Revista da Folha

Morar

01/06/2007

Habitat: Bela e egoísta

por Rogério Marcondes

Você se lembra do brinquedo forte apache? Para acompanhar esta história, dispense os homenzinhos e pense apenas nas quatro peças que, unidas, formam as paredes externas do forte, uma espécie de cercadinho. Essa é a estrutura básica de uma casa, ainda em construção, que visitei com um amigo, e cuja concepção me levou a escrever este texto. Nessa casa, o cercadinho tem uns cinco metros de altura.

Visualize: a construção fica no meio de um terreno plano. Quartos, salas e banheiros estão encostados em duas laterais internas formando um "L" e deixando um pátio interno descoberto, parecido com os encontrados em conventos antigos.

Entre as paredes da casa e os muros de divisa será plantada uma estreita floresta. O pátio interno será um espaço aconchegante, com piscina e deque dando vista para a vegetação, através de aberturas nas paredes que cercam o pátio.

Com alguns goles de dry martini, o morador terá a perfeita sensação de estar numa pequena praça medieval italiana, cujos pórticos dão acesso a uma inusitada mata tropical. Não haverá qualquer interferência externa, apenas o céu azul. A vegetação nos limites do terreno servirá também para esconder os tradicionais e caóticos muros de divisa, cheios de irregularidades e com aqueles inevitáveis arames de segurança.

Vizinhos, não quero muita intimidade, mas, vejam bem, estou sendo educado, plantei árvores

Da rua, ao olhar a fachada, o que se vê é uma grande parede (será branca?), com duas pequenas janelas de serviço no andar superior. No térreo, ao longo da calçada, um muro cego. A única chance de visualizar o interior é através do portão da garagem, no qual longas frestas horizontais permitem constatar que ali cabem quatro carros.

No final da visita, meu amigo comenta: "Será uma casa bela, mas... egoísta". Na mosca! Uma casa isolada da quadra, isolada da rua, guardando para si toda a sua vida. Quem passar pela calçada jamais saberá se a família está reunida para o almoço de domingo, jamais verá a janela acesa do filho que estuda até a madrugada; os vizinhos ouvirão o "tchibum" de alguém mergulhando numa piscina invisível. Um som vindo de uma caixa misteriosa, branca, com cinco metros de altura.

Essas casas egoístas estão cada vez mais presentes na paisagem da cidade. Triste é quando se encontram, vizinhas uma à outra; nesses casos, passear pela calçada se torna entediante. Pior ainda quando se agrupam, formando condomínios horizontais. Longos trechos de muros brancos, temperados com porteiros eletrônicos, holofotes e sensores de presença.

Os elementos que compõem as casas egoístas têm razões diversas. O muro reflete a insegurança urbana; a cozinha, voltada para a rua, é questão de praticidade, a posição agiliza os serviços de carga e descarga. A sala, voltada para os fundos, ajuda a preservar a intimidade.

Enfim, atendem a uma série de demandas que poderiam ter sido resolvidas de outras maneiras, mas que, devido à forma escolhida, acabaram se configurando como uma opção estética (e filosófica) pelo total isolamento do entorno.

Sua arquitetura discreta parece dizer: "Vizinhos, não quero muita intimidade, mas, vejam bem, estou sendo educado, plantei árvores, na minha calçada haverá sempre um canteiro bem-cuidado, o meu muro terá uma agradável textura. Também não vou importuná-los ao sair e entrar em casa, serei breve; de preferência, usarei apenas o carro".

Anos atrás, o escritor de ficção científica Isaac Asimov fez um comentário divertido: "Se um extraterrestre, chegando à Terra, parasse a nave espacial sobre uma cidade moderna, é possível que sua primeira impressão fosse a de que os habitantes do lugar são os carros e os homens, seus alimentos".

Poderíamos completar:"E as casas egoístas, suas moradas".

ROGÉRIO MARCONDES é arquiteto.

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