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21/12/2005

Impressões: O discreto charme da burguesia de Zurique

por Alain de Botton

André Klotz
[1] O mais sincero elogio que se pode fazer a Zurique é descrevê-la como uma das grandes cidades burguesas do mundo. É claro que isso talvez não soe como elogio -já que, para muitos, a palavra burguesia, desde os primórdios do movimento romântico, no começo do século 19, ganhou conotação de insulto. "O ódio à burguesia é o início da sabedoria", considerava Gustave Flaubert -uma frase típica em se tratando de um escritor francês de meados do século 19, para quem tal desdém era tanto um emblema de sua profissão quanto um caso com uma atriz ou uma viagem ao Oriente. De acordo com o sistema romântico de valores que domina o imaginário ocidental até hoje, ser burguês é sinônimo de ser obcecado com dinheiro, segurança, tradição, limpeza, família, responsabilidade, recato e, possivelmente, caminhadas revigorantes ao ar livre. Conseqüentemente, nos últimos 200 anos poucos lugares do mundo ocidental estiveram tão profundamente fora de moda quanto a cidade de Zurique.

Em Zurique, o desejo de possuir um carro e evitar a obrigação de compartilhar ônibus ou trem com estranhos perde urgência graças à rede de bondes limpa e eficiente
[2] Garotas atraentes nascidas fora da Suíça são especialmente avessas a ir a Zurique. Tais garotas (e a ciência moderna comprova) preferem Sydney ou Los Angeles. Mesmo que estejam à procura de algo protestante e caseiro, elas dão preferência a Amsterdã ou Copenhague.

André Klotz
A maior cidade da Suíça convida a longas caminhadas de exploração. Museus, monumentos históricos, restaurantes e cafés dividem a atenção dos viajantes
A maior cidade da Suíça convida a longas caminhadas de exploração. Museus, monumentos históricos, restaurantes e cafés dividem a atenção dos viajantes
Sempre procurei fazer com que as garotas se interessassem por Zurique. Sempre pensei que uma garota capaz de gostar de Zurique poderia gostar de recantos importantes meus. Mas tem sido difícil. Lembro uma viagem feita com Sasha. Ela era artista, era sedutora, era complicada. Tínhamos discussões furiosas, muitas vezes no meio da noite. Às vezes a discussão ia assim:

Ela: Você não gosta de mulheres inteligentes. É por isso que está discordando de mim. Eu: Gosto de mulheres inteligentes, sim, mas infelizmente você não é uma.

Nenhum de nós dois saía muito bem desse tipo de embate. É um lembrete (como se isso fosse preciso) de que os amantes praticam uma forma de descortesia impossível, exceto em situações de guerra declarada.

André Klotz
Num fim de semana Sasha e eu voamos para Zurique (vivíamos em Hackney, em Londres, éramos boêmios e tínhamos opiniões evoluídas acerca de Habermas). Tentei fazê-la ver quão exótica era Zurique. Os bondes eram exóticos, como também o eram o supermercado Migros, o concreto cinza claro dos prédios de apartamentos, as janelas grandes e sólidas e os escalopes de vitela. Normalmente associamos a palavra "exótico" a camelos e pirâmides. Mas talvez qualquer coisa diferente e desejável faça jus ao termo. O que me parecia mais exótico era o quão gloriosamente enfadonho era tudo. Ninguém estava sendo morto por balas perdidas, as ruas eram silenciosas, tudo vivia em ordem e, como todo mundo costuma dizer (se bem que não se vejam pessoas tentando fazêlo), tudo, de modo geral, era tão limpo que seria possível colocar seu almoço em cima da calçada e comê-lo ali mesmo.

Mas Sasha estava entediada. Ela queria voltar a Hackney. Ela não suportava o asseio. Quando fizemos uma caminhada em um parque, ela me contou que tinha vontade de pichar insultos nos muros -apenas para abalar um pouco a ordem reinante. Ela lançou um gritinho experimental, e uma senhora de idade que estava lendo o jornal ergueu a cabeça para ver o que se passava. O tédio de Sasha me fez recordar meu amigo Gustave Flaubert, que cresceu em Rouen, cidade que talvez seja um pouco como Zurique, faltando apenas o lago. "Sinto enfado, enfado, enfado", escreveu Flaubert em seu diário quando era jovem. Ele retornou repetidas vezes ao tema de quão maçante era viver na França, especialmente em Rouen. "Hoje meu tédio foi terrível", ele anunciou ao final de um domingo ruim. "Como são belas as províncias, e como são chiques as pessoas de posses que ali vivem. Elas falam de impostos e de melhorias nas estradas. O vizinho é uma instituição fabulosa. Para lhe conferir toda a importância social que ele merece, ele sempre deveria ser escrito em letra maiúscula: VIZINHO. "Sasha ficava entediada com Flaubert (ela tentara ler "A Educação Sentimental", mas se deixara vencer pelo tédio na metade do livro), mas, pelo menos, ela e Flaubert concordavam sobre o tédio de viver em um lugar que é um tédio.

