Revista da Folha

Lugar

29/11/2006

Ensaio: Londres

Recordações de uma velha viagem

Ian Wailde/Getty Images
[1]
Claro que a chuva não nos sai da cabeça. Como poderia? Nunca se esquece o presente; o que neste momento acontece não pode ser esquecido porque existimos, e existir é não esquecer.
Portanto: como esquecer em Londres a chuva, se chove sempre, constantemente, permanentemente, insistentemente?

[2]
O guarda-chuva é o grande objeto.
O Deus que está em todo o lado, em Londres chama-se: Guarda-Chuva.

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[3]
A chuva é um pintor que melhora as coisas.
Dá-lhes a cor exata. A cor que as coisas escondiam no seu interior.
É como se Deus tivesse um ateliê e de quando em quando decidisse:
- Vamos lá exercitar esta mão.
E aí vai: CHUVA.
Vantagem de Londres: está mesmo por baixo do ateliê de Deus.
Desvantagem de Londres: gripe.

[4]
Tudo que é demais é desonesto: a beleza em excesso e o feio feio, o horrível. E todas as cidades são desonestas. Porque de um lado o lindo palácio, o ouro, o jardim perfeito, a geometria limpa aplicada às flores. E do outro uma torta geometria e feia aplicada aos outros homens: os pobres. Porque os pobres não têm jardineiros e ninguém lhes oferece água para o corpo crescer forte, ninguém os endireita a não ser para os retirar da frente dessa loja de artigos de estética, ou então para os levar para a esquadra: além de serem pobres não têm onde dormir, vestem-se mal e por vezes protestam.
A cidade é desonesta. O poeta Rimbaud diria: cidade úlcera. Mas também há saúde, palácios. E também há gente que salva.

[5]
A igreja é a St James Church.
À entrada, o aviso:
"You are in a Church and are very welcome to be here. Smoking and the consumption of alcohol are forbidden."
Portanto é assim: és bem-vindo se não vieres a beber nem a fumar.

[5.1]
A igreja de St. James foi construída por sir Cristopher Wren em 1684 e durante a Segunda Guerra Mundial foi muito danificada pelos bombardeamentos alemães.
Claro que Deus não se danifica com bombas.

[5.2]
Por que não acrescentar na entrada: "Bombas são proibidas"?
É uma outra forma de dizer: o ódio é proibido.

[6]
Viajar viaja-se, mas é tudo igual.
Londres como Paris, Roma e Atlântida, Londres tem Cristo e o Diabo;
os pobres comem maçãs velhas e ficam contentes;
os ricos protestam com o tom agridoce do molho. Viajar para quê?
"Levai-me de novo para casa! Para que há de um jardineiro viajar?
Honra lhe vem e ventura, quando trata do seu jardinzinho."
(Goethe, Epigramas de Veneza)
A verdade é que o jardinzinho não tem flores, mas duas aurículas e dois ventrículos, circunvalações grandes: esse cérebro que é uma massa enorme dobrada entre si, fermentada, apetitosa e com apetites. É este o jardinzinho de que é preciso tratar. Como aquela história do mapa do tesouro que faz aquele homem ir para o outro lado do mundo e quando lá chegado verifica que ali não há tesouro algum; e é depois, regressado a casa, que vai tropeçar numa pequena saliência no seu jardim e lá está: desenterra-o: uma arca, é o tesouro.
Para que viajar?
A imaginação como a mais barata e exata das agências de viagens. E não desilude.

[7]
Mas insistir.
Viver para quê?
Para perceber a morte.
Viajar para quê?
Para entender melhor o nosso jardinzinho.

[8]
Se é verdade o que escreve Marcel Proust: "Só trememos por nós mesmos e por aqueles a quem amamos".
Então pouco se pode tremer em Londres, a não ser que a causa seja o frio ou o grande vento.
Porque não se ama uma máquina; ninguém se apaixona por uma organização. Agrada-nos que a roda da máquina rode. Nada mais.
Quando não se ama, observa-se, estamos de fora, afastamo-nos, os pés parecem pousados no solo, mas não: levitam; não sujamos os sapatos, a lama não nos pertence.
Porque quem viaja é sempre escritor.
Tal como o mesmo Proust descrevia ("Em busca do tempo perdido") aquele romancista mundano "que acabava de instalar ao canto do olho um monóculo, o seu único órgão de investigação psicológica e de impiedosa análise" e que à pergunta de "o que é que estás a fazer aqui?", respondeu, carregando fortemente no r:
- Observo.
Nós também, viajantes, visitantes, pessoas que passam por um sítio, nós também somos a primeira parte do que é um escritor: observamos; estamos de fora, desapaixonados perante mecanismos: olhamos.
Por que chamo máquina a uma cidade tão bonita; tão histórica, tão importante?
Respondo com uns versos de John Ashbery:
"Não há tempo para o azar, não sobra um momento para o aleatório, porque fechamos o dia com negócios, disto se trata no fundo".
Ou se fecha o dia com negócios e mais nada se deixa entrar, ou se sonha com isso. Ou então é-se tão pobre que o estômago ocupa o dia inteiro, e nem negócios nem nada. Mesmo assim, em Londres, como em todas as cidades, são os pobres que têm mais tempo para o azar.

