão de Picasso seja mais dramática que a representação um tanto hedonista e edulcorada que o impressionista nos oferece de um dos locais de diversão mais concorridos da belle époque, no qual se misturavam homens da alta sociedade, cortesãs, delinqüentes e prostitutas. A crueza de Picasso, a composição e a luz evocam antes o mundo impiedoso de Toulouse-Lautrec. Do mesmo modo, uma série consagrada a casais enlaçando-se ardentemente nas ruas e nos cafés mostra a estupefação do jovem espanhol ante a vida amorosa muito livre do povo parisiense dos bairros modestos e a capacidade do pintor de manifestar emoção por cenas de uma violenta sexualidade.

Picasso só retorna a Barcelona em abril de 1901, depois de passar o Natal em Málaga e de uma estadia em Madri, onde funda com o escritor catalão Francisco de Asis Soler a revista Arte Joven, na qual demonstra, uma vez mais, seus talentos de desenhista. Ele desenha também uma série de cortesãs com o rosto exageradamente pintado e cujas saias-balão descem pesadas até o chão; a mais famosa é La Femme en bleu [A mulher em azul] (1901, Madri, Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia), que evidencia também o interesse de Picasso pela pintura espanhola do "século de ouro".

De junho de 1901 a janeiro de 1902, Picasso realiza sua segunda temporada em Paris. Logo ao chegar, tem três semanas para preparar a abertura de sua exposição, organizada por Pere Manyac na galeria do prestigioso marchand Ambroise Vollard. Numa crítica à exposição publicada na Revue Blanche de julho de 1901, Félicien Fagus escreve com entusiasmo: "Ele é pintor, absoluta e belamente pintor (...) Assim, todo tema o apaixona, e tudo é tema para ele (...) Percebe-se facilmente, além dos antepassados, a influência provável de Delacroix, Manet (ele que vem, justamente, dos espanhóis), Monet, Van Gogh, Pissarro, Toulouse-Lautrec, Degas, Forain, talvez Rops... Cada uma passageira, captada e logo desaparecida (...) Sua personalidade está nesse arrebatamento, nessa espontaneidade juvenilmente impetuosa (não tem 20 anos e dizem que chega a pintar três telas por dia). Para ele, o perigo jaz na própria impetuosidade." Vollard, que se deixou seduzir pelo ímpeto e pelo talento do jovem pintor, assim relata o primeiro encontro com Picasso: "Por volta de 1901, recebi a visita de um jovem espanhol, vestido com esmero e que me foi apresentado por um de seus compatriotas que eu conhecia um pouco (...) O acompanhante de 'Manache'13 não era outro senão o pintor Pablo Picasso que, com apenas 19 ou 20 anos de idade, já havia feito uma centena de telas, as quais me trazia tendo em vista uma exposição. Essa exposição não teve nenhum sucesso e, por algum tempo, Picasso não haveria de encontrar melhor acolhida junto ao público."

Então, em 24 de junho de 1901, inaugura-se na Galeria Vollard uma importante exposição de obras de Picasso, organizada por Pere Manyac e pelo crítico Gustave Coquiot; o espaço da galeria era na ocasião dividido com um pintor basco chamado Iturrino, que será imortalizado por Derain em 1914. Picasso apresenta retratos, cenas de rua, interiores de cabaré ou de casas de prostituição. A paleta é cintilante, até mesmo violenta, com pinceladas rápidas, nervosas e alongadas como as de Van Gogh. O Portrait de Gustave Coquiot [Retrato de Gustave Coquiot] (1901, Paris, Musée National d'Art Moderne, Centro Georges Pompidou, em empréstimo do Museu Picasso) é uma das melhores ilustrações da paixão que Picasso sente pela cor. Crítico e escritor, amigo de Rodin e dos impressionistas, Coquiot, que falou de Picasso como de um "frenético amante da vida moderna", posa complacentemente. Satisfeito, o olhar distante, sua boca muito vermelha, com um sorriso largo que deixa entrever os dentes, contrasta com o resto da face esbranquiçada, construída por pequenas pinceladas de um verde claro que evoca os reflexos da luz artificial sobre a pele branca. Picasso faz dele a imagem de um homem sensual, de boca gulosa, nariz fremente, pele enrugada ao redor dos olhos, ávido de prazeres, um "pândego", imagem reforçada pela presença ao fundo de dançarinas vestidas à moda oriental, seminuas e contorcendo-se numa dança do ventre muito sugestiva. Picasso retoma a inspiração feroz e cruel de Toulouse-Lautrec (de quem dizia: "Foi em Paris que me dei conta do grande pintor que foi Toulouse-Lautrec"), e o homenageia buscando igualá-lo num saboroso desenho no qual retrata a si mesmo, diante do Moulin Rouge, segurando cavalete, tela, paleta e material de pintura. La Naine [A anã] (Barcelona, Museu Picasso) evoca também o pintor disforme, tão sensível às misérias humanas, mas revela a permanência das influências de Velázquez ou Goya. Naquele ano, a obra de Picasso é literalmente dominada pela representação da libertinagem, do vício de certo modo institucionalizado: cortesãs nas corridas de cavalos, nos cafés, artistas de music-hall e de circo, homens bêbados, prostitutas nuas vestindo apenas meias pretas, homens galhofeiros; o olhar do jovem é implacável e espeta na tela imagens cruas da sociedade na qual ele se corrompe sem contudo afogar-se. Montmartre e seus prazeres falsificados não tardam a suscitar um mal-estar existencial que se traduz por uma mudança no clima de sua pintura: o cínico torna-se desesperado.

Ao lado das cenas da vida parisiense, Picasso pinta, no final do ano de 1901, duas obras magistrais: Arlequin accoudé [Arlequim apoiado nos cotovelos] (Nova York, The Metropolitan Museum of Art) e Autoportrait bleu [Auto-retrato azul] (Paris, Museu Picasso). São auto-retratos pungentes que insistem na angústia e no isolamento do pintor, apesar do encontro, na casa de Vollard, com o jovem poeta Max Jacob, cuja amizade imediata permite a Picasso sair do círculo espanhol e catalão, rompendo em particular com Pere Manyac. Até o final da vida, Picasso fará do saltimbanco marginal e triste seu duplo e não pára de pensar em Casagemas, de cujo suicídio, em circunstâncias dramáticas, ficara sabendo por ocasião de uma estada em Madri, na primavera. Casagemas havia se apaixonado por uma jovem modelo casada, Laure Gargallo, conhecida por Germaine, que, após ter respondido aos seus avanços, os rechaçou. Desesperado, o jovem meteu uma bala na cabeça depois de tentar assassinar Germaine num café do Bulevar de Clichy. Daí por diante, Picasso ocupa sozinho o ateliê que dividiam alguns meses antes e sente ainda mais o desaparecimento de seu "irmão de aventura", dedicando algumas obras - pinturas e desenhos - a esse funesto acontecimento. La Mort de Casagemas [A morte de Casagemas] (1901, Paris, Museu Picasso) mostra o rosto esbranquiçado do cadáver, tendo na têmpora a marca sangrenta e enegrecida do impacto da bala iluminado pela chama de uma vela à direita, último vestígio do flamejante reinado da cor. L'Enterrement de Casagemas [O enterro de Casagemas] (1901, Musée d'Art Moderne de la Ville de Paris) é uma composição barroca em vários registros: os restos mortais, chorados pelos amigos em grande luto, e a libertação celestial no seio das prostitutas, sua vida formando um anel trágico dominado pela mulher de quem ele parece ser um brinquedo impotente. O período azul começa e marca uma mudança na obra de Picasso; inaugurado em Paris durante o outono e o inverno de 1901-1902, mistura a lembrança da visita à prisão das meretrizes de Saint Lazare e ao hospital anexo, não distante de Montmartre (onde as mulheres encarceradas portadoras de doença venérea usavam uma touca branca), à representação da miséria nos bairros pobres de Barcelona.

"Foi pensando em Casagemas que passei a pintar em azul", disse Picasso. O suicídio do amigo o incita a empreender essa investigação da miséria e do desespero humanos que é tanto a denúncia da sociedade burguesa da época quanto o reflexo das questões que o pintor se coloca sobre a vida, o amor e a morte. É uma "pintura molhada, azul como o fundo úmido e condoído do abismo".15 A monocromia azul apodera-se das telas, apesar de algumas pinceladas de cor que às vezes reavivam a cena.

"Por ora", escreve M. Raynal, "Picasso compartilha as alegrias amargas e as tristezas de seus modelos imaginários. Abandonou as cores muito brilhantes, a desenvoltura de arabescos desordenados. Os simples prazeres da visão já são suspeitos. Para Picasso, a pintura possui uma missão dramática. Uma obra deve remexer o ventre antes de agradar os olhos; é fonte mais de emoção que de satisfação. E essa emoção, para ser autêntica, obtém-se por meios simples, diretos, despojados de todo artifício. Por isso, o desenho da 'época azul' torna-se discreto, severo, com freqüência pungente, mas sempre generoso, natural, seguro de si, por causa da autenticidade do sentimento que o inspira e por ser vivificado de curvas de uma delicadeza apaziguante, que temperam o ascetismo da composição".

André Salmon, amigo do poeta, também relembra seu primeiro contato com as telas azuis que Picasso traz consigo a Paris, no momento de sua instalação definitiva. "Eu penetrava em plena época azul (...) A lamparina a querosene difundia muito pouca claridade. Para pintar, para mostrar as telas, era preciso uma vela, a vela bruxuleante que Picasso ergueu à minha frente quando me introduziu humanamente ao mundo sobre-humano de seus homens famintos, fatigados, de suas mães sem leite: o mundo supra-real da miséria azul."

Em 12 de abril de 1904, Picasso deixa Barcelona; é a quarta e última viagem. Instala-se na Praça Ravignan, 13, num sórdido prédio de madeira conhecido pelo nome de Bateau-Lavoir, que foi destruído por um incêndio em 1970. É ali, num dia tempestuoso de agosto de 1904, que fica conhecendo Fernande Olivier. Foi a primeira mulher a partilhar da vida do pintor, a conhecer suas privações, e que teve o privilégio de viver com ele os anos exaltadores do cubismo. A presença de Fernande é uma inspiração para Picasso, que está muito apaixonado. Ele a vê como uma imagem sensual e voluptuosa, e a felicidade que ela lhe traz irá apaziguar os tormentos dos anos precedentes. Picasso retorna à vida e ao amor. A lembrança de Casagemas se esfuma. Ele é solicitado pelos amigos e torna-se um verdadeiro parisiense: "Casa de pintor, de madeira (...) mesa redonda, pequeno-burguesa, adquirida no comércio de móveis usados; um quarto pequeno tendo dentro algo parecido com um leito. Era um refúgio. Sobre a mesa burguesa, estilo Napoleão III, ardia uma lamparina a querosene. Não havia eletricidade no bairro, nem mesmo gás."18 Os anos históricos de Montmartre começam.