Entretanto, como as mães costumam nos dizer perto do final das férias escolares, são sobretudo as pessoas entediadas que sentem tédio -e eu comecei a perder paciência com o tédio de Sasha. Eu queria alguém suficientemente interessante por dentro para não precisar exigir da cidade que também ela fosse "interessante" -alguém suficientemente próximo das fontes da paixão para não se importar se sua cidade não fosse "divertida"; alguém suficientemente familiarizado com os lados mais trágicos e sombrios da alma humana para apreciar a calma de um fim de semana em Zurique. Sasha e eu não continuamos juntos por muito tempo.

André Klotz
O conforto dos bondes seduz a população local e também os turistas, que podem conhecer toda a cidade com rapidez e segurança
O conforto dos bondes seduz a população local e também os turistas, que podem conhecer toda a cidade com rapidez e segurança
[3] Mas a atração que eu sentia por Zurique continuou. O que mais me agradava em Zurique era a imagem daquilo que estava envolvido na vida "ordinária" ali. Levar uma vida ordinária em Londres não costuma ser empreitada invejável: os hospitais, escolas, conjuntos habitacionais ou restaurantes "ordinários" são quase sempre medonhos. Existem, é claro, ótimos exemplares de tudo isso, mas são apenas para os muito ricos. Londres não é uma cidade burguesa. É uma cidade de ricos e de pobres.

De acordo com uma ala influente da sociedade secular moderna, existem poucos destinos mais desonrosos do que acabar sendo "como todo mundo", pois "todo mundo" é uma categoria que engloba os medíocres e os conformistas, os maçantes e os suburbanos. A meta de todas as pessoas bem pensantes deveria ser a de diferenciar-se da multidão e destacar- se de qualquer maneira que seus talentos permitam. Mas o desejo de ser diferente depende do que significa ser comum. Existem países em que a habitação, os transportes, a educação e a saúde coletivos são de ordem tal que os cidadãos naturalmente buscam fugir do envolvimento com o grupo, entrincheirandose por trás de paredes sólidas. O desejo de status elevado nunca é mais forte do que a necessidade de levar uma vida simples e ordinária. Trata-se da busca por uma existência que satisfaça o desejo por dignidade e conforto.

Existem outras e muito mais raras comunidades, muitas delas imbuídas de forte legado cristão (com freqüência protestante), nas quais o domínio público expressa o respeito em seus princípios e sua arquitetura, e onde a necessidade de escapar para um domínio privado é, portanto, menos intensa. Os cidadãos podem perder algumas de suas ambições de glória pessoal quando os espaços e as instalações públicas da cidade são, eles próprios, gloriosos de contemplar. Simplesmente ser um cidadão ordinário pode parecer um destino suficiente. Na maior cidade da Suíça, o desejo de possuir um carro e de evitar a obrigação de compartilhar um ônibus ou trem com estranhos perde parte da urgência que ele pode ter em Los Angeles ou Londres, graças à rede espetacular de bondes de Zurique -limpa, segura, de temperatura amena e edificante em sua pontualidade e sua qualidade técnica. Há poucos motivos para viajar sozinho quando, por apenas alguns francos, um sistema de bondes eficiente e imponente nos levará de um lado a outro da cidade com um grau de conforto que até um imperador poderia invejar.

[4] Existe algum constrangimentoem amar profundamente o pintor holandês do século 17 Peter de Hooch, tão profundamente a ponto de incluí-lo entre seus pintores favoritos. Das 170 obras atribuídas a ele, a maioria é simplesmente medíocre, muito tosca durante a fase inicial do artista ou demasiado maneirista em seus últimos anos. Ele opera em um gênero menor, seus quadros são bonitinhos demais, mas, ao mesmo tempo, não são suficientemente bonitinhos, não tanto quanto os de Raphael ou Poussin, e, comparado com seus compatriotas, faltam a ele a inventividade de Van Steen, a graça de Vermeer ou a densidade de Van Ruisdael. Sua moralidade pode parecer reacionária, uma celebração das ocupações humanas mais banais: catar piolhos, lavar o quintal. Ele nem sequer pinta pessoas muito bem: basta olhar de perto para os rostos que ele pintou para ver que não passam de esboços. No entanto, eu o amo há muito tempo por razões muito semelhantes àquelas pelas quais amo Zurique: porque ele compreende e honra a vida burguesa, sem sentimentalizá- la. Apesar das diferenças, o mundo que ele pinta parece ser essencialmente idêntico à Zurique na qual eu cresci.

De Hooch freqüentemente é descrito como alguém que se enquadra na tradição da arte e da literatura holandesa que proferiam sermões sobre as virtudes da vida doméstica. Embora os quadros de De Hooch de fato lancem um olhar positivo sobre as ocupações domésticas, embora seja pouco provável que, depois de vê-los, saiamos encorajados a romper nosso casamento ou deixar a cozinha suja, parece injusto rotulá-lo como mero moralista da virtude doméstica. Ele nunca nos diz que é importante amar nossos filhos ou conservar a casa asseada -apenas nos oferece exemplos tão comoventes e evocativos de amor materno e ambientes asseados que dificilmente discordaremos dele.

De Hooch nos ajuda a entender melhor Zurique e seu eterno charme burguês. Ele respeita e honra as tradições da vida familiar e doméstica, como os prazeres simples do lar.
Ademais, sua arte não possui o tom farisaico de boa parte da propaganda declarada das virtudes domésticas. Os prazeres simples do lar são mostrados como conquistas extremamente vulneráveis. Os críticos podem argumentar que De Hooch não pintava a Holanda do século 17 como ela realmente era; eles podem observar que muitas mulheres eram maltratadas por seus maridos, que muitas casas eram sujas e primitivas e que existia um grau de sangue, sujeira e dor que De Hooch optou por não representar, preferindo, em lugar disso, idealizar as coisas. No entanto, sua arte nunca é sentimental porque é tão imbuída da consciência das forças mais sombrias que a qualquer momento podem derrotar a serenidade tão arduamente conquistada. Não precisamos que nos digam que a Holanda não era limpa -temos sugestões suficientes disso nas vistas que temos das muitas janelas nos finais dos corredores das telas de De Hooch. Não precisamos que nos digam que a ordem conquistada pelas mulheres em seus lares poderia ser destruída pela guerra ou por maridos irresponsáveis. Também esse é um perigo que conseguimos sentir.

Em "Mulher Preparando Menino para Ir à Escola", uma mãe passa manteiga no pão para seu filho, que está em pé diante dela, obediente -um homenzinho segurando o chapéu na mão, vestindo paletó cinza asseado e sapatos bem engraxados. Se a cena é ao mesmo tempo não sentimental e comovente, é porque nos faz sentir quão evanescentes são essas intimidades de mãe e filho. No lado esquerdo da tela, um corredor conduz à porta aberta e à rua, onde há um prédio grande com a placa "schole". Em pouco tempo o menino vai disfarçar tudo o que deve a sua mãe, que durante anos passou manteiga em seu pão e catou piolhos de seus cabelos.

A arte de De Hooch nos ajuda a recuperar associações positivas com uma palavra com a qual talvez tenhamos relações de profunda ambigüidade: burguês. Ela parece carregada de conotações negativas; pode ser associada a conformismo, falta de imaginação, rigidez, pedantismo e esnobismo. No mundo de De Hooch, porém, ser burguês significa vestir roupas simples mas atraentes, não ser nem demasiado vulgar nem muito pretensioso, ter uma relação natural com os filhos, reconhecer os prazeres sensuais sem ceder à libertinagem. Parece encarnar a média aristotélica.

Suas obras realizam a tarefa valiosa de nos fazer lembrar do interesse e valor dos ambientes modestos, de dominar as ambições e tentações vaidosas de afastar-nos, com esnobismo, das rotinas do cotidiano ordinário: a refeição noturna, os trabalhos domésticos, tomar um trago com os amigos. Ao prestar atenção à beleza de uma parede de tijolos, de uma luz que se reflete de uma porta encerada, das dobras do vestido de uma mulher, De Hooch nos ajuda a encontrar prazer nesses aspectos de nosso mundo que são onipresentes, mas que costumam ser ignorados.

Reprodução
Obra
Obra "Mãe e Filha com a Cabeça no Colo Materno" [Rijksmuseum, Amsterdã]
[5] Cerca de 70 anos antes de Peter de Hooch pintar suas maiores telas, em um trecho de seus "Ensaios", Montaigne articulou idéias que pareciam captar em palavras parte do ambiente da arte de De Hooch -e, por sua vez, as qualidades sobre as quais, a meu ver, se fundamenta a grandeza de Zurique. Ele escreveu: " Invadir uma brecha com forças militares, dirigir uma embaixada, governar uma nação, são feitos brilhantes. Repreender, rir, comprar, vender, amar, odiar e conviver com justiça e gentileza com seus familiares -e consigo mesmo-, sem se deixar cair no ócio nem criticar-se excessivamente, é algo ainda mais notável, mais raro e mais difícil. Não importa o que as pessoas possam dizer, essas vidas protegidas se traduzem, desse modo, em deveres que são pelo menos tão árduos e tensos quanto os de outras vidas".

Infelizmente, essa percepção se perde constantemente. Nós nos esquecemos a todo momento que passar manteiga no pão de um filho e arrumar as camas possuem dimensões maravilhosas. Sir Joshua Reynolds, evidentemente, não compreendeu isso. Escrevendo sobre Jan van Steen, no século seguinte, ele observou que, embora a obra de Van Steen fosse belíssima, "ele teria estado entre os grandes pilares e apoiadores da arte" se tivesse podido viver em Roma, a maior cidade do mundo para os artistas, em lugar de Leiden, uma cidadezinha deprimente, semelhante a Zurique. Em Roma, ele teria a inspiração necessária para pintar telas grandiosas; não seria obrigado a limitar-se a mendigos e comerciantes, cidades provinciais e à algazarra do cotidiano. Uma das glórias da arte holandesa do século 17 é que ela desmente as palavras de sir Joshua Reynolds. Ao lado de Van Steen e Vermeer, Peter de Hooch e suas donas-decasa limpando seus pátios merecem boa parte do crédito por isso.

[6] A lição única que Zurique tem para passar ao mundo consiste em sua capacidade de nos lembrar quão verdadeiramente humano e imaginativo pode ser pedir a uma cidade que não seja senão enfadonha e burguesa.

Reprodução

Outras obras do pintor holandês Peter de Hooch

Hotéis

Widder Hotel
Rennweg 7
Tel. (00/xx/41) 442-24-25-26
Ideal para quem gosta de aliar o design (o mobiliário Bauhaus é fabuloso) e a arte (há peças de Andy Warhol e esculturas) ao conforto. Diárias a partir de US$ 300 (por pessoa). Confira o bar de jazz.

Hotel Greulich
Herman-Greulich-Strasse
Tel. (00/xx/41) 432-43-42-43 www.greulich.ch
Os quartos dão para um delicioso jardim. A cozinha privilegia produtos naturais. Diárias a partir de US$ 220 (por pessoa).

Restaurantes

Kronenhalle
Rämistrasse 4
Cozinha internacional cara mas saborosíssima. Na decoração, obras de arte de Picasso, Miró e Giacometti.

Lily`s Stomach Supply
Langstrasse 197
Freqüentado pelo público jovem, serve comida asiática e é bastante animado.

Hiltl
Sihlstrasse 28
O primeiro vegetariano da Europa, ainda hoje uma referência na cidade. Bufê variado a preços razoáveis.

Não deixe de ir

Museu de Arte de Zurique, Kunsthaus
Obras de Picasso, Anselm Kiefer, Cézanne, Van Gogh, Monet e Munch.

Centre Le Corbusier
Hoeschgasse 8
O edifício feito pelo arquiteto franco-suíço funciona como museu e galeria.

Igreja Fraumünster
O atrativo é a coleção de vitrais criados por Marc Chagall.

Igreja de São Pedro
Erguida no século 13, tem o maior relógio da Europa, com 8,7 metros de diâmetro.

O escritor suíço Alain de Botton é autor de "Desejo de Status" e "A Arte de Viajar" (Editora Rocco).
Tradução de Clara Allain

     

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