Revista da Folha

Morar

01/06/2007

De quina: do CÉU ao chão

Morar em uma casa é quase como se eu não estivesse na cidade, como se eu morasse dentro de mim. Às vezes, tenho saudades de morar diferente

por Lucia Carvalho


Sempre fui de apartamentos. Nasci em um, morei em diversos. Ter como cercanias outras janelas, outros lares e reflexos sempre foi para mim a mais familiar das vizinhanças. Não que em São Paulo a gente fique muito tempo olhando a vista, mas tenho nítidas na minha memória as imagens das janelas dos espaços urbanos onde vivi.
Há oito anos moro em casa. No chão. Abro as janelas e vejo meus próprios muros. Saio na varandinha e vejo as plantas que plantei, o meu carro, um pedaço da