Do período rosa a Les Demoiselles d'Avignon: 1904-1907

Em Montmartre, a vida é mais suave. O amor de Fernande dá origem a muitos desenhos sensuais e eróticos, e a amizade e a curiosidade o levam ao circo Médrano três ou quatro vezes por semana. Ele se sente bem no meio de artistas de origem espanhola ou catalã; o próprio Jerónimo Médrano era madrilenho, e certamente as emoções vividas com a bela Rosita del Oro ? amazona bastante conhecida que se apresentava no Tivoli Circo Eqüestre em Barcelona, por volta de 1897, e que teria sido sua amante durante alguns anos ? voltam-lhe ao espírito. Fernande Olivier conta que Picasso adorava também os palhaços que encontrava no bar e o "cheiro de estrebaria que o circo exalava, quente e um pouco enjoativo (...) Um dia, ele convidou um palhaço holandês e sua mulher, uma amazona circense polonesa, para jantar em casa (...) Nunca vi Picasso rir com tanto gosto como no Médrano. Ele se divertia como uma criança, esquecendo que aquilo que o divertia não era de uma qualidade muito profunda".

O circo torna-se uma verdadeira paixão. Em 25 de fevereiro de 1905, é inaugurada na Galeria Serrurier, no Bulevar Haussmann, uma exposição destinada a jovens pintores na qual Picasso apresenta uma parte da produção inspirada pelo circo Médrano. O prefácio do crítico Charles Morice, que observara com argúcia seus trabalhos em 1902, é entusiástico: "Já então ele possuía essa assombrosa certeza do traço, das relações de cores e da composição que muitos artistas buscam ao cabo de uma longa experiência. Milagre que nada explica. É como se, numa outra existência, longa e produtiva, essa criança de olhar insistente e seguro tivesse aprendido tudo e, sem precisar desde então estudar mais, não cessasse agora de produzir, cotidianamente, incansavelmente, os desenhos, gravuras e quadros que cobrem as paredes de seu ateliê."

Um outro crítico de arte, também poeta, observa Picasso: Guillaume Apollinaire. Dedica ao pintor um artigo visionário e inspirado no jornal La Plume, em 15 de maio, sublinhando os mistérios destacados pelos saltimbancos famélicos e melancólicos: "As mães, primíparas, não esperavam mais o filho, talvez por causa de alguns corvos mexeriqueiros e dos maus presságios. Natal! Elas deram à luz futuros acrobatas entre os macacos familiares, os cavalos brancos, os cães e os ursos. As irmãs adolescentes, equilibrando-se sobre as grandes bolas dos saltimbancos, transmitem a essas esferas o movimento irradiante dos mundos. Esses adolescentes, impúberes, têm as inquietudes da inocência, os animais ensinam-lhes o mistério religioso. Arlequins acompanham a glória das mulheres, assemelham-se a elas; nem machos, nem fêmeas. A cor tem opacidades de afresco, as linhas são firmes. Situados no limite da vida, os animais são humanos e os sexos, indecisos, seres híbridos com a consciência dos semideuses do Egito; os arlequins taciturnos têm a face e a testa sulcadas por sensibilidades mórbidas. Não se pode confundir esses saltimbancos com histriões. Quem os vê deve ser piedoso, pois eles celebram ritos mudos com uma agilidade difícil."

O ciclo dos saltimbancos de 1905 encarna maravilhosamente o fascínio de Picasso pelos viajantes, pelos forasteiros e pelos ciganos. A obra quer ser o reflexo de sua vida cotidiana, de seus amores, de suas preocupações, de seus devaneios, de seus silêncios.

O quadro principal do período, Les Bateleurs ou Les Saltimbanques [Os Saltimbancos] (1905, Washington, National Gallery of Art), resume as preocupações temáticas e formais do período rosa: no cenário de praia mediterrânea, eles fazem uma parada antes de prosseguir viagem; nenhuma anedota vem perturbar o arranjo plástico da composição que não é, por certo, inteiramente satisfatória, mas da qual emana uma serenidade perceptível, em particular no personagem da moça. Juntamente com os saltimbancos, o arlequim de roupa quadriculada, que aparece brevemente em 1901, torna-se um de seus temas preferidos. Ele ressurgirá de forma regular em sua obra, figura solitária, melancólica ou maliciosa. Ainda que alguns personagens do período azul reapareçam no período rosa, numa passagem imperceptível para os contemporâneos, é inegável sua mudança de condição: não são mais indivíduos sofridos representados em sua singularidade, mas passam a ser tipos. Picasso começa a significar mais do que reproduzir. A idéia que ele faz da arte modificou-se. A arte não é mais o mundo da transcrição, torna-se um fim em si, como comprovado pela atenção cada vez mais aguda que o pintor dá à resolução de problemas puramente pictóricos. Ao expressionismo realista sucede a serenidade plástica. É possível que seus primeiros passos no domínio da escultura com Le Fou [O louco] (1905, Paris, Museu Picasso) o tenham levado a essa reflexão.

Durante o verão, Picasso faz uma curta temporada em Schoorl, na Holanda, convidado por um amigo escritor. Dessa viagem trará obras muito diferentes das anteriores, representações de jovens holandesas ? entre as quais um nu voluptuoso e maciço ? que o levam a se debruçar sobre a questão de expressar o volume.

No outono, conhece Gertrude Stein, encontro que será decisivo. Na primavera de 1903, Leo Stein, um jovem diletante norte-americano que descobrira a vocação de pintor, instala-se em Paris, na Rua de Fleurus, 27, logo acompanhado pela irmã Gertrude, o irmão Michael e sua esposa Sarah. Gozando de uma fortuna considerável e de um discernimento pouco comum, eles irão comprar, a partir de 1904, obras de Matisse (coleções de Michael e Leo) e, em 1905, obras de Picasso (coleção de Leo e Gertrude). Os Stein logo passarão a freqüentar o ateliê do Bateau-Lavoir, tornando-se amigos e multiplicando suas aquisições, o que daí por diante permitirá a Picasso viver numa relativa tranqüilidade financeira que não conhecera até então. O pintor começa o retrato de Gertrude Stein pouco depois de seu primeiro encontro. As sessões de pose duram até a primavera de 1906. Fernande Olivier assim a via: "Ela, corpulenta e atarracada, uma bela cabeça de traços nobres, acentuados, regulares, os olhos inteligentes, clarividentes, espirituosos. O espírito claro, lúcido. Masculina na voz, em todo o comportamento."

Picasso, porém, não está satisfeito com o trabalho e o abandona momentaneamente. Parte para Gosol, pequena aldeia da alta Catalunha situada acima do Vale de Andorra. "Eu o vi na Espanha muito diferente dele mesmo, ou melhor, muito diferente do Picasso de Paris: alegre, menos selvagem, mais brilhante e animado, interessando-se pelas coisas com equilíbrio e calma, mais à vontade, enfim. Dele emanava um brilho feliz, em contraste com sua atitude e seu caráter habituais (...) Numa aldeia catalã (...) em Gosol, viveu vários meses, trabalhando regularmente, comportando-se melhor. Alegre, feliz de sair para a caça ou em excursão, acima das nuvens que cobriam o vale."

Gosol oferecia-lhe uma paisagem grandiosa, uma vida simples e a visão de uma Virgem românica do século XII, conservada na igreja, "de estilização hierática, com seus grandes olhos abertos e fixos, suas sobrancelhas exageradamente desenhadas como por uma esteticista". Essa última descoberta, associada à de esculturas ibéricas datadas dos séculos IV e V antes de Cristo, provenientes de escavações efetuadas em Osuna e Cerro de los Santos, na Andaluzia, e expostas no Museu do Louvre no início daquele ano, suscita uma mudança profunda em sua arte, separando-a definitivamente das convenções naturalistas e sentimentais e levando-a à reflexão sobre questões de ordem plástica.

Ao voltar de Gosol, Picasso retoma o retrato de Gertrude Stein, apaga o rosto e transforma-o em máscara de acentuada geometria, extraindo dela os volumes essenciais: arcadas superciliares, olhos, nariz, queixo. Em seu livro dedicado a Picasso, em 1938, ela declarou: "Fiquei e continuo contente com meu retrato. Para mim, aquela sou eu. É a única reprodução de mim que será sempre eu."

Gertrude Stein havia apresentado Picasso a Matisse no início do ano, mas eles só passaram a se freqüentar realmente a partir do retorno de Picasso no outono seguinte. Foi o começo de uma relação feita de estima, de amizade, de rivalidade artística. "Como um dançarino, Picasso procurava seduzir Matisse, mas era sempre este quem acabava por seduzir Pablo: 'É preciso que conversemos o mais que pudermos, dizia este. Quando um de nós morrer, há coisas que o outro nunca mais poderá dizer'."

Gertrude Stein conta que foi Matisse quem chamou a atenção de Picasso para a arte negra, como então era chamada, mostrando-lhe uma pequena estátua que havia comprado numa loja de curiosidades exóticas. Picasso, dizem, ficou particularmente impressionado com os olhos vazios dessa estátua, efeito que já havia utilizado por ocasião de sua temporada em Gosol. Posteriormente, por sugestão de um outro amigo pintor, André Derain, Pablo vai ao Museu de Etnologia do Trocadéro, em Paris, em julho de 1907, e é tomado por uma verdadeira revelação diante do conjunto de obras de arte primitiva que ali observa; é a partir dessa data que desenvolve sua própria coleção de objetos primitivos. O trabalho com Les Demoiselles d'Avignon já havia começado há vários meses.

Os anos do cubismo: 1907-1916

Picasso, no silêncio de seu ateliê, vem trabalhando em Les Demoiselles d'Avignon desde o outono de 1906. Cobre sem descanso as páginas de seus cadernos de desenho com composições nas quais se vêem sete personagens, cinco mulheres e dois homens (um marinheiro e um estudante de medicina); aos poucos esses personagens se reduzirão a cinco, cinco mulheres de uma casa de prostituição da Rua d'Avignon, em Barcelona. As Demoiselles subverteram o sentido da arte moderna, que parecia lançar-se no caminho da cor com a revolução fauve de Matisse, apresentada no Salão de Outono de 1905. Eis que Picasso muda indubitavelmente o rumo das coisas, rompendo com tudo o que fora feito até então. A ausência da linha curva, o abandono quase total do modelado, o encaixe geométrico dos planos, a cristalização numa só imagem dos diferentes pontos de vista de um rosto ou de um corpo abolem a perspectiva tradicional criada na Itália do século XV e sugerem, de uma nova forma, a terceira dimensão. Daí por diante, não é mais com o mundo visível, com o mundo da aparência que lidamos, mas com o mundo da recriação, da idéia. É aí, certamente, que se verifica a coincidência com as artes primitivas; como elas, o cubismo não é mais domesticado pelas aparências; Picasso exprime o que sabe de um ser humano, de um objeto ou de uma paisagem, e não apenas o que deles vê.