Katinka Kober/Stock.Xchng
[9]
O Big Ben é alto. Foi certamente construído por uma raça com "intensa saudade do sol", como escrevia Thomas Mann acerca de mais uma torre de Babel.
Porque há muitas torres: cada um de nós tenta chegar lá acima. O que é afinal o espírito santo cristão: parte de Deus alojada no nosso corpo, o que é o espírito santo senão a escada particular de cada um; a particular torre de Babel que Deus esqueceu em nós para que pudéssemos nos tornar arrogantes ou bons em quantidade suficiente?
Porque todos temos saudades do sol.

[10]
A aborrecida frase de Warhol: "todos terão 15 minutos de fama". Onde colocar Deus, o mais antigo famoso, no meio desta velocidade de estrelato?

[11]
Speaker’s Corner: Hyde Park, centro de Londres.
No Speaker’s Corner a liberdade para falar manifesta-se quase em exclusivo num sentido: falar de Deus.
É como se nos outros locais e nos outros dias fosse proibido, ou pelo menos não aconselhável, falar de religião.
Ter-se-ão alterado o mundo e o coração das pessoas? É que há alguns séculos o tema mais comum das conversas do cotidiano era Deus. Agora não. Deus já não é o tema dos mercados, não é Dele que falam os vendedores ou os compradores; Deus, agora, quando muito, é uma referência afastada, Alguém que se cita em nota de rodapé, numa exclamação zangada e não pensada.
É ridículo falar de Deus, não é apropriado. O divino passou a ser considerado tema de loucos e desadaptados, tema de fanáticos.
Pois bem: Hyde Park ao domingo, Speakers’ Corner. Encontro de loucos ou de desadaptados ou de fanáticos; ou então de homens e mulheres de fé, grande fé, luminosa fé.
Um homem de barbas, magro, com a bandeira de Israel. Os olhos como se virados para dentro: olha-nos mas não olha, olhos estranhos, obsessivos, parados mas decididos.
- Vou apresentar-vos o meu melhor amigo - diz.
- É o amigo dos pecadores, sim, o amigo dos pecadores.
Fala de Cristo.
Um homem provoca-o, insulta a bandeira de Israel. Ele não responde. Levanta a Bíblia no ar e começa a cantar. Vai repetindo para quem o insulta:
- God bless you.
Um velhote com óculos muito graduados. É o mais convincente. É o que de entre todos os que falam parece mais simples, mais feliz, e, ao mesmo tempo, mais convicto. Uma convicção calma, ao contrário de outras.
- Se eu vos perguntar se conhecem Brad Pitt e se querem estar com ele; e se eu vos perguntar se conhecem Deus e se querem estar com Ele, a maior parte de vocês responderia: Brad Pitt!
- Ir à igreja não vos faz cristãos. Ir a uma bomba de gasolina faz de vocês gasolineiros? Não. Pois bem, ir a uma igreja não faz de vocês cristãos.
E dizia virado para uma rapariga que deveria ter 20 anos, não mais.
- Agora que são novos não se lembram de Deus, não o chamam. Mas quando forem velhos, e estiverem doentes, e quando virem a mulher que amam a morrer, ou o vosso irmão, ou o vosso pai a morrer, aí sim, vão lembrar-se de Deus.
Era um velhote com humor. Uma das primeiras frases que disse, depois de condenar a homossexualidade, foi:
- God created Adam and Eve not Adam and Steve.
Ao meio da manhã chegaram então uns religiosos-desvairados caubóis, com fatos vermelho-vivo, cintos e chapéus de western, calçando botas de pele de cobra onde estava escrito: Jesus Cristo. Gritam e gesticulam muito, chamam as pessoas como numa vulgar feira os vendedores chamam os compradores e anunciam grandes promoções e saldos, só que ali as promoções são do produto Cristo. E é mesmo assim, o que eles dizem é:
- Venham ouvir-nos. Não ouçam os outros. Nós temos o melhor Cristo.
O caubói vestido de vermelho, com pintas brancas, é o chefe da quadrilha. Depois de uma oração em que os vários caubóis pegam na Bíblia, baixam os olhos e tiram o chapéu (é o único momento calmo), o caubói presidente põe o chapéu de novo, e grita:
- Good Lord. Yes, man! - E começa, por fim, a rir-se como um louco, a bater com a mão direita na perna e a dançar.
Uma das grandes personagens deste domingo religioso no Speakers’ Corner chamava-se Peter. Foi o nome mais falado, o nome do Diabo.
Como acontece todos os domingos, Peter, o anti-religioso, o cético por excelência, voltava ali, ao Hyde Park, ao Speaker’s Corner, para insultar os oradores e para blasfemar.
Um dos oradores -caubói de Cristo- a dizer:

J P Kolhoj/Morguefile
- Cristo é o meu salvador.
E Peter, cínico, com uma voz rude, que parecia vinda das cavernas:
- O meu salvador é o Loyd’s Bank.
Os diálogos eram assim, sempre nesse tom.
E os caubóis respondiam a Peter à letra, ao contrário de outros oradores religiosos, como o da bandeira de Israel - este era indiferente às provocações deste homem baixinho, careca, com ar 100% louco e 100% sádico: Peter.
Peter ouvia os oradores que diziam:
- Convertam-se, pensem em Deus, puxem Deus para dentro do vosso corpo.
E Peter fazia então de louco mau. Sentava-se numa cadeira de praia, das que se alugavam no parque, e colocava-se mesmo à frente dos oradores, a dois metros, não mais.
Depois, ali sentado, insultava-os:
- Bastardos, filhos da puta, aldrabões!
Quando os caubóis começaram a sua palestra, Peter, já depois de ter insultado e boicotado as palestras dos outros, aproximou-se. De imediato, com um ar bem-disposto e cínico ao mesmo tempo, o chefe dos caubóis disse:
- Bom dia Peter.
Poucos minutos depois, já com Peter sentado na sua cadeirinha de praia a dois metros do xerife-pregador, este gritava apontando diretamente para ele:
- Peter, tu és um pervertido, és um pecador, mas Cristo, mesmo assim, vai olhar por ti e vai salvar-te.
Tudo isto era dito num tom irônico, de parte a parte. Assistíamos a uma peça de teatro espontânea.
Os xerifes pregadores eram brutais. Abriram um período para perguntas, mas disseram:

Gerjon Zomer/Stock.Xchng
- Não respondemos a perguntas estúpidas!
Um dos espectadores fez uma pergunta, e o xerife, depois de uma pequena pausa, disse:
- Next question!
A certa altura um muçulmano põe uma questão. O xerife, com uma intolerância sem pudor, determina que Moisés não é profeta, só Cristo está vivo, diz ele, todos os outros que se dizem profetas são mentirosos. Estala a discussão entre o xerife e o muçulmano. Peter, com o cinismo habitual, propõe:
- Por que vocês dois não se casam?
A discussão termina.
Ao lado desta quase paródia entre os xerifes e o índio Peter, continuam alguns pregadores que parecem sinceros, outros ingênuos, e outros que declaradamente são o que podemos chamar de "boas almas".
O velhote, por exemplo, continua a andar de um lado para o outro a repetir:
- Se tu conheces Jesus a morte não será uma inimiga.
E eu saio, finalmente, do Hyde Park e do Speakers’ Corner, no final dos discursos, com a imagem de um grupo de cinco pessoas a discutir assuntos religiosos. Entre eles o velhote pregador e um indiano, personagem interessantíssima, vestido como um economista, com uma pastinha preta na mão direita, todo emproado e sério. Quando saí do parque estava esse senhor indiano a argumentar para o velhote pregador:
- Em primeiro lugar eu não vou morrer.
Speaker’s Corner, Hyde Park, domingo. O melhor de Londres.

O escritor português Gonçalo M. Tavares é autor de "Jerusalém", que recebeu os prêmios José Saramago 2005 e Ler/Millenium BCP. Também escreveu "O Senhor Brecht" e "O Homem ou É Tonto ou É Mulher" (Editora Casa da Palavra).

Hotéis

The Ritz
150 Piccadilly W1
Tel. (00/xx/44/20) 7493-8181
www.theritzlondon.com
A decoração é digna do palácio de Buckingham, e o uso de terno e gravata no restaurante é obrigatório. Diárias a partir de US$ 900.

Sanderson Hotel
50 Berners Street
Tel. (00/xx/44/29) 7300-1400
www.sandersonlondon.com
O design de Philippe Starck confere atmosfera minimalista com toques barrocos. A partir de US$ 400.

Easy Hotel
14 Lexham Gardens
www.easyhotel.com
Quartos pequenos, mas limpos e confortáveis, ideais para estadas curtas. A partir de US$ 70 (uma pechincha, para uma das cidades mais caras do mundo).

Restaurantes

Nobu
Metropolitan Hotel, 19 Old Park Lane
Tel. (00/xx/44/20) 7447-4747
O primeiro restaurante japonês a receber uma estrela no "Michelin". A vista do Hyde Park é uma atração à parte.

Fortnum&Mason
181 Piccadilly W1A
Tel. (00/xx/44/20) 7437-3278
www.fortnumandmason.com
A mais tradicional casa de chá londrina cobra US$ 40 por uma rodada com sanduíche de salmão, boa variedade de bolos e perfumados chás.

Memsaab
7 The Boulevard, Imperial Wharf SW6 2UB
Sofisticado restaurante indiano. A variedade de pratos típicos é enorme mas, como em qualquer casa indiana, cuidado com a pimenta.

Não deixe de ir

Saatchi Gallery
County Hall
www.saatchi-gallery.co.uk
Londres tem alguns dos melhores museus do mundo (British Museum, National Gallery, Natural History Museum). Mas, se você quiser ver uma impressionante coleção de arte inglesa contemporânea, este é o lugar.

Camden Town
Um pouco da salada cultural e étnica da cidade concentrada em um imenso e aconchegante mercado de rua.

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