Revista da Folha

Lugar

29/11/2006

Crônica: Crianças no gelo

Um tesouro guardado em uma caixa cor de laranja e escondido numa ilha sem nome, cinco pares de ansiosos olhos infantis e uma alegria imensa. Essa era a viagem que faltava

por Amyr Klink

Marina Bandeira Klink
Fabian Silbert
Imagens da primeira viagem que Amyr fez à Antártida com a mulher, Marina, e as três filhas do casal: leões-marinhos e brincadeiras na neve
Descobri o mar num sobrado amarelo em Paraty. Vez por outra as marés de sizígia, mais altas, vinham bater na soleira de casa, em plena praça, invadindo a matriz e algumas ruas da cidade. Mesmo assim, pulando descalço da porta do sobrado para a água salgada, em ruas pensadas e feitas para serem lavadas a cada maré, não vi de verdade o mar que cerca a cidade.

Tão próximo e nada vi. Descobri o mar, o oceano e o dom de navegar no sótão, em livros. Dentre muitos, em um especial, de capa azul, o "Le Grand Hiver", de Sally Poncet. De barcos eu sabia muito pouco. No máximo remar uma canoinha arisca sem tomar um tombo. Vivia no mundo das vacas e dos impostos, fazendo queijos daquelas e quitando pilhas destes. Nos fins de semana, dando voltas na baía com a minha canoa a motor.

Em 1977, perambulou pela baía da Ilha Grande um veleiro vermelho, o Damien 2, de um casal que faria história. Durante meses, Sally e Jérôme Poncet coletaram e pescaram alimentos para colocar em "bocaux" de vidro, desses com borrachinhas cor de laranja na tampa, cozidos dentro da panela de pressão para formar vácuo. Um tradicional método francês de conservar alimentos no mar. Estocaram mais de 300. Seu plano era passar um inverno inteiro, a sós, na Antártida. Passaram.

Em abril de 79, na remota Georgia do Sul, nasceu, a bordo, sem nenhuma espécie de assistência, o menino Dion. Em 82, a Editions Arthaud publicou o livro de Sally. Comprei-o na livraria Francesa, no centro velho de São Paulo. Devorei-o no velho sótão de Paraty. Não era um relato de recordes inúteis ou heroísmo fútil, como tantos que li, mas uma obra verdadeira de poesia, sensibilidade e ousadia interior.

Encontrei-os no Rio dois anos depois. Alguns dos "bocaux" ainda existiam. A minha passagem das vacas para as velas, dos currais para os estaleiros, deveu-se a eles. Foi lenta, trabalhosa, difícil. Foi, sobretudo, de grandes alegrias. Em 86, visitei os sítios antárticos indicados com setas nos delicados mapas feitos à mão por Sally. Poucos anos depois vivi o meu próprio inverno em 13 meses particulares, deliciosamente isolado num desses lugares anotados nos desenhos que guardei.

Desde 1989, quando percorreu, a bordo do veleiro Paratii, 27 mil milhas da Antártida ao Ártico, Amyr Klink vem explorando o fascinante continente gelado
Ano sim, ano não, tenho tido o privilégio de encontrar um dos dois, quase sempre abaixo da convergência. Possuem a mais ocidental ilha das Falklands, Beaver Island, onde vivem do mesmo modo despojado, simples e duro que seres terrestres em geral não costumam aceitar. Fizeram entre rebanhos de carneiros e meses no mar mais dois filhos e, desde o primeiro, retornaram todos os anos ao mundo do gelo. Todos. Abriram a Antártida aos barcos pequenos, aos grandes mostraram os limites de onde ir. Inauguraram um tipo novo de turismo que hoje só perde em valor por pessoa às viagens no espaço. Em todos os sentidos foram pioneiros e nunca o pretenderam. Nunca proclamaram suas conquistas que seguem únicas. Apenas tiveram o desprendimento de ir, sem alarde. E voltar.

Marina Bandeira Klink
O barco de Amyr Klink, o Paratii 2, entre os icebergs da Antártida, em sua viagem mais recente, em janeiro deste ano
O barco de Amyr Klink, o Paratii 2, entre os icebergs da Antártida, em sua viagem mais recente, em janeiro deste ano
Se não tivesse lido os seus escritos, compreendido o seu modo bretão de navegar e o profundo respeito que têm pelas regiões polares, teria passado anos nas águas acomodadas de Paraty, na preguiça de suas praias, teria criado cracas nos pés de andar à beira-mar e não teria atravessado um só grau de latitude.

Quando completei na Antártida a volta ao mundo do novo veleiro, o primeiro barco que encostou a contrabordo foi o do Jérôme. Trazia entre seus tripulantes duas criaturinhas com menos de quatro anos. Falamos e bebemos sobre tripulantes. Sobre o fato de que, neste ambiente forte e surpreendente, ser profissional é muito pouco. Cumprir obrigações é quase nada. Navegar ao sul da convergência exige tanto mais. Exige dedicação e generosidade além da razão ou da mera obrigação. Exige um desprendimento completo, material e físico, que crianças e amadores têm, por natureza, mais do que marinheiros profissionais.

No ano passado, na quarta viagem para o sul do ainda novato Paratii 2, decidi entrar no estreito berço de Leith Harbour, onde, debaixo de rajadas de cem nós, nasceu Dion. Para nossa absoluta surpresa, no mesmo dia, fomos abordados por um jovem no comando do Pelagic. Timidamente, ele pedia para conhecer o barco brasileiro. Seu nome, Dion Poncet. No Brasil, mal desembarquei, a Marina me abordou: "A próxima viagem à Antártida será com as nossas meninas".

Nas mais de 15 viagens ao gelo que fiz em barcos brasileiros fui aos poucos colecionando histórias desses raros tripulantes dos quais me falava o amigo francês. Mas faltava a presença das crianças. Faltava com elas desenterrar o tesouro que anos atrás escondi numa ilha sem nome, ao sul de Lemaire. Faltava fazer a maior viagem das nossas vidas, com as nossas meninas, os amigos de verdade e as crianças deles. Levar pás, picaretas, cordas e vinhos só pela inútil desculpa de buscar um tesouro congelado na Antártida. Pela grandiosa desculpa de se deliciar -pelo resto da vida- com dez olhinhos ansiosos tentando descobrir pérolas numa caixa cor de laranja de plástico reforçado. Faltava. Já não falta mais.

O navegador Amyr Klink é autor dos livros "Cem Dias Entre Céu e Mar", "Paratii", Entre Dois Pólos" , "As Janelas do Paratii" e "Mar Sem Fim" (ed. Companhia das Letras).

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