Revista da Folha

Morar

30/03/2007

Capa: Com alma e dialeto

por JAIME SPITZCOVSKY

Camila Falcão
Símbolos mooquenses no tradicional Giba's Bar
Símbolos mooquenses no tradicional Giba's Bar
Existem bairros com ou sem alma. Alguns, raros, cultivam até o próprio dialeto. A Mooca guarda essas características e, por isso, não me assustei a primeira vez em que vi um rapaz desfilando pela avenida Paes de Barros, artéria central da região, com uma camiseta com dizeres nada menos que anticonstitucionais. A moda local chega a arriscar tons de separatismo, com estampas "República da Mooca" ou "100% Mooca".

A Mooca oferece uma identidade profundamente bairrista, talvez sem paralelo na megalópole paulistana, herança de uma mistura de imigrantes italianos, espanhóis, entre outras origens, que se refugiaram numa região próxima ao centro da capital, mesclando tranqüilas zonas residenciais com ruidosos bolsões industriais.

Vivi menos tempo no bairro do que meus pais, que repetidamente gostam de brandir o "orgulho de ser mooquense". Orgulho que muitas vezes pode virar um álibi oportuno. Se ralho com minha mãe por ela falar num tom alguns decibéis acima do tolerável, ela se defende: "Mas o que você quer, belo, eu sou da Mooca!"

Durante anos minha família teve uma livraria no bairro. Também do alto da simpática soberba local, meu pai adora repetir à exaustão que, entre os livros mais vendidos, e com o luxo de contar com edição esgotada, está a obra "Orra Meu!", na qual o poeta Guido Carlos Piva se metamorfoseia no personagem Pimpinello Rizoni, arauto do dialeto "mocanhês". "O livro vendeu tanto quanto Paulo Coelho", orgulha-se meu pai.

Quem mora na Mooca costuma achar que não há outro bairro comparável em São Paulo. Afinal, onde é possível saborear um jantar numa pizzaria histórica como a São Pedro ou matar uma tarde modorrenta assistindo a um treino do Juventus grená no acanhadíssimo, mas insubstituível, estádio da rua Javari?

Para os nostálgicos, a Mooca consegue a proeza de resgatar alguns traços da São Paulo antiga, como a cordialidade entre vizinhos. Nunca entrou na cabeça dos meus pais que eu, ao me mudar para um apartamento nos Jardins, tenha passado meses sem conhecer os outros moradores do meu andar. "Mas ninguém nunca te trouxe um pedaço de bolo?", questionava, incrédula, minha mãe.

Festivais gastronômicos, gente cordial falando alto, amor pelo Juventus e um dialeto batizado de "mocanhês" são algumas características desse bairro saudosista, que guarda recordações como a presença do Hipódromo ou de gigantescas fábricas e cotonifícios, muitos hoje substituídos por galpões para festas ou novos empreendimentos imobiliários. O idioma local gerou até glossários, como o do livro "Orra Meu", que traz palavras como "fuquifu", para definir o ato sexual, ou "conchetada", correspondente a uma fofoca maldosa.

Certa feita, uma campanha popular no bairro levou à alteração das placas de trânsito que grafavam Mooca com acento agudo. O desatino gramatical, ainda que no trânsito, revoltou vários moradores. Como ousavam mexer com a alma daquela república, ainda que apenas na grafia do seu nome?

JAIME SPITZCOVSKY, 41, judeu, vizinho de italianos, é diretor do site PrimaPagina; seus pais se intitulam mooquenses autênticos.

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