Revista da Folha

Morar

01/06/2007

Habitante: Um carioca em São Paulo

Kite, de kitsch? Não, kite de kitchenette, essa forma brasileiríssima de designar apartamentos em que a sala e o quarto são a mesma pessoa

por Mauricio Stycer

Cássio Vasconcellos/Samba Photo
Para espanto de meus amigos, do lado de lá e de cá da Dutra, já moro em São Paulo há mais de 20 anos. Estou no sexto endereço, excluindo o hotel onde passei as primeiras três semanas. Foram seis longos períodos de convívio com o maravilhoso mundo dos corretores de imóveis.

Sobre eles, cheguei a pensar em escrever um livro de auto-ajuda --algo na linha de "Quanto Mais Eu Procuro Apartamentos, Mais Eu Tenho Vontade de Esganar o Meu Corretor", ou "Ao Corretor com Carinho: 300 Reflexões Sobre a Arte de Dizer Meias Verdades"--, mas percebi que não consigo odiá-los o suficiente para isso. Depois que você encontra o apartamento que está procurando, a raiva passa e você esquece por que alimentou tanto ódio.

Um dos problemas principais na minha relação com essa turma está ligado ao fato de ser carioca. Tenho o grave defeito de, passados 20 anos, ainda falar com aquele chiado típico, o esse esticado e o erre mal colocado. Só não falo mais "douze" --no mais, todo mundo diz, parece que cheguei do Leblon ontem à tarde. Até hoje, ao desembarcar em Congonhas e indicar a rua que desejo para o motorista de táxi, ele me pergunta por qual caminho prefiro ir, embora não haja alternativa possível. Parece piada, mas, juro, acontece sempre, há duas décadas.

O primeiro apartamento que fui ver em São Paulo, dizia o anúncio, ficava em Higienópolis. Estávamos em 1986 e tinham me informado que era um bairro legal de morar. Era um apartamento "compacto", exatamente o que um homem solteiro precisava. O corretor me conduziu por ruas que não batiam exatamente com a imagem que eu construí do bairro e me levou para conhecer um lugar de que eu nunca tinha ouvido falar, chamado Santa Cecília. "Santa Cecília?", estranhei. "É a mesma coisa, um bairro colado no outro", explicou o corretor.

Recentemente, um amigo carioca passou por situação semelhante, mas foi informado de que o apartamento que estava visitando ficava em um bairro chamado Baixo Higienópolis --a mesma Santa Cecília onde fui morar. Outra pessoa conhecida minha, ao chegar a São Paulo, deu o endereço que buscava, por escrito, frisando o bairro que pretendia alcançar, Morumbi, e teve que ouvir do taxista: "Desculpe, senhora, mas esse endereço é na Vila Andrade. Morumbi é outra coisa".
O tal apartamento "compacto" do anúncio que me levou para "o lado de lá" da avenida Angélica era uma "kite", informou-me o corretor. Mania de abreviar nomes --outro traço tipicamente paulistano. Aqui, Fernanda vira Fê, Marcia vira Má e Diego pode ser chamado de Di. "Kitsch?" me perguntei, pensando em arte de mau gosto, eventualmente engraçada.

Não. Kite de kitchenette, essa forma brasileiríssima de designar apartamentos em que a sala e o quarto são a mesma pessoa, eventualmente separados por uma cortina, e a cozinha fica num canto qualquer, às vezes no corredor, entre a entrada da casa e a sala, à direita da porta do banheiro.

Enfim, o meu apartamento compacto em Higienópolis era uma kite em Santa Cecília --local onde vivi por quase um ano, até reunir os recursos necessários para me mudar para um quarto e sala. Nessa mudança, aprendi uma nova --e fundamental-- lição. Em São Paulo, os apartamentos não têm quartos, mas dormitórios, "dorms", na mania de diminuir as palavras do povo local. Isso sempre me intrigou. Por que chamar de dormitórios mesmo os ambientes que são usados para outras finalidades que não dormir? No apartamento em que passei a minha infância, no coração de Copacabana, por exemplo, dos quatros quartos, dois "dorms", para usar a linguagem paulistana. Mas um quarto servia como sala de jantar e outro como "sala de TV". Não eram "dorms"!.

Outra coisa que sempre me confundiu é a mania de misturar línguas e falar difícil dessa gente, um fenômeno, diga-se, que não é privilégio paulistano. Mas aqui há algumas especificidades. Quando, por exemplo, o corretor me leva para conhecer a "suíte master" do apartamento, invariavelmente, perco o interesse pelo imóvel. "Suíte master??" Quem inventou isso?

Com o tempo, aprendemos a traduzir essa língua muito específica, não? "Ótima vista" significa, com freqüência, que o apartamento tem uma janela que dá para a avenida Rebouças, "silencioso" é sinônimo de sala virada para a parede do prédio vizinho, "iluminado" é aquele imóvel que recebe sol exclusivamente entre às 8h e às 8h30 da manhã, "pronto para você entrar com a sua mudança" costuma ser um apartamento que sofreu uma reforma de mau gosto e quando "só precisa de uma pequena reforma" é porque a casa está destruída.

Ainda me espanto também quando, na tentativa de me convencer a ver determinado apartamento, o corretor realça o número de banheiros do lugar. "Quatro suítes", sendo uma "master", é claro, parece ser o supra-sumo do mundo imobiliário. Mas o que eu vou fazer com tantos banheiros??? "Veja bem, Má, valoriza o apartamento numa posterior revenda." Mas estou procurando um apartamento para morar, não para vender! "Veja bem, Má, nunca se sabe o dia de amanhã." E tem quantas vagas na garagem? "Veja bem, Má, é um apartamento antigo, muito especial. Precisa de uma reforminha, mas tem uma vista incrível. Três "dorms", você vai adorar a "suíte master", é muito iluminado. Só tem uma vaga, mas cabem dois carros, fácil." Valeu! Tô fora.

Armando Prado/Samba Photo

MAURICIO STYCER é jornalista.

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