21/12/2005
Gastronomia: Sete colinas, sete comidas
Lisboa é a cidade das sete colinas? Talvez, talvez. Pessoalmente, é a cidade das sete comidas: sete restaurantes que povoam os meus sonhos e, aposto, irão povoar os seus também. Mas por onde começar?
por
João Pereira Coutinho
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Com sua arquitetura secular, construída sobre vales e perto do encontro do rio Tejo com o oceano Atlântico, Lisboa oferece as mais variadas opções gastronômicas |
Fácil: há 250 anos, um terremoto brutal destruiu a cidade antiga. Dia de Todos os Santos, horror na Europa, Voltaire questionando: e Deus? Onde estava Deus? O marquês de Pombal respondeu: Deus sou eu. E acrescentou: vamos agora enterrar os mortos, cuidar dos vivos e reconstruir Lisboa. Pois bem. Em homenagem ao marquês, comecemos na rotunda do mesmo nome, bem no coração da capital. E entremos no Pabe, um restaurante que abriu as portas dois anos antes da Revolução dos Cravos, ou seja, em 1972. O ambiente é rústico, medieval. Pub inglês, dizem. O cardápio é arrasador e se a idéia é carne, você está no sítio certo. Mas calma. Aconselho uma entrada ligeira -um salmão marinado, por exemplo- e depois, só depois, um ataque maciço às carnes do lugar. O Pabe tem o melhor bife tártaro da cidade, confeccionado à sua frente com sentido teatral. Mas, se você for pessoa de coragem, então aconselho o misto de caça, especialidade da casa, acompanhado com castanhas e bem regado com uma garrafa de Cartuxa, reserva de 2002. Você vai provar, e repetir, e voltar a provar. No final, todas as sobremesas valem a pena. Eu sou reincidente nos crepes flambados.
Deixando o Pabe, descemos a avenida da Liberdade -ou, como se dizia no século 19 de Eça de Queirós ou Camilo Castelo Branco, "fazemos" a Avenida em direção aos Restauradores e ao Rossio. Ótimo. Paremos no Rossio. E, junto ao Teatro Nacional d.Maria 2ª, provamos o Gambrinus. Aviso: a carteira é importante. Segundo aviso: a carteira, no fundo, não é tão importante assim. O Gambrinus é provavelmente a mesa mais clássica de Lisboa, com 70 anos de vida e séculos de sabedoria. Especialidades? Tudo que cheire a mar. A parrilhada de marisco é uma das razões pelas quais vale a pena viver. Se for sexta-feira, peça imediatamente o bacalhau no forno com azeite e batatinhas alouradas. Acompanhamento? Eu prefiro um bom tinto alentejano -um Marquês de Borba, ou um Pêra-Manca (ai, carteira…)- e, como "grand finale", o semifrio de avelã com chocolate. Mas eu, naturalmente, já estou a delirar. E a salivar.
Um bom tinto alentejano, o melhor queijo da Serra da Estrela e o clássico bacalhau: a cozinha portuguesa é irresistível. Ah, e ainda tem as sobremesas, como a encharcada de ovos e o bolo real
Parados no Rossio, podemos avançar para a esquerda ou para a direita. Se formos para a esquerda, chegamos ao Bica do Sapato, na avenida Infante D. Henrique. É improvável que os taxistas saibam o nome das ruas: o melhor é dizer simplesmente que o Bica do Sapato fica junto à velha estação ferroviária de Santa Apolónia. O Bica é um acontecimento visual: instalado num antigo armazém, possui sushi-bar no primeiro andar e, no rés-dochão, a mais improvável mistura de "nouvelle cuisine" e gastronomia lusitana. Esqueçam o sushi, escolham Portugal. E com o Tejo ao fundo. O cardápio é o mais atualizado de Lisboa e, com o devido respeito aos anciãos Pabe e Gambrinus, o mais surpreendente. As entradas -o creme de aspargos com amêndoas, a salada de fígados de aves com uvas e tomilho- são uma refeição por si só. Nos peixes, a garoupa com fatias de chouriço é uma preferência pessoal. Assim como o lombo de novilho com molho de conhaque. A garrafeira é infinda. Aconselhar é matar.
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No alto, o bar do Gambrinus, a mesa mais tradicional de Lisboa |
Isto, claro, se formos para a esquerda. Se formos para a direita a partir do Rossio, subimos para o Bairro Alto, onde a "movida" lisboeta se encontra. Na rua da Atalaia, o Pap’Açorda é paragem obrigatória. Mas é preciso reservar -e reservar no duplo sentido do termo: para ter mesa e, mais, para provar a açorda de marisco que deu nome à casa. Se você não encontrar mesa -o mais provável- não há motivo para alarme: é só atravessar a rua, caminhar uns metros e entrar diretamente no Bota Alta, restaurante "típico" e "castiço", como dizem os lusos. As ameijoas a bolhão pato são a entrada ideal. E o bacalhau é o prato ideal: frito em cebola, com vinho do Porto e brandy.
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O restaurante Bica do Sapato, que mistura a "nouvelle cuisine" à gastronomia lusitana |
Se a disposição for carne, e não peixe, o bife da casa chega e sobra para "matar o bicho". E as sobremesas são uma especialidade conventual: a encharcada de ovos e o divino bolo real, por exemplo. O vinho da casa também serve para o gasto. Mas é sempre possível pedir um Monte Velho, a preço razoável.
A viagem está a terminar. Mas antes, duas paragens distintas. Se o jantar é íntimo, é impossível evitar A Confraria, em plena York House, bem perto do Museu Nacional de Arte Antiga: atenção aos lombinhos de lebre! Mas, se o jantar é popular, a escolha certa é o Painel de Alcântara -onde, para grande vergonha minha, me encontro neste momento a escrever estas linhas. O espaço é pequeno. A generosidade do sr. Cardoso, que comanda o barco há 20 anos, é enorme. Entramos, sentamos. Em breves segundos, temos presunto Pata Negra ou queijo da Serra da Estrela. Só para provar. E, depois, o melhor cozido à portuguesa de toda a cidade. Que, aliás, acabou de chegar.
Por isso, meus caros, e se me permitem, eu prometo regressar daqui a nada. Chama-se a isso viver para contar.
Sete delícias
Pabe
Rua Duque de Palmela, 27-A
Tel. (00/xx/351) 213-53-74-84
Abre todos os dias
Gambrinus
Rua das Portas de Santo Antão
Tel. (00/xx/351) 213-42-14-66
Abre todos os dias
Bica do Sapato
Av. Infante d. Henrique
Tel. (00/xx/351) 218-81-03-20
Fecha às segundas e terças no almoço
Pap’Açorda
Rua da Atalaia, 57-59
Tel. (00/xx/351) 213-46-48-11
Fecha aos domingos e às segundas
Bota Alta
Travessa da Queimada, 35-37
Tel. (00/xx/351) 213-42-79-59
Fecha aos domingos
A Confraria (York House)
Rua das Janelas Verdes, 32
Tel. (00/xx/351) 213-96-24-35
Abre todos os dias
Painel de Alcântara
Rua Arco de Alcântara, 13
Tel. (00/xx/351) 213-96-59-29
Fecha aos domingos
João Pereira Coutinho, colunista do jornal português "Expresso", nasceu no Porto e mora em Lisboa. É autor de "Vida Independente: 1998-2003", da Editora Vasco Rosa. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.