Revista da Folha

Lugar

29/11/2006

Impressões: Singular

Uma cidade quente, poeirenta e ruidosa, mas que enche de orgulho seus habitantes. Quais serão os mistérios de Monterrey?

por David Toscana

Peter Hince/Getty Images
Região central de Monterrey
As crônicas dos primeiros espanhóis que chegaram ao território onde hoje fica Monterrey não falam de um lugar atraente.

"É um lugar de miséria, dor, sofrimento, cansaço, pobreza e aflição. Um lugar de rochas secas, de fracasso, um lugar de lamentação. É um lugar de morte, de sede, um lugar de inanição. É um lugar de muita fome, de muita morte."

O que contrasta com a admiração dos cronistas que conheceram o sul e o centro do México, maravilhados com cidades, templos e culturas. E, como se não bastasse a condição miserável do norte, fez-se um juízo arbitrário de seus habitantes, consagrado até pela boca de um santo frade:

"É gente cruel, feroz, naturalmente vingativa e muito rancorosa. Tem escassa capacidade e nenhuma inteligência e está sempre disposta a cometer qualquer mal ou traição. É gente mentirosa, fátua e inimiga de toda a criação. Vive na o ciosidade, raiz de todos os males em que está sepultada."

Não carregamos, portanto, nomes de antepassados ilustres como astecas, mexicas, maias ou toltecas. Não. Nós, os regiomontanos, somos "chichimecas", palavra que significa "cachorros famintos".

É por isso que no norte não houve colonização, mas extermínio; não houve evangelização, mas tortura; por isso não temos tradição, história, orgulho de séculos.

Por isso apagamos praticamente toda a memória e acreditamos que nossa vida começou com a instalação das primeiras indústrias, por volta de 1900: tecelagens, cervejarias e, principalmente, uma siderúrgica. É disso que nos orgulhamos: da fábrica, da máquina, do suor mal remunerado dentro de quatro paredes.

E assim, enquanto em boa parte do país diz a lenda que os mexicanos vêm do milho, em Monterrey, se tivéssemos lendas, elas diriam que saímos de um forno de fundição; por isso nossos heróis não são guerreiros, artistas ou aventureiros, e sim empresários.

E esses empresários conseguiram moldar a cultura da cidade: um lugar de á-bê-cê, mas não de belas-letras; um lugar de avenidas, mas não de passeios; um lugar de construções, mas não de arquitetura; um lugar em que até sua maior beleza, as montanhas, devem sucumbir para fornecer cimento.

Se bem que, para ser justo, não posso dizer que essa destruição seja uma exclusividade de Monterrey: qualquer local era mais bonito antes de que nele houvesse uma cidade.

Sem nenhuma prova, dizemos ter a maior praça do mundo (apelidada de "macropraça") e o mastro de bandeira mais alto do mundo. Maior e mais alto, porque nada na cidade merece ser chamado "mais bonito". Seduzimos o "Guinness" porque não podemos seduzir a estética.

CPTM/Divulgação
Monterrey optou pela modernidade, não pela beleza; pelo futuro, não pela história; pela educação, não pela cultura. E isso faz com que, felizmente, não tenhamos turistas. Bem-aventuradas as cidades sem turistas.

Quem inclui minha cidade em seu roteiro de férias? Ninguém. Quem sonha em visitar Monterrey e conhecer sua poeira, seu calor e seu barulho? Ninguém. Existe alguma frase estilo Nápoles que diga "ver Monterrey e depois morrer"? Não.

Quando algum parente vem nos visitar e pede que o levemos para conhecer a cidade, há sempre um clima de desconforto. Aonde vamos? E começam a pipocar as idéias de sempre:

Podemos ir ao rio que não tem água.

Podemos atravessar a ponte sobre o rio sem água.

Podemos ir até a macropraça para nos envergonhar daquelas estátuas medonhas, principalmente a da fonte de Netuno, que parece tirada do jardim de um novo-rico.

Podemos ir a um shopping center com ar condicionado, porque esse calor está nos matando.

Podemos ir comer cabrito.

Sempre ganha essa última alternativa, e vamos a um local chamado El Rey Del Cabrito. Aí se come mal, num ambiente barulhento, em meio a uma decoração horrorosa e excessiva, repleta de leões e outros bichos empalhados e montes de fotografias do dono; mas o lugar nos dá a oportunidade de dizer que Monterrey foi fundada por judeus, que seriam eventualmente carbonizados pela Inquisição, e que eles nos deixaram o hábito de comer cabrito; explicamos também que o cabrito é um filhote de bode morto antes de provar capim, portanto alimentado exclusivamente de leite materno. O que não conseguimos explicar é por que essa carne é tão gordurosa, como se o bicho tivesse sido cevado só com banha de porco. E nosso visitante, vendo tanta gordura e pensando no sacrifício dos santos inocentes, acaba dizendo que prefere ficar só na saladinha.

O parente, por fim, encurta sua visita à cidade, e nós respiramos aliviados ao ver seu avião ou seu ônibus partir.

Gostamos que a cidade seja feia, poeirenta e quente, pois assim ela é só nossa. Não conseguimos explicar o que tanto nos seduz nela, mas o fato é que pouca gente é tão arraigada à própria cidade como os regiomontanos. Nós, os "régios", nascemos, vivemos e morremos em Monterrey, embora passemos a vida reclamando dos seus defeitos.

Mas isso é um privilégio nosso. Se um visitante fala mal da cidade, logo nos ofendemos e tiramos argumentos do nada para enchê-la de beleza, de ordem e de cultura. Falamos de escritores locais que não lemos, mostramos a estátua de um herói desconhecido e narramos exemplos de sua coragem, admiramos um edifício que nada tem de especial, afirmamos ter feito com o acordeão coisas que nem alemães nem italianos jamais sonharam, e que também nossa cerveja é melhor que a germânica, evocamos aquele passado em que o rio ainda tinha um fio de água e achamos musical o sino vulgar da catedral. Porque sim, senhor, esta é uma cidade belíssima, encantadora, digna de todo nosso amor.

O escritor mexicano David Toscana é autor de "O Último Leitor" e "Santa Maria do Circo", lançados pela editora Casa da Palavra.

Tradução de Sérgio Molina.

Hotéis

Presidente Intercontinental Monterrey
Jose Vasconcelos, 300, Oriente
Tel. (00/xx/52/81) 8368-6000
www.intercontinental.com
Um cinco-estrelas com lençóis de algodão egípicio, "menu de travesseiros", spa e restaurantes de luxo. Diárias a partir de US$ 160.

Quinta Real Monterrey
Diego Rivera, 500, Fracc. Valle Oriente
Tel. (00/xx/52/81) 8368-1000
www.quintareal.com
Um elegante edifício colonial localizado em uma região tranqüila, cercada de montanhas, É um dos mais charmosos da cidade. As suítes, amplas, têm produtos Hermès no banheiro, entre outros mimos. Diárias a partir de US$ 220.

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