A obra teve um impacto considerável sobre os que freqüentavam o ateliê nessa época: "O que eu gostaria de fazer sentir imediatamente é o heroísmo inacreditável de um homem como Picasso, cuja solidão moral nessa época era algo de assombroso, pois nenhum de seus amigos pintores o acompanhara. O quadro que havia pintado parecia a todos algo de insano e de monstruoso. Braque, que conhecera Picasso por meio de Apollinaire, declarou que lhe parecia como se alguém tivesse bebido querosene para cuspir fogo, e Derain disse a mim que um dia encontrariam Picasso enforcado atrás de seu grande quadro, tamanho o desespero que esse empreendimento sugeria. Todos os que conhecem o quadro agora o vêem exatamente no estado em que se achava então: Picasso o considerava como não terminado, mas ele permaneceu exatamente como era, com as duas metades bastante diferentes." Escutemos ainda Gertrude Stein: "Picasso está sozinho; portanto sua luta é terrível para ele e para todos que o observam. Nada vem em seu auxílio, nem o passado, nem o presente. Ele não denuncia sua época, ele a vive. Mas é preciso que faça isso sozinho."

A supressão dos dois personagens masculinos leva ao desaparecimento da historieta que uma cena de casa de prostituição, à maneira de Degas ou Toulouse-Lautrec, podia representar. É a um face a face brutal com as prostitutas que Picasso nos convida. Deixamos de ser voyeurs para ser clientes, remetidos a uma imagem da sexualidade direta e selvagem, associada ao pavor e à morte. A revolução, portanto, não é apenas formal. Ela se abre a uma visão do corpo, do prazer, de seus riscos, que irá marcar o século XX. Também vai além da simples cena de bordel. Os corpos ali expressos sintetizam as diferentes formas de poder ou de agressão a que estão expostos: são, ao mesmo tempo, corpos de prazer e corpos de tortura, corpos oferecidos e corpos que agarram. Essa visão dupla ? a extrema sedução e o perigo sensual e afetivo que o sexo e o amor representam ? antecipa as relações de violência dos anos 1930 que opõem o homem à mulher.

Embora chocados à primeira vista, os amigos artistas de Picasso logo compreendem a lição e são incitados a um tratamento mais simplificado dos planos e a uma ruptura dos volumes. Simplificação manifesta no Grand Nu [Grande Nu] de Braque (1907-1908, Paris, Musée National d'Art Moderne, Centro Georges Pompidou), pintor este que, desde então, torna-se o "companheiro de escalada" de Picasso nessa "aventura metódica" que é o cubismo. O crítico alemão Wilhelm Uhde incita seu compatriota Daniel-Henry Kahnweiler, jovem marchand que acaba de inaugurar uma galeria na Rua Vignon, em Paris, a ir ver o quadro. Kahnweiler será o marchand de Picasso e de Braque e em 1908 organizará uma primeira exposição cubista sobre a qual a imprensa dirá: "Braque pinta pequenos cubos".

A retrospectiva de Cézanne no Salão de Outono de 1907 confirma para os dois jovens a exatidão de suas pesquisas e os leva a uma transformação do espaço da pintura e dos objetos que nela figuram.

A primeira fase do cubismo, dita do "cubismo cézanniano" (1907-1909), retoma o princípio utilizado por Cézanne: a justaposição de elementos contemplados a partir de pontos de vista diferentes a fim de reconstituir, numa superfície plana, a estrutura do mundo exterior, aprofundando-a e intelectualizando-a. Durante o verão de 1908, Picasso vai a La Rue des Bois, uma aldeia às margens do rio Oise, perto de Creil, a cem quilômetros de Paris, enquanto Braque dirige-se uma vez mais, como em peregrinação, ao local mítico da criação cézanniana ? Éstaque, perto de Marselha, no sul da França. Em suas paisagens tocantes, a geometrização das formas se acentua, embora utilizada de forma mais flexível. Picasso, por sua vez, acrescenta uma dimensão "primitiva" a esse cubismo. Sensibilizado pela extrema simplificação das formas da arte africana e pela retrospectiva consagrada a Gauguin no Salão de Outono de 1906, ele cria figuras totêmicas, impressionantes e monumentais, que aparecem em 1907. Essas figuras são contemporâneas das Demoiselles d'Avignon, tendo as mesmas brutalidade e simplificação geométrica dos volumes; seus corpos são blocos dos quais se destacam grosseiramente a face, os seios e o ventre, semelhantes aos tiki das Ilhas Marquesas que Picasso possuía aliás, verifica-se em todas as figuras a posição das pernas ligeiramente flexionadas das estatuetas polinésias. Kahnweiler fez mais tarde uma observação essencial para a compreensão desse período: "Para que a verdadeira descoberta da arte africana e da arte da Oceania pudesse ocorrer, foi preciso que no outono de 1906 os trabalhos preparatórios de Picasso as Demoiselles d'Avignon criassem o clima propício." Esse depoimento confirma declarações posteriores de Picasso, dando conta de que as estátuas primitivas presentes em sua casa lhe serviam mais de testemunhas que de exemplos. No outono de 1907, as relações entre Picasso e Braque tornam-se mais estreitas. "Durante aqueles anos nos dissemos coisas que ninguém mais dirá, ninguém mais saberia dizer, ninguém mais saberia compreender... Coisas incompreensíveis e que nos deram tantas alegrias... E isso vai acabar junto conosco. Era um pouco como a corda de escalada para dois alpinistas na montanha."

Com efeito, uma aventura pouco comum essa do cubismo, que os dois viverão em perfeita osmose desde 1907 até um dia de agosto de 1914 em que Picasso acompanhará à estação ferroviária de Avignon o amigo que partia para a guerra. Eles nunca mais reencontraram a cumplicidade profunda, aquela amizade fecunda da juventude que permitiu a eles, ao se enriquecerem mutuamente com seus achados, criar obras tão próximas que era difícil distingui-las. Tanto era que se recusavam a assiná-las, afirmando assim o caráter comum das pesquisas cubistas: "Eu julgava que a pessoa do pintor não tinha que intervir, e que por conseqüência os quadros deviam ser anônimos. Eu é que decidi não mais assinar as telas, e por um certo tempo Picasso fez o mesmo."

Picasso declarou mais tarde não ter voltado a ver Braque depois dessa época. Declaração falsa, na qual se misturam nostalgia e irritação diante da reserva de Braque a seu respeito, bem como a constatação do caráter divergente de suas obras ulteriores: um, tornando-se um mestre da pintura meditada, consagrou-se quase exclusivamente ao mundo do objeto e ao espaço que lhe servia de estojo; o outro, ao contrário, marcando a tela com seu instinto, não cessou de exaltar a vida, o ser humano e suas paixões.

O ano de 1909 vê o surgimento do cubismo analítico, que se prolonga até 1911: são as telas feitas por Picasso em Horta de Ebro e por Braque em La Roche-Guyon, na Normandia. No outono daquele ano, Picasso deixa o Bateau-Lavoir e instala-se num apartamento da Avenida Clichy; dali, avista o Sacré-Coeur de Montmartre, que lhe sugere alguns quadros. A decantação das formas do real leva a uma análise por facetas; o abandono da cor, reduzida a tons de castanho, cinza e bege, e a interrupção da linha de contorno, que permite à cor se libertar da forma, dão origem a composições dificilmente legíveis a partir de 1910-1911. É a fase hermética do cubismo analítico, que oferece uma imagem mais fiel do objeto no plano intelectual, mas rompe com sua homogeneidade. É essa fase que permitirá a outros artistas contemporâneos ? o holandês Mondrian, o russo Malevitch, o francês Delaunay ou o tcheco Kupka ? decidirem-se pela abstração. É sobretudo nos retratos dos marchands de Picasso, Ambroise Vollard (1909-1910, Moscou, Museu Pushkin) e Daniel-Henry Kahnweiler (1910, The Art Institute of Chicago), que essa evolução é mais perceptível. Sua pintura cresce em complexidade e em refinamento. Ele explora as possibilidades que lhe oferece a decomposição das superfícies em formas dissociadas e rompidas, que correspondem à multiplicidade dos pontos de vista. Achata os planos, joga com a transparência, sugere a profundidade evitando recorrer à tradição ilusionista. "Nunca vemos um objeto em todas as dimensões ao mesmo tempo. É uma lacuna de nossa visão que convém preencher. Ora, a concepção nos faz perceber o objeto sob todas essas formas... Se o pintor consegue, portanto, restituir a um objeto todas as suas dimensões, ele realiza a obra a partir de um método de uma categoria superior àquele de uma obra pintada apenas sob as dimensões visuais."29

No entanto, chegados a essa fase e conscientes dos riscos de afastamento do real, Braque e Picasso introduzem, já na primavera de 1911, elementos novos - letras e números de lâminas recortadas - e depois, em 1912, as colagens, papéis colados que permitem não apenas reorganizar o espaço do quadro criando planos suplementares, mas também, por seu valor alusivo, acentuar a verdade do objeto e sua legibilidade. A utilização do papel colado, que dá uma visão nítida do objeto, conduz ao cubismo sintético (1912-1914), que privilegia mais a essência do que a existência do objeto.

As colagens de papel - jornal, papel pintado imitando madeira, mármore ou com flores, papel colorido, partituras musicais, rótulos de garrafas, cartões de visita, cartas de baralho, maços de cigarro -, pela simplicidade de suas formas e por suas camadas de cor uniforme possibilitam a reorganização do espaço da tela ou do desenho que passa do plano ao volume, paralelamente às assemblages que oferecem aos objetos a possibilidade de penetrar num domínio que antes lhes era estranho: a escultura.

Mas as assemblages ou construções cubistas não se lançam inteiramente na terceira dimensão, pois são destinadas a ser vistas de frente, penduradas na parede, sendo o Verre d'absinthe [Copo de absinto], de 1914, o único alto-relevo do período. A primeira escultura de assemblage é La Guitare [A guitarra]. Picasso estava muito consciente da novidade da Guitare, como o atestam as declarações recolhidas por André Salmon, em 1915, em seu livro sobre a escultura francesa jovem: "É somente el guitar, nada mais! Não há mais compartimentos estanques. Estamos livres da pintura e da escultura, já liberadas da tirania imbecil dos gêneros. Não é mais isso e não é mais aquilo. É el guitar."

Com efeito, esses objetos não pertencem nem à pintura, nem à escultura; quadros em revelo a meio caminho entre o plano e o espaço, onde o fundo desempenha o papel de suporte e do qual os elementos escapam para a conquista do espaço. Eles são incontestavelmente revolucionários.

No plano privado, 1911 é o ano do rompimento com Fernande Olivier e da entrada na vida de Picasso de Eva Gouel, que aparecerá em sua obra sob o nome de Ma Jolie [Minha formosa]. "Houve uma época em sua vida, de 1912 a 1914, na qual era impossível, dado o que ele ambicionava, fazer um retrato. Mas mesmo nessa época Picasso quis manifestar seu amor nos quadros. Tenho uma carta em que ele diz mais ou menos o seguinte: 'Eu amo Eva... e escreverei isso em meus quadros'. De fato, há quadros dessa época em que ele escreveu, sobre um pão de mel pintado em forma de coração, 'Eu amo Eva'... Há outros quadros da mesma época em que aparece Ma Jolie. Ma Jolie era o nome de uma canção que ouvíamos nas boates de Montmartre quando ele cortejava Eva. Era também a ela que se referia quando colocava Ma Jolie nas pinturas."

Eva inspira-lhe também uma de suas mais belas obras cubistas, Femme en chemise dans un fauteuil [Mulher de camisola numa poltrona] (1913, coleção particular). Sua morte prematura em 1915, quando o casal vivia um amor tranqüilo, deixa-o totalmente arrasado.

Durante esse tempo, paralelamente ao cubismo que poderíamos qualificar de "laboratório", desenvolvia-se um outro, mais edulcorado, que foi descoberto pelo público parisiense no Salão dos Independentes de 1911. Robert Delaunay, Fernand Léger ou os artistas da Seção de Ouro, reunidos em torno de Jacques Villon, faziam da "grade" cubista de Braque e de Picasso interpretações muito pessoais, algumas vezes anedóticas. Juan Gris, pintor espanhol chegado a Paris em 1906 e instalado no Bateau-Lavoir, perto de Picasso, foi talvez o único que soube aproximar-se do sentido da ascese cubista.

A declaração de guerra, em 2 de agosto de 1914, põe fim à aventura cubista. Braque é mobilizado. Picasso, que passara o verão em Sorgues, perto de Avignon, volta a Paris. Le Peintre et son modèle [O pintor e seu modelo] (verão de 1914, Paris, Museu Picasso) mostra que, paralelamente ao cubismo, o artista torna-se de novo sensível à figuração e à linha; é o primeiro aparecimento de um tema fundamental que retornará diversas vezes, em particular nas obras da maturidade. Picasso conservou esse quadro em seu poder, pois, além do fato de tratar-se de uma tela íntima que o apresenta junto com Eva, indicava também um relativo abandono da linha cubista que era então prematuro revelar. O quadro continha em embrião a aventura clássica que se desenvolverá de 1917 a 1924.

O período clássico: 1917-1924

O retorno de Picasso à figuração, iniciado no verão de 1914 em Avignon com a realização de Le Peintre et son modèle, prosseguirá em seu regresso a Paris, em novembro. O pintor sente a necessidade de voltar ao desenho e à linha "ingresca", sem todavia abandonar o cubismo pelo qual mostra seu apego desenvolvendo alguns elementos do cubismo sintético, em outras obras da mesma época. A vida em Paris durante a guerra torna-se difícil. Alguns amigos estão ausentes: Braque e Derain foram mobilizados, Guillaume Apollinaire alistou-se voluntariamente. Max Jacob, porém, continua sempre presente, fiel à sua amizade. É nesse clima um tanto particular de ausência que sucederá a Picasso um encontro que terá conseqüências tanto em sua vida privada quanto em sua vida profissional: com Jean Cocteau, personalidade do mundo artístico de múltiplas facetas, escritor, poeta, homem de teatro e, mais tarde, pintor e cineasta.

Foi o músico Edgar Varèse quem conduziu Jean Cocteau, num dia de dezembro de 1915, ao ateliê de Picasso: "O friso do Pártenon ornava a escadaria do prédio onde conheci Picasso, na Rua Schölcher. Com que pressa, o coração batendo, escalei os degraus, sem prestar atenção a esse baixo-relevo. Lá em cima (em sentido inverso), tampouco apreciei as estátuas negras, mas sim o uso de sua extravagância pelo menos extravagante dos civilizados. Elas se espalhavam, inúteis, pelo chão, e Picasso lentamente as elevava à dignidade de servir." Mas é somente alguns meses mais tarde, em abril de 1916, que Jean Cocteau propõe a Picasso fazer os cenários para um balé, Parade [Desfile], concebido por ele a partir de uma música de Erik Satie: "Fui eu que levei Picasso a ser cenógrafo de teatro. Seus amigos não queriam acreditar que ele me acompanharia. Uma ditadura pesava sobre Montmartre e Montparnasse. Atravessava-se o período austero do cubismo. Os objetos disponíveis numa mesa de café, a guitarra espanhola, eram os únicos prazeres permitidos. Pintar um cenário, sobretudo de um balé russo (aquela juventude devota ignorava Stravinsky), era um crime... O pior é que tivemos de nos encontrar com Serge Diaghilev em Roma quando o código cubista proibia qualquer viagem de norte a sul, a não ser entre a Praça des Abbesses e o Bulevar Raspail... Viagem sem tristeza, apesar da ausência de Satie... Vivíamos, respirávamos. Picasso ria ao ver apequenar-se atrás do trem a figura de nossos pintores... Apresentamos Parade num café de Roma... Passeamos ao luar com as dançarinas, visitamos Nápoles e Pompéia."

Em 17 de fevereiro de 1917, Picasso parte para Roma com Cocteau, onde se reúnem com a trupe do Balé Russo, dirigida por Serge Diaghilev, que acabava de contratar um talentoso coreógrafo, Léonide Massine. Em Roma, hospeda-se na Via Margutta, a "rua dos pintores". Cria laços de amizade com o pequeno mundo do balé e apaixona-se por uma das bailarinas, Olga Khokhlova, com que casará em 12 de julho do ano seguinte. Fascinado pelo universo do teatro e da dança, Picasso colabora ativamente executando cortinas de boca de palco, cenários e figurinos de vários espetáculos: Parade (1917), "espécie de colagem cubista" na qual ele cria, em particular, os personagens dos "managers", Le Tricorne [O tricórnio] (1919), Pulcinella (1920), Quadro flamenco (1921), Le Train bleu [O trem azul] (1924), trabalhando uma última vez com Léonide Massine em Mercure (1924), balé surrealista criado para Les Soirées de Paris, do conde Etienne de Beaumont.

A primeira apresentação do balé Parade em Paris, em 18 de maio de 1917, no teatro do Châtelet, provocou uma reação hostil e escandalizada de um público que berrava encolerizado. Uma vez mais, Guillaume Apollinaire foi o único a sentir toda a beleza desse estranho espetáculo: "Aliança da pintura e da dança, da plástica e da mímica, que é o sinal do advento de uma arte mais completa... Em Parade há uma espécie de surrealismo em que vejo o ponto de partida de uma série de manifestações desse espírito novo que promete, na alegria universal, modificar de cima a baixo as artes e os costumes, pois o bom senso quer que eles estejam pelo menos à altura dos progressos científicos e industriais."

A idéia original de Jean Cocteau era simples: consistia em evocar um desfile de artistas de circo, compreendendo um ilusionista chinês, uma menina americana, um cavalo e acrobatas que procuravam persuadir o basbaque a assistir ao espetáculo completo no circo. Picasso, solicitado de início para o cenário, irá intervir consideravelmente, fazendo o projeto evoluir de forma mais complexa do que previra Jean Cocteau. O que ele imagina de mais audacioso para Parade são os personagens dos managers, um francês, caricatura amável de um diretor de circo dândi que evoca supostamente o próprio Diaghilev, e o outro americano, com um megafone, botas de caubói, carregando nas costas um arranha-céu, ambos encarnando o poder do dinheiro. Esses personagens evoluíam pelo palco como imensas construções cubistas que podiam ser vistas como partes móveis do cenário, o qual evocava a modernidade da arquitetura do Novo Mundo. Os managers eram tanto mais terríveis em sua encarnação do poder do dinheiro sobre a arte quanto sua entrada em cena era tonitruante: "Eles personificavam os negócios, a concorrência, a propaganda. Mas, enquanto personagens de balé, eram reduzidos a autômatos, que gesticulavam ferozmente ao mesmo tempo em que criavam um ritmo com o bater de pés durante o silêncio entre os números musicais."

A modernidade dos managers direcionava o espetáculo para o cubismo, cujo caráter vanguardista ainda chocava em 1917 e se refletia no personagem da garota americana, verdadeira diabinha de saia, dedilhando à máquina de escrever, imitando Carlitos, brincando de índios e caubóis, manejando o revólver como um gângster e acabando por afundar com o Titanic!

A mulher-criança emancipada e os managers opunham-se aos artistas tradicionais do circo, cujos trajes eram de uma rara elegância. O ilusionista chinês, imagem familiar do music-hall do início do século XX, enfeitado de cores que lembram a Espanha ? vermelho e ouro ?, era o duplo de Picasso, o iniciado, aquele que se sabe dotado de um poder mágico, isto é, o artista hábil em iludir e cujo estranho destino lembra o dos Saltimbancos; os dois acrobatas sobre o fio estão vestidos de malhas azuis nas quais aparecem o Sol e a Lua, o elemento masculino e o elemento feminino, o amor e o cosmos em equilíbrio instável, como na própria vida.

Último elemento do espetáculo e não dos menos importantes: o cavalo de saia, para o qual Massine imaginou uma pequena coreografia extremamente simples, humorística e sem acompanhamento musical. A presença do cavalo sozinho, sem domador, sem palhaço, entregue a si mesmo e aos seus gracejos, foi um elemento de escândalo a mais na noite de apresentação no Châtelet. Não apenas porque era posto no mesmo plano que os outros elementos do espetáculo, mas também porque tornava evidente que tinha sua fonte de inspiração nos espetáculos de circo, numa inimaginável mistura de gêneros. Um tal disfarce só podia chocar a platéia rica do balé russo de Diaghilev, ainda mais que a cabeça do animal não era naturalista como se poderia esperar, mas introduzia um outro elemento de perturbação uma vez que os espectadores viam uma máscara, uma síntese de cabeça eqüina inspirada pela arte africana que há alguns anos apaixonava Picasso.

Parade é, finalmente, um balé sem história, justaposição dinâmica de elementos visuais que formam uma escultura animada. O prelúdio, apresentado enquanto a música de abertura tocava, era um grande pano de boca de cena no qual Picasso havia pintado uma composição com um grupo de teatro mambembe que figura entre os mais ternos, românticos e evocativos de sua obra. Já o pano de fundo, mostrado aos olhos do público quando se inicia o balé, é de um estilo bem diferente, lembrando a grande pintura de gênero. "Dois Arlequins despertos, uma Colombina sonolenta, um alegre marinheiro napolitano, um toureiro tocando guitarra e uma moça de olhos estrelados e com um chapéu de ponta, servidos por um negro, estão sentados em volta de uma mesa. Olham à esquerda uma fada de asas brancas, de pé sobre o lombo de uma égua que, também alada, amamenta sua cria: a fada estende a mão para pegar um macaco sentado no alto de uma escada azul, vermelha e branca. Trata-se de uma representação de iconografia popular que não podia ser mais decorativa e ingênua".

As realizações posteriores mostrarão um maior senso de respeito e de tradição por parte do pintor, que se coadunará aos princípios do balé clássico ou da cena à italiana: concepção global do teatro daí por diante baseada sobre a harmonia, e não mais no contraste.

Mas a temporada na Itália permitiu-lhe da mesma forma descobrir a arte clássica in situ. Picasso percebe o quanto esta continua viva e é uma fonte de riquezas. Foram necessários alguns meses antes que esse choque visual produzisse seus frutos. E quando, em 1920, vemos aparecer homens e, sobretudo, mulheres de aspecto monumental, isso está relacionado a um movimento mais vasto que então se esboçava, o de um certo "retorno à ordem". O fenômeno foi um tanto precipitadamente associado ao clima antialemão do pós-guerra, o cubismo tendo sido inclusive tachado de arte boche principalmente em razão do papel desempenhado pelo marchand Daniel-Henry Kahnweiler ou pelo crítico Wilhelm Uhde. Mas deve-se pensar também que era natural que a guerra suscitasse nos artistas uma reflexão sobre nossa civilização e os inclinasse a se referir às fontes mediterrâneas.

A existência de um período clássico em Picasso, paralelamente a um emprego sempre fecundo do vocabulário cubista, provoca a incompreensão da crítica e dos amadores. O ano de 1921, em particular, vê surgir duas obras muito dessemelhantes, ambas conservadas no Museum of Modern Art de Nova York: Trois femmes à la fontaine [Três mulheres junto à fonte], mulheres de formas esculturais, as "Juno de olhos de vaca com grossas mãos quebradas e uma túnica branca de pedra" que celebram a Idade do Ouro da civilização antiga, e Les Trois musiciens [Os três músicos], que combina sua experiência de cenógrafo de teatro aos elementos do cubismo sintético. Picasso tem sempre a audácia de ser imprevisível e inapreensível. Ele mesmo disse: "Sempre que tive algo a dizer, eu o disse da forma que sentia ser a correta. Motivos diferentes exigem métodos diferentes. Isso não implica nem evolução, nem progresso, mas uma concordância entre a idéia que se deseja exprimir e os meios de exprimi-la." Picasso apropriava-se assim da "teoria dos modos" do pintor clássico francês Nicolas Poussin, segundo a qual a simbiose entre o tema e a forma era preponderante.

Se Picasso interroga a tradição entre 1917 e 1925, momento da ruptura e da passagem para a violência surrealista, é certamente porque já se colocava o problema da continuidade da imagem e de suas relações com o real. Ele não imita nem plagia a tradição por pura necessidade de retorno às fontes, como se pôde supor em relação a outros artistas, mas coloca sem qualquer dúvida a questão da transformação do real, acreditando, como Platão, que a imitação da natureza é vã. O real, não importa a forma que o artista lhe atribua e mesmo se este parece aderir o máximo possível a ela, nunca é senão uma visão subjetiva ? e com freqüência mentirosa. Roger Bissière, em suas Notes sur Ingres [Notas sobre Ingres], em 1920, observa então que toda uma geração voltou-se para o antigo: "Estamos num momento da história da arte em que nossa raça, tendo feito um esforço considerável e passado por convulsões inacreditáveis, sente o desejo de apaziguar-se, de contar os tesouros que acumulou."

É todo o problema colocado pela perspectiva italiana, que, para oferecer a ilusão do mundo, criou a imagem mais fácil possível desse mesmo mundo. Trata-se de reler o livro da imagem. Picasso passa a tradição grega ou clássica francesa pelo crivo de sua interrogação sobre o mundo e sobre o real, e o faz transformando-a. A tradição revisitada por Picasso adquire um aspecto particularmente monstruoso quando, da escultura grega, ele retira suas mulheres monumentais. Tanto isso é verdadeiro que todas essas mulheres apresentam o mesmo rosto vazio - o rosto de Olga? -, e Picasso sente com certeza um prazer maligno em ridicularizar, sob pretexto de homenagem, a noção mesma de cânone estético; o pintor desfaz a imagem da beleza por sua repetição absurda, e o fato de apresentá-la de forma exagerada só pode nos fazer duvidar de sua legitimidade e querer reencontrar a expressividade e a individualidade. Os primeiros ataques ao corpo estão presentes, mas dissimulados sob a suavidade da representação. O período clássico apenas confirma uma visão intelectual e cerebral da arte nascida no momento do cubismo.

Esse período clássico é também o da "ascensão social" de Picasso. Ele se instala num apartamento de dois andares na Rua La Boétie, não longe dos Champs-Élysées. Cessa de freqüentar a boêmia do Bateau-Lavoir para levar uma vida mais mundana, que surpreende seus amigos mais próximos ? Max Jacob, em particular, fala da "época das duquesas".

A influência de Olga se faz sentir: "Olga encarregou-se de mobiliar a sala que dá para a rua e a sala de jantar que dá para o jardim, e de cuidar que houvesse suficientes cadeiras de boa aparência para acomodar os numerosos visitantes que tinha a intenção de receber de uma maneira correta. Picasso instalou seu ateliê no andar de cima, onde arrumou a profusão de objetos heteróclitos que haviam se acumulado ao seu redor, seja por escolha, seja por acaso."

Porém, não resta dúvida de que essa vida, que só podia pouco a pouco prejudicar sua criação, acabou por pesar-lhe e lançar uma sombra sobre suas relações conjugais. Em 1925, um quadro de uma grande violência aparece: La Danse [A Dança] (Londres, Tate Modern) submerge o clima pacífico das maternidades e dos retratos de Paulo, seu filho nascido em 1921. É uma evocação frenética, na qual aparecem as primeiras marcas das cruéis deformações da década seguinte. Criaturas de pesadelo, mulheres castradoras, que ele agora identifica a Olga, invadem com sua agitação o espaço picassiano, até então votado à antiga serenidade. Picasso livra-se de seus grilhões, projetando na tela seus fantasmas, seus medos e seus desejos. É a oposição entre o apolíneo e o dionisíaco, respectivamente encarnados pelo perfil negro e pelas três mênades que se agitam no centro da composição.

As metamorfoses: 1923-1936

As reações hostis do público por ocasião da estréia do balé Mercure, em 18 de junho de 1924, em Paris, no teatro de la Cigale, suscitam em Les Soirées de Paris uma homenagem vibrante dos principais membros do grupo surrealista a Picasso. Louis Aragon, André Breton, Joseph Delteil, Robert Desnos, Max Ernst, Philippe Soupault e seus amigos exclamam: "Depois de um número tão grande de manifestações anódinas no domínio da arte e do pensamento, em que o público e a crítica concordam em encorajar apenas a mediocridade e as concessões de toda natureza, fazemos questão de testemunhar nossa profunda e total admiração por Picasso que, sem se importar com consagrações, nunca cessou de criar a inquietude moderna e de apresentar sempre sua expressão mais elevada. Com Mercure, eis que ele provoca novamente a incompreensão geral ao oferecer toda a dimensão de seu gênio. À luz desse acontecimento, que adquire um caráter excepcional, Picasso, muito à frente dos que o cercam, revela-se hoje a personificação eterna da juventude e o mestre incontestável da situação."

Vê-se portanto a que ponto o grupo surrealista e em particular seu líder, André Breton, reconhecem o gênio fundador de Picasso, evitando porém reivindicá-lo a seu favor. Após a publicação do Manifesto do Surrealismo, o grupo funda uma revista, La Révolution surréaliste, na qual Breton escreve alguns meses mais tarde, em julho de 1925, sobre o lugar especial que Picasso ocupa no mundo da pintura: "O surrealismo, se insiste em atribuir a si próprio uma linha de conduta, precisa apenas passar pelo que Picasso passou e pelo que ainda passará; dizendo isso, espero mostrar-me muito exigente. Sempre me oporei a uma rotulagem dessa atividade do homem [a pintura] da qual mais persistimos em esperar por um caráter absurdamente restritivo."

A partir de 1925, a pintura de Picasso torna-se o lugar privilegiado da transgressão formal e moral. Corpos deformados, desmembrados, cores estridentes, espaço asfixiante, as obras provocam a incompreensão. O erotismo, a paixão e a violência sexual invadem a iconografia picassiana. O orgasmo torna-se um tema pictórico, submetendo os corpos a sobressaltos formais quase insuportáveis. O amor, como sentimento e como momento de união sexual, estará presente em toda parte, até o último suspiro. A irrupção do surrealismo serviu de elemento motor desse retorno ao instinto. A virada que se observa em Picasso parece corresponder à palavra de ordem lançada por André Breton: "A beleza será convulsiva ou não será". Picasso recorre a um vocabulário formal de uma inventividade inigualável: os corpos humanos constroem-se por encaixes de matérias esponjosas ou minerais para formar audaciosas metáforas eróticas ou para evocar a crueza das relações sexuais: "As fortes e veementes representações de seus personagens de então propõem ao nosso olhar metamorfoses assombrosas. Falou-se, mais de uma vez, de anamorfoses (...) Na realidade, trata-se para ele de uma nova organização do mundo aparente."

Nessa declaração, o crítico de arte Christian Zervos, fundador da revista Les Cahiers d'Art em janeiro de 1926, coloca com muita exatidão o problema. Picasso parece outra vez afastar-se da realidade quando está visceralmente preso a ela, mas a submete a todos os ultrajes: deformações, recriações, manipulações, seja no domínio da anatomia ou naquele, mais estrito, dos objetos. Uma ilustração da realidade sem que ela seja necessariamente fácil de compreender.

O reaparecimento do touro com o qual pudemos identificar Picasso, seja nas fantasmagóricas pinturas de touradas ou nas gravuras em que toma a aparência do Minotauro, coincide com esse período. A tourada, metáfora da vida não apenas por sua brutalidade e violência mas também porque põe em jogo todos os elementos da luta pelo poder e o sucesso - os jogos de sedução da virilidade e da feminilidade, o toureiro e o touro sendo alternadamente macho e fêmea -, aparece somente no final dos anos 1920 para desenvolver-se no começo dos anos 1930, quando Picasso usa a tela ou o papel para projetar seus desejos, suas pulsões, seus fantasmas e seus recalques, paralelamente à paixão que sente por Marie-Thérèse Walter. O motivo concentra-se então na imagem erótica e mortífera do par touro/cavalo, ou do trio touro/cavalo/toureiro, ou da mulher toureira. O touro, duplo de Picasso, tendo ora um corpo de homem vestido, ora um corpo de mulher cujo vestido rasgado e o desmaio sugerem que foi violentada alterna-se com o cavalo, de entranhas abertas, símbolo feminino, e às vezes com uma jovem segurando uma vela junto deles. Misturam-se então o sagrado e os mitos, o do Minotauro e também o do rapto de Europa e o dos amores de Pasífae e do touro branco dedicado a Posseidon. Mas Picasso convoca o mito para melhor eludi-lo. A concentração dos três mitos acima evocados certamente não é fortuita: Europa, que se deixa seduzir por Zeus sob a forma de um touro branco, é a mãe de Minos, rei de Creta, e sogra de Pasífae. Esta, esposa de Minos, culpada de um obscuro desejo e da transgressão de um tabu, não tem a desculpa de ter um deus diante de si, mas simplesmente um animal cuja virilidade a enlouquece. No momento de um parto que podemos supor terrível, Pasífae é dilacerada pelos cornos daquele que ela traz ao mundo, o Minotauro. Ao mesmo tempo monstro e vítima, mistura singular de inocência e de perversidade, o Minotauro é posto secretamente num labirinto construído pelo engenhoso Dédalo, como na consciência de cada um, mas exige regularmente um tributo de sete rapazes e de sete moças. Ele será morto graças à cumplicidade de sua meia-irmã Ariadne com Teseu, o herói.

O confronto das forças antagônicas em Picasso leva sistematicamente à morte ? a do cavalo, do touro ou da mulher toureira, raramente ou quase nunca a do próprio touro. Como se, diferente dos heróis da Antigüidade, o matador picassiano não tivesse condições de dominar a violência, já que o touro é o próprio Picasso permitindo-se todas as transgressões. A primeira é a da supressão do encerramento do Minotauro no labirinto. O Minotauro é um ser monstruoso, fruto de amores que vão além do entendimento e prisioneiro de um lugar que é a metáfora do ventre materno, do qual jamais deveria ter saído. Ao libertar a criatura meio homem, meio animal, deixando-a sair para a natureza ou exibindo-a na arena, onde o encerramento adquire um outro sentido, Picasso reconhece não apenas a existência de amores adúlteros e monstruosos, mas também a descendência que eles podem engendrar.

A primeira transgressão induz a segunda, que é a do reconhecimento da animalidade no homem. O apego de Picasso ao Minotauro não é de ordem formal, ainda que ele tenha o gosto da metamorfose dos corpos, nem de ordem cultural, ainda que ele adore histórias e tradições; o retorno ao mito só é interessante na medida em que revela, em parte, a motivação íntima de um homem ou mesmo de uma época. A finalidade da presença do Minotauro é admitir e fazer admitir que somos duplos: é a inevitável e necessária presença da bestialidade em nós, mesmo se ela nos choca, e a transgressão picassiana consiste em exprimir e em viver, mais ou menos serenamente, aquilo que nos assusta mas que palpita dentro de nós, em particular no domínio sexual. As bandarilhas fincadas na pele, a espada que penetra na carne são outros tantos sinais identificáveis de uma sexualidade assumida, assim como a evisceração do cavalo, sobretudo se pensarmos nos cavalos por ele pintados nos anos 1920. Touro e Minotauro entregam-se a um empreendimento de sedução à qual a mulher (e o cavalo, pois se trata da mesma coisa) não pode ou não quer se furtar. A devoração ritual praticada pelo Minotauro adquire então o aspecto de uma crise erótica violenta e às vezes cruel. Picasso realiza assim a simbiose do religioso, do sexo e da morte num mesmo lugar, a arena, num momento preciso, o do sol abrasador, num único ato, o da tourada, e nos faz ver o paroxismo ao qual aspira.

As tensões conjugais particularmente fortes em 1928 e 1935, o encontro com Marie-Thérèse Walter, em 1927, explicam, em parte, a insistência dos temas eróticos em meados dos anos 1930. Essa mulher está também na origem da série de Cabeças monumentais realizadas em 1931, no castelo de Boisgeloup (no departamento de Eure, França), que ele adquirira no ano anterior. Boisgeloup torna-se o lugar privilegiado, o lugar mágico de que fala Brassaï, jovem fotógrafo que dedica uma reportagem às esculturas de Picasso: "Curioso castelo: a maioria das peças sem móveis, apenas aqui e ali, nas paredes nuas, alguns grandes Picassos. Ele próprio ocupava, com Olga e Paulo, dois pequenos quartos em forma de mansarda. A toque de caixa, visitamos também a pequena capela arruinada (...) Mas tínhamos pressa: 'Há muitas esculturas a fotografar e a noite cairá cedo...', disse ele, arrastando-nos a uma fileira de estábulos, estrebarias e celeiros no pátio junto à casa. Suponho que, ao visitar pela primeira vez a propriedade, não foi tanto o pequeno castelo que o seduziu, e sim essas vastas dependências vazias, a preencher... Ele podia enfim satisfazer um desejo há muito contido: esculpir grandes estátuas. Abriu a porta de um desses grandes compartimentos e pudemos ver, em sua brancura radiante, uma série de esculturas..."

Picasso trabalha regularmente em Boisgeloup até 1935. Este ano é difícil para ele num plano privado: é o rompimento definitivo com Olga que abandona, com o filho Paulo, o apartamento da Rua La Boétie. Picasso falará desse período como o pior de sua vida. O casal separa-se sem divórcio e Olga reivindica Boisgeloup. Picasso, transtornado pelos acontecimentos, retoma contato com seu fiel amigo Jaime Sabartés, que vive então na América do Sul, e convence-o a vir para administrar seus negócios e servir-lhe de secretário. O final do ano é mais feliz. Marie-Thérèse dá à luz, em 5 de setembro, uma menina, Maya, loura como ela. Mas a gravidez e a maternidade afastam a jovem de seu lugar de amante, e, em 1936, Picasso passa a ter um caso com Dora Maar.

O artista ficou fascinado por essa mulher bela e talentosa que assume, por sua conta, os perigos do "acaso surrealista". Picasso descreve assim um de seus encontros: "Ela havia tirado as luvas e pegou uma comprida faca de ponta que fincava na mesa, entre os dedos abertos. De tempo em tempo, errava o alvo por milímetros e sua mão cobria-se de sangue."

As peripécias de sua vida pessoal afastam Picasso provisoriamente das artes plásticas em proveito da escrita. É uma atividade que ele desenvolverá paralelamente à pintura até 1948. Os textos escritos a partir de 1935 e as duas peças de teatro, Le Désir attrapé par la queue [O desejo pego pelo rabo], redigida entre 14 e 17 de janeiro de 1941, e Les Quatre petites filles [As quatro menininhas], escrita de 24 de novembro de 1947 a 13 de agosto de 1948, mostram uma escrita livre, nervosa, automática, segundo a definição surrealista, isto é, que dá livre curso à imaginação sem nenhuma espécie de controle, inclusive na recusa das normas de pontuação e de gramática. É uma transposição da colagem para o domínio da escrita e foi também terreno propício para a expressão de provocações e de fantasmas os mais desvairados.

Em 18 de julho de 1936 começa a Guerra Civil na Espanha, trazendo com ela o horror, o sofrimento, os massacres e a bestialidade que o homem é capaz de mostrar em todo conflito armado. A História fazia então sua entrada trágica na obra de Picasso.

Os anos da guerra e do pós-guerra: 1937-1953

Antes da Guerra Civil, nem as declarações feitas por ele nem as obras produzidas parecem responder a uma motivação política, como se os sobressaltos da história espanhola - não obstante perturbada desde 1923, com o golpe de Estado do general Miguel Primo de Rivera, que se torna o chefe de um governo inspirado no modelo mussoliniano; depois, em 1930, com a chegada dos republicanos ao poder, que tem por conseqüência a abdicação e o exílio do rei Afonso XIII e a proclamação da Segunda República - não lhe tivessem causado impacto. Nas eleições de fevereiro de 1936, vence a Frente Popular Espanhola, formada por socialistas, comunistas e anarquistas. Irrompem então incidentes entre o Partido Republicano e a oposição conservadora. Algumas semanas mais tarde, em 18 de julho, o levante de cinco guarnições importantes do país e a invasão no Sul por unidades do exército e da Legião Estrangeira vindas do Marrocos deflagram a Guerra Civil. Picasso não pode mais ficar fora do conflito quando, em 19 de setembro de 1936, o governo republicano o nomeia diretor do Museu do Prado. No final do ano, para a alegria de todos os amantes da liberdade, a Frente Popular tornava-se o símbolo da resistência frente ao franquismo, sustentado pela Alemanha hitleriana e a Itália fascista.

Nos dias 8 e 9 de janeiro de 1937, Picasso grava Sueño y mentira de Franco [Sonho e mentira de Franco], uma violenta denúncia das atrocidades fascistas na Espanha inspirada pelo testemunho de José Bergamin, poeta e amigo do artista, sobre os bombardeios de Madri em novembro de 1936. As aventuras de Franco, nomeado generalíssimo pela Junta de Burgos, sugerem-lhe uma história em quadrinhos, pois as cenas se inscrevem em quadros retangulares superpostos em faixas. Marcada pelos gritos de terror das mulheres e das crianças, ou pela presença da morte, a obra denuncia a violência e a crueldade impostas ao país por um ditador sangrento. Há evidentemente aqui elementos que anunciam o que será, algumas semanas mais tarde, Guernica. As gravuras serão completadas por um poema em prosa, escrito entre 15 e 18 de junho, de uma ferocidade e uma causticidade extremas, em que ele ataca violenta e diretamente as ações nefastas do caudilho que mergulham a Espanha na barbárie. As vinhetas caricaturais de Sonho e mentira de Franco põem em cena o ditador, reconhecido sem dificuldade por seu sorriso triunfal e seu bigode. Ele aparece como um personagem monstruoso que assume, sucessivamente, o aspecto de um cavaleiro medieval, de uma serpente, de uma maja, de um iconoclasta que quebra um busto, o qual provavelmente representava a República, de um bispo. Monta um cavalo assustador que se transformará primeiro num gigantesco falo e depois, num porco. Cavalo de guerra cruel frente ao cavalo alado de paz, objeto do ataque do monstro grotesco que o atravessa com a lança como um picador, para morrer completamente tombado no chão, com as tripas de fora, remexidas pelo generalíssimo. A vinheta seguinte mostra um cavalo branco, a luz e a esperança, deitado, com a cabeça entre as patas anteriores; seu cavaleiro moribundo, talvez esmagado por seu peso, mas abraçando-o com força como se abraça uma mulher, para que o amplexo prossiga na eternidade da morte. O Caudilho, agora metamorfoseado em cavalo medonho, será estripado por um touro e de suas entranhas surgirão animais repugnantes, bandeiras e estandartes. A Espanha majestosa e tradicional frente à podridão franquista. O drama é mostrado em poucos traços.

"O que você acha que é um artista? Um imbecil que, se é pintor, só tem olhos? (...) Pelo contrário, ele é também um ser político, constantemente atento aos dilacerantes, ardentes ou doces acontecimentos do mundo (...) Não, a pintura não é feita para decorar apartamentos (...) É um instrumento de guerra ofensiva e defensiva contra o inimigo."

O bombardeio da pequena cidade basca de Guernica, ao amanhecer de 26 de abril de 1937, pela Legião Condor ? nome dado ao conjunto das forças alemãs na Espanha ?, revolta os defensores da democracia e da liberdade, sobre as quais pesam então as piores ameaças. No início do ano, Picasso aceitara a encomenda do governo da República de uma composição que deveria decorar o pavilhão espanhol da Exposição Internacional de Paris. Mas ainda não começara o trabalho, pensando numa nova versão para um de seus temas favoritos, o pintor e o modelo, quando a terrível notícia chega a Paris, apenas na noite de 27 de abril. A reação de Picasso é imediata, fulgurante, epidérmica. Ele executa numerosos estudos para a obra e declara: "No quadro em que trabalho, e que chamarei Guernica, exprimo claramente meu horror pela casta militar que fez a Espanha mergulhar num oceano de dor e de morte." Os "diferentes estados" do quadro, terminado em meados de junho, são conhecidos graças a fotografias de Dora Maar, tiradas no ateliê da Rua des Grands Augustins. A pintura é a cristalização de temas surgidos alguns anos antes - o par formado por touro e cavalo, os personagens de corpos desmembrados, o guerreiro alongado -, mas é desprovida de todo elemento narrativo a fim de constituir uma pura imagem de terror. Cada figura humana ou animal adquire uma carga simbólica de tal força que Guernica torna-se emblemática da dor, não apenas das infelizes vítimas da Guerra Civil Espanhola, mas de todos os que sofreram, sofrem ou sofrerão com a barbárie. "Num retângulo preto e branco, tal como nos aparece a antiga tragédia, Picasso nos envia nossa mensagem de luto: tudo o que amamos vai morrer."

A gestação de Guernica começou em 1º de maio, quando Picasso pegou um crayon e esboçou o desenho de uma mulher com os traços de Marie-Thérèse Walter, de um cavalo e de um touro. A posição da mulher não mudará até a composição final, enquanto ele multiplicará as hipóteses para o par touro/cavalo bem como para os personagens e detalhes que virão ampliar o sentido da primeira idéia, centrada na evocação das vítimas. Num dos estágios do trabalho, um pequeno cavalo alado aparece sobre o dorso do touro. É difícil afirmar que se trata aqui de Pégaso, mas pode-se pensar que ele esboça esse cavalo, colocado como se estivesse sobre uma sela, para tentar acalmar a fúria do touro ou mesmo guiá-lo. Reencontramo-lo alguns dias mais tarde escapando do ventre do cavalo moribundo, como se fosse sua alma, para depois desaparecer de vez, certamente porque contém uma conotação mitológica que Picasso julga engraçada diante do acontecimento dramático do qual trata. Quanto ao cavalo simetricamente oposto ao touro, ele irá sofrer modificações constantes, passando da representação mais realista à mais abstrata. Seu corpo é submetido a múltiplas deformações, suas atitudes sendo minuciosamente estudadas, ou em primeiro plano, como num retrato, ou dentro de um grupo: vemo-lo torcido, curvado, com a cabeça voltada para trás, relinchando à morte, caído no chão tentando erguer-se ou desabando pesadamente antes de morrer; sua cabeça sofre as mesmas deformações que a da mulher que chora, e a analogia é perturbadora quando vemos os dois, em desenhos isolados, com a língua monstruosamente estirada para o céu. Picasso examina todas as possibilidades de deformação da anatomia de um cavalo a fim de encontrar a que melhor exprimirá o medo e o sofrimento. Há inclusive um estudo que, por sua esquematização excessiva, parece ter saído das mãos de uma criança. As fotografias de Dora Maar mostrarão igualmente mudanças importantes na posição do cavalo, uma vez começado o trabalho na tela. Com o passar dos dias, o animal erguerá a cabeça para adotar a posição que conhecemos, vítima da infâmia mas resistindo à morte numa atitude de desafio, e não mais de resignação, junto a um touro que parece proteger o grupo formado pela mãe e a criança morta. Picasso muda profundamente o sentido da relação touro/cavalo tal como aparece na tourada, retirando aos poucos o antagonismo mortal dos dois animais em proveito de uma solidariedade frente ao inimigo. No momento de um combate mais grave do que aquele que ocorre na arena, os dois animais se juntam, encarnando então a Espanha ferida, mas que tenta manter a cabeça erguida.

A iminência da guerra inspira-lhe imagens de crueldade e de morte, sendo a mais impressionante a do Chat saisissant un oiseau [Gato pegando um passarinho] (22 de abril de 1939, Paris, Museu Picasso). A obra deve certamente ser relacionada com a queda de Madri, em 28 de março daquele ano, e a de Valencia, no dia seguinte. A república espanhola está morta, a ditadura abate-se sobre a Espanha. No início de julho, Picasso parte para Antibes com Dora Maar, estadia interrompida por uma breve viagem a Paris para assistir ao funeral de Ambroise Vollard, o marchand e amigo de sempre. A passagem por Antibes é marcada por uma grande tela, Pêche de nuit à Antibes [Pesca noturna em Antibes] (Nova York, Museum of Modern Art), inspirada pelo espetáculo da pesca com lamparina, visto no porto por ocasião de passeios noturnos. "Aqui, Picasso está fascinado por esse balé de matança. No vocabulário plástico de Picasso, os peixes estão sempre ligados à crueldade."

Essa matança cruel é evidentemente uma metáfora da noite hitleriana que se abate sobre a Europa. Os cartazes com ordens de mobilização aparecem nos muros das cidades da França. No dia 3 de setembro, a França e a Inglaterra declaram guerra à Alemanha.

Picasso passa o primeiro ano da guerra em Royan, com breves idas a Paris nesse meio-tempo. Ele está acompanhado de Dora Maar, enquanto Marie-Thérèse e Maya se abrigam na villa Gerbier-de-Jonc, não muito distante. Em agosto de 1940 ele volta a Paris e instala-se no ateliê da Rua des Grands Augustins, onde irá viver e trabalhar durante a Ocupação. "Não gosto de ceder à força", diz ele. "Aqui estou, aqui permaneço. A única força que poderia me fazer partir seria o desejo de partir. Permanecer não é realmente um ato de coragem, é apenas uma forma de inércia. Penso que prefiro estar aqui. Então permanecerei, custe o que custar".

A produção é muito abundante durante os anos 1941-1943, e são as naturezas-mortas que melhor evocam os anos de Ocupação, com suas dificuldades e suas angústias ? seja com ironia, em obras que sugerem as preocupações alimentares ligadas ao racionamento, como Le buffet au Catalan [Bufê no Catalan] (1943, Lyon, Musée des Beaux-Arts), seja mais gravemente nas Vaidades*, uma delas inspirada pela morte de seu amigo escultor Julio Gonzalez, La Nature morte au crâne de boeuf [Natureza-morta com crânio de boi] (1942, Düsseldorf, Kunstsammlung Nordrhein-Westfalen). Essas obras são marcadas por um despojamento das formas e um esmaecimento da cor. "Não pintei a guerra porque não sou desse tipo de pintores que saem como um fotógrafo em busca de um tema. Mas não há dúvida de que a guerra está presente nos quadros que fiz então." No entanto, não se vêem apenas caveiras, o luto, o aprisionamento doloroso nas obras dessa época; há também a esperança encarnada pela escultura de L'Homme au mouton [O homem com o cordeiro] (1943, Paris, Museu Picasso), pastor antigo ou bom pastor, esperança num mundo melhor no auge dos anos sombrios, que será instalada em 1950 na Praça de Vallauris. Há também o amor nas obras inspiradas por Dora Maar. Para a adorada Dora, Picasso põe-se a criar, em 1943, objetos encantadores, com o auxílio de guardanapos e toalhas de papel de restaurante ou ainda com maços de cigarros Celtique, transformados em fetiches de sua paixão. Objetos que, para alguns, anunciam as esculturas em chapa metálica, tão importantes nos últimos anos de atividade do Picasso escultor, e que, para outros, são evocações intimistas, como a Tête de chien (Le Bichon blanc) [Cabeça de cão (O cachorrinho branco)], imagem do animal cujo desaparecimento Dora lamentava e que Picasso lhe ofereceu como consolo.

Paris é libertada em 25 de agosto de 1944. O Salão de Outono, primeira manifestação artística do pós-guerra, é chamado naquele ano Salão da Libertação, e Picasso expõe ali. "É justo que os artistas de Paris que ajudaram na libertação da capital tenham pensado em homenagear o pintor que mais eficazmente simbolizou o espírito da Resistência."

A adesão de Picasso, no mesmo momento, ao Partido Comunista francês suscita reações hostis. O público não compreende que, por meio desse gesto, Picasso quer reafirmar seu apoio à causa da República espanhola. Além disso, juntava-se à maioria dos intelectuais franceses da época, entre os quais amigos próximos como Paul Eluard. O engajamento de Picasso traduziu-se por algumas declarações que destacavam o caráter revolucionário de sua pintura, por sua presença no Congresso da Paz, por obras de caráter político, como Massacre en Corée [Massacre na Coréia] (1951, Paris, Museu Picasso) ou pela série Colombes [Pombas]. O rompimento ocorre após o Portrait de Staline [Retrato de Stalin] (1953), que serve de pretexto ao Partido para desaprovar o artista. Picasso não se importa com isso. Os anos do pós-guerra são os da alegria redescoberta: com Françoise Gilot, a nova companheira que conheceu em 1943, a mulher-flor, mãe de Claude, nascido em 1947, e de Paloma, em 1949, ele reencontra a serenidade. Françoise torna-se o novo modelo privilegiado, deusa da luz e da fecundidade, tanto mais que em sua companhia Picasso redescobre o mundo mediterrâneo ao qual se sente mais do que nunca ligado. "Posso dizer que toda vez que chego a Antibes me vejo capturado, como se pegasse piolhos! Em Antibes sou capturado de novo por essa antigüidade." Em 1946, Romuald Dor de la Souchère, conservador do Museu de Antibes, oferece-lhe suas salas. Picasso realiza ali uma série de obras nas quais faunos, bacantes, centauros, ninfas e tocadores de flauta grega recuperam seus direitos. É o período de La Joie de Vivre [A alegria de viver] (1946, Antibes, Museu Picasso).

À graça das pinturas responde a brejeirice das esculturas. Picasso aproveita tudo o que lhe cai às mãos: uma jarra, carrinhos de brinquedo de seu filho Claude, uma bola de pingue-pongue, e temos La Guenon et son petit [A macaca e seu filhote] (1951, Paris, Museu Picasso); chapas de madeira, um cabo de vassoura, pés de cama, e temos Les six Baigneurs [Os seis banhistas] (1956, Stuttgart, Staatgalerie), das quais o Museu Picasso possui as reproduções em bronze. Picasso aborda, pela primeira vez, o problema de um grupo de vários personagens - La Plongeuse [A mergulhadora], o Homme aux mains jointes [Homem de mãos juntas], o Homme Fontaine [Homem fonte], a Femme aux bras écartés [Mulher de braços abertos], o Jeune homme [Jovem] - que funcionam em sinergia, tendo ao mesmo tempo sua própria personalidade. A importância que Picasso dava a esse grupo é atestada por seu aparecimento nos desenhos e pinturas relacionados à decoração do Palácio da Unesco em Paris, em 1957-1958.

No domínio da cerâmica, o artista subverte uma vez mais a tradição ao criar peças em que a verve e a fantasia disputam com a invenção. É em 1946 que Picasso conhece Suzanne e Georges Ramié, que dirigiam em Vallauris uma fábrica de cerâmica, o ateliê Madoura. Picasso apaixona-se totalmente pela técnica, a maleabilidade da argila, a magia do cozimento no forno, o colorido vibrante do esmalte e o brilho dos vernizes. Passa a modelar faunos, ninfas, corujas, cântaros, pratos, que ele decora com cenas de tourada ou motivos antigos, de uma maneira tão ousada que os Ramié diziam que "um aprendiz que trabalhasse como Picasso não encontraria emprego". Vallauris, da qual ele se tornou cidadão de honra, é testemunha de um trabalho sobre La Guerre et la Paix [A guerra e a paz], entre abril e setembro de 1952, que deu origem aos painéis do Temple de la Paix [Templo da Paz], instalados numa capela abandonada da cidade. É uma das últimas manifestações das idéias pacifistas, pois Picasso ingressa então numa outra fase, a dos "confrontos" com os mestres da pintura que vão marcar vários anos de sua vida.

Os últimos anos: 1954-1973

É no ateliê Madoura, em Vallauris, que Picasso conhece Jacqueline Roque, prima da sra. Ramié. Ela será a inspiradora dos últimos anos, o modelo ideal que concentra em sua pessoa as qualidades de amante, de esposa, de protetora. Seu rosto, em particular, o fascina: ela se assemelha curiosamente a uma das Femmes d'Alger [Mulheres de Argel] de Delacroix, obra sobre a qual ele empreende variações em 1954.

De 1950 a 1962, Picasso explora a obra dos grandes mestres da pintura ocidental: Delacroix e Les Femmes d'Alger, Velázquez e As Meninas, Manet e Le Déjeuner sur l'herbe [Piquenique na relva], Poussin e L'Enlèvement des Sabines [O rapto das sabinas]. É um desafio singular ao qual Picasso se lança. Mas não é ele um homem que a vida inteira nunca deixou de questionar a si mesmo? A pintura torna-se o tema de reflexão predileto do pintor, que oferece seus próprios elementos de resposta. Michel Leiris propôs uma explicação para essa pergunta tão particular: "Partir de um quadro de Manet, de El Greco, de Cranach, de Courbet ou de Poussin para fazer outra coisa, será realmente um procedimento diferente da invenção constante de signos novos para a figuração dos mesmos objetos? Retomar por conta própria a obra de um pintor mais antigo não é tratá-la como uma coisa integrada à vida, que não pode ficar adormecida e precisa ser levada, de certo modo, a cumprir sua evolução natural? Nada (deve-se acreditar) poderia permanecer inerte, tendo uma vez chegado aos olhos ou às mãos de Picasso."

Pode-se legitimamente perguntar por que Picasso demorou tanto em entregar-se a uma exploração sistemática daqueles que intervieram em sua pintura desde os primórdios. Além do rompimento com Françoise Gilot, parece que um dos acontecimentos determinantes dessa catarse pictórica foi a morte de Matisse, em 3 de novembro de 1954, a quem ele presta uma soberba homenagem cheia de tristeza em algumas representações feitas no ateliê de sua villa La Californie, em Cannes, mas vazia da presença de um outro pintor, com uma tela virgem que mão nenhuma virá mais pintar. Será que podemos compartilhar a tranqüila convicção de Michel Leiris? Apropriar-se da pintura dos outros é certamente uma constante na história da arte; mas quem jamais, senão Picasso, a violou a ponto de torná-la irreconhecível pela incorporação de sua iconografia pessoal? O modelo transforma-se, adquire uma forma paródica, cômica ou sacrílega, perde sua vida própria para ser "digerido" por Picasso. Um verdadeiro fenômeno de transubstanciação aparece na tela: a pintura dos mestres é totalmente reinventada, como se fosse uma obra saída de sua própria imaginação. O termo paráfrase, usado às vezes para designar esse período, não parece correto; trata-se não apenas de uma apropriação, mas também de uma liquidação, pois, com as Variações, Picasso acerta contas com a tradição e descobre um frescor que será o apanágio de seus últimos anos. Pode-se dizer que ele vai da homenagem ao repúdio.

A primeira razão desse empreendimento é certamente a homenagem: a morte de Matisse coloca para Picasso o problema da herança, já que ele admite que este último lhe legou suas odaliscas. Quando Picasso pronuncia essa frase ao trabalhar em Les Femmes d'Alger, convém não apenas tomá-la ao pé da letra e pensar que Picasso irá agora representar belas mulheres sensuais, mais ou menos despidas, como as odaliscas matissianas dos anos 1920 e 1930. Ele compreendeu o sentido verdadeiro do Oriente revisitado por Matisse sob um exterior amável e a necessidade que ele, Picasso, tem de retomar o corpo-a-corpo com a pintura, de ocupar-se em resolver a questão do espaço, do volume, da cor, de fazer com que a pintura se torne o tema da pintura e não se apague diante do tema, como sucedeu com freqüência em sua obra. Isso explica que algumas versões de Les Femmes d'Alger ou de As meninas evoquem mais Matisse do que seus criadores. O que se deixa de si? Do que se é herdeiro? A sensualidade combina-se com a interrogação sobre a sobrevivência da arte. No caso em questão, a série é uma imagem no sentido latino do termo, exprimindo não apenas a imitação mas também o vínculo com o mundo dos mortos, pois a imago designava o retrato do antepassado em cera colocado no átrio e levado em cortejo fúnebre. Picasso cumpre assim, conscientemente ou não, um rito funerário antigo que faz da imagem o vínculo mais forte entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Rito que se prolonga pelo estudo dos problemas pictóricos que as obras escolhidas colocam, em particular as séries das Meninas e do Déjeuner sur l'herbe, que não podem ser concebidas uma sem a outra, pois Picasso, conhecendo bem a admiração de Manet por Velázquez, põe em evidência o antagonismo de suas respectivas pinturas na resolução do problema do espaço.

As Meninas representam um enigma terrível para quem as olhar bem, e Picasso foi um dos primeiros a analisar com argúcia a ambigüidade espacial que reina nesse quadro, do qual já havia retomado o esquema nas Demoiselles d'Avignon, em 1907, e sobre o qual tirou conclusões em 1957: "Observe (...) e procure descobrir onde cada um dos personagens está realmente situado. Velázquez está no quadro quando não deveria estar; ele dá as costas para a infanta que, à primeira vista, pensaríamos ser seu modelo. Está diante de uma grande tela na qual parece trabalhar; mas vemos somente a parte traseira do quadro e não temos nenhuma idéia do que ele pinta. A única solução é que está pintando o rei e a rainha, dos quais vemos apenas o reflexo no espelho, bem no fundo da peça; o que, entre parênteses, implica que eles não olham para Velázquez, mas olham para nós através do espelho. Portanto, Velázquez não está pintando As Meninas. As damas de honra estão reunidas em volta do pintor não para posar, mas para vê-lo fazer o retrato do rei e da rainha."

Picasso examina a fundo o conjunto da cena e prolonga tanto a encenação audaciosa quanto a insolência do pintor ao romper, por sua vez, as leis do gênero e ao incorporar os dados cubistas, além de aumentar a silhueta do pintor, que acaba por dominar o conjunto em detrimento das aias e da infanta, ao mesmo tempo em que simplifica o espaço.

Para o lugar das Meninas vai Déjeuner sur l'herbe de Manet, empreendido de 1959 a 1961. O mecanismo então se inverte, pois o artista examina um espaço que, em 1863, fora criticado por assemelhar-se ao de uma carta de baralho ? isto é, vulgar e sem interesse ? por causa da mulher inclinada atrás do grupo principal, privada de espessura carnal. Picasso torna a dar volume lá onde Manet o suprimira, jogando com entrelaçamentos decorativos, dispondo os personagens de modo diferente e utilizando as qualidades espaciais da cor. Ele modifica o mundo de Velázquez mas apropria-se do de Manet, ao reinterpretá-lo não apenas no plano plástico mas também no plano iconográfico, porque sabe que uma simples cópia não pode produzir um sistema de signos. É indispensável, portanto, fundar novamente um mundo a partir do mundo de um outro para que a obra adquira um sentido. As primeiras versões fazem aparecer a relação de prostituição estabelecida entre os personagens de Manet; depois, gradativamente, na evolução do trabalho, Picasso afasta o sentido primeiro e escandaloso da obra ao suprimir a ligação do olhar entre nós e a mulher, o olhar direto, a pose mais comprometedora da história da arte, para reforçar os laços entre os próprios personagens, despindo a todos, a ponto de o quadro tornar-se uma cena campestre. A tensão erótica desaparece e dá lugar a uma visão da Idade de Ouro. Também aqui Matisse não está distante.

O ato de criação picassiano mostra-se por inteiro nessas variações, assim como no filme que Henri-Georges Clouzot roda em Nice, em 1955, Le Mystère Picasso. Clouzot espreita seus menores gestos para tentar flagrar o segredo do artista, que aceita trabalhar diante da câmera. O mundo inteiro esquadrinha Picasso. As retrospectivas de sua obra se sucedem em Paris, Munique, Bruxelas, Amsterdã, Nova York e Chicago. Nesse meio-tempo, Picasso instala-se definitivamente no sul da França com Jacqueline.

Em 1958, ele retorna à Antigüidade com a realização de imensos painéis encomendados para o Palácio da Unesco, em Paris, sobre o tema da queda de Ícaro, e ilustra o destino trágico de Ícaro que, ao voar imprudentemente muito perto do Sol, faz derreter a cera que prendia as asas a seus ombros, cai no mar e morre.

Alguns meses mais tarde, Picasso compra o castelo de Vauvenargues, ao pé da montanha Sainte-Victore, perto de Aix-en-Provence, onde se instala no ano seguinte. "Habito a casa de Cézanne", ele dirá com prazer, apropriando-se do lugar depois de ter se apropriado da obra. É em Vauvenargues que começa os estudos para o Déjeuner sur l'herbe, de Manet. Os primeiros desenhos datam de agosto de 1959, e a conclusão do ciclo corresponde a uma nova mudança de casa: com Jacqueline, ele passa a morar em Notre Dame de Vie, casa de campo em Mougins. Começam então os últimos anos de Picasso. Sua obra continua transbordante de invenção, mas os desenhos, as gravuras e as pinturas desse período suscitam o incômodo e a incompreensão. As reações hostis subseqüentes às duas exposições em 1970 e 1973, no Palais des Papes, em Avignon, o revelam. Fala-se de "garatujas inconseqüentes feitas por um velho frenético". É verdade que, a partir de 1966, ele pratica uma pintura emancipada, que a todo momento ultrapassa os limites do bom gosto, tanto nos temas marcados por uma forte carga sexual - os nus ou a série Baisers [Beijos] - quanto na técnica de tinta escorrida, empastada, borrada, "escandalosa" pelo desprezo ao belo ofício que o pintor parece demonstrar e pela estridência das cores. Picasso pouco se preocupa com as reticências suscitadas pela persistência dos temas eróticos em sua arte; a seus detratores ele responde: "É somente quando a pintura não é boa que há atentado ao pudor."

Sua capacidade de renovação, seu gosto por arriscar-se tão logo se sentisse "instalado" dentro de um estilo, sua extrema liberdade de espírito, sua curiosidade sempre desperta permitiram-lhe a franqueza dessa última fase. Picasso, uma vez mais, antecipava e abria novos caminhos, nos quais se precipitaram os representantes do expressionismo dos anos 1980 e 1990. Ele se obstina em criar até que a doença o obriga a parar. Picasso morre num domingo, em 8 de abril de 1973.

"Por sete vezes, naquele 8 de abril, um chapim bobo e insistente bateu com o bico na vidraça da janela, fazendo-me passar da atenção matinal ao alerta do meio-dia. Uma notícia daqui a pouco? Às quatro da tarde, eu soube. O terrível olho havia cessado de ser solar para se aproximar ainda mais de nós."

(*) Dominique Dupuis-Labbé é curadora do Museu Picasso de Paris e da exposição "Picasso na Oca - Uma Retrospectiva"

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