Revista da Folha

+dinheiro

16/04/2007

Baú do Dávila: Moeda em tempo de guerra

por PAULA PAVON

Comecei na "profissão" aos sete anos, escrevendo textos noticiosos na Olivetti portátil da família em folhas de papel coloridas, pautadas e perfuradas, que vendia aos parentes mais velhos nos almoços de domingo em troca de cédulas verdes de 1. Desde então, ambos os assuntos —jornalismo e moedas— me fascinam. Já tive coleção de cédulas —inclusive uma rara, com a efígie de D. Pedro 2º, creio—, que perdi no provador de roupas de uma loja da rua São Bento, em São Paulo.

Arquivo Pessoal
O endereço do Centro Velho paulistano era o paraíso da numismática e, depois de uma visita para avaliar uma moeda de 1 shekel de Israel, que tinha um furo no meio e havia sido presente de aniversário dado por um tio, cedi aos apelos do homem-sanduíche que gritava "calça Lee, calça Levis, Loto pronta para amanhã!", subi as escadas, experimentei o jeans, desisti e esqueci no percurso a caixa com o "tesouro"...

Anos mais tarde a profissão me levaria a diversos lugares do planeta, alguns exóticos, outros perigosos, a maioria nem uma coisa nem outra. A primeira coisa que faria ao pisar pés numa cidade nova seria trocar alguns dólares pela coleção completa da moeda local e em circulação naquele momento. Olhando para trás, percebo que criei mentalmente um conjunto de regras monetárias:
  • quanto menos mudança estética sofrem as notas de um país, mais o governo do mesmo será estável (veja dólar);
  • quanto maiores e mais diversas em tamanho as notas, mais distante no tempo o auge do país (veja as libras esterlinas);
  • quanto mais recente a morte do homenageado na nota, maior a probabilidade de você se encontrar numa nação de governo instável ou militar ou religioso —ou os três (veja a maior parte das notas dos países do Oriente Médio, como os aiatolás khomeinis no rial iraniano, ou as cédulas sul-americanas dos anos 70/80, Brasil incluído);
  • se o sujeito que aparece na cédula está vivo e no poder, há 99% de chance de você estar numa ditadura.
Era esse o caso do Iraque pré-invasão anglo-americana, a que cheguei no dia 19 de março de 2003. Saddam Hussein enfeitava não só as praças, os outdoors, as paredes das casas e todos os programas da televisão como todas as notas do dinar iraquiano– escrevo e vejo à minha frente o perfil inconfundível do ex-ditador, vasta bigodeira, ao lado do astrolábio árabe (nota de 10 mil, rara então) ou em oposição ao Domo da Rocha (nota de 250, a mais comum).

Juca Varella/Folha Imagem
Com a irreverência e o cinismo que só os jornalistas ocidentais sabem ter em visita à casa alheia, chamávamos as cédulas de "saddam", como em "me empresta 50 mil saddams até amanhã, quando eu vou trocar 100 dólares com o dono da loja de narguilés". Um "saddam" não valia nada; 250 era a medida mínima; quatro notas compravam uma bala, o confeito, não o projétil.

A inflação era "galopante", mas a recusa de Saddam Hussein em cortar os zeros da moeda seguia incontestada por sua equipe econômica, num país em que muitos perdiam a vida por muito pouco. Assim, sobrava aos bagdalis ir às compras com sacolas de dinheiro. Nos bancos, víamos filas de pessoas com malas de viagem cheias de cédulas velhas, para pagar contas do dia-a-dia. Nos consoles dos carros, taxistas largavam maços de notas amarrados à vista de todos, com as janelas abertas.

Nesse contexto, quem tinha dólar era rei —ou ditador, já que se estimava em US$ 2 bilhões a fortuna pessoal de Sadam Hussein, dinheiro que nunca foi totalmente recuperado pelos norte-americanos. Nos dias que se sucederam ao início dos bombardeios da coalizão, carros-fortes foram despachados pelo ditador para o Banco Central Iraquiano no meio da noite, de onde saíram com o que se estimava ser a reserva em dólar do país, outro dinheiro nunca mais recuperado totalmente.

Nas ruas, com os dias indo guerra adentro, os preços subiam —em dólar. Ninguém mais queria saber dos "saddams", os de papel e o de carne-e-osso. A viagem de táxi entre Amã, na Jordânia, e Bagdá, 900 quilômetros que valiam cerca de US$ 150 em tempos de paz, teve seu valor decuplicado e logo multiplicado por 20. Sempre "cash", em dinheiro vivo.

No vácuo de poder entre a queda do regime, no começo de abril, e o estabelecimento das tropas, em... Bem, há quem diga que o vácuo não acabou até hoje. Reformulemos: no lapso entre a derrubada de Saddam e o estabelecimento dos marines no que viria a ser conhecida como "zona verde", na capital, as notas igualmente verdes da moeda norte-americana compravam tudo, de vidas a eletricidade.

No último caso, devo ter pago o mais caro watt/hora da história. Bagdá estava às escuras. Os precavidos da Guerra Irã-Iraque, que tomou a maior parte dos anos 80, enchiam os bolsos com seus geradores portáteis, velhos mas em funcionamento, que davam à cidade um perfil de boca banguela, como na música de Caetano Veloso/referência de Lévi-Strauss sobre a Baía de Guanabara.

Numa sexta-feira, a poucas horas de perder a edição do dia seguinte da Folha, vi uma luz que lembrava a de velas ao vento. Vinha de um barbeiro localizado no subsolo do hotel Palestine. Alguns homens conversavam alto, não o suficiente para encobrir o inconfundível barulho de gerador a diesel que pipocava aqui e ali pela cidade. Entrei e pedi para conectar meu laptop; a bateria chegava ao fim.

Pode, sim, disse o dono, me apontando uma tomada que saía da base de uma cadeira de barbeiro. Usar por quanto tempo eu quisesse? Sim, à vontade, por quantas horas fossem necessárias. Desde que, é claro, eu passasse uma nota de US$ 100 a cada 60 minutos que ficasse sentado ali.

Nunca escrevi tão rápido

Sérgio Dávila é correspondente da Folha em Washington. Cobriu a guerra do Iraque em 2003

FolhaShop

Digite produto
ou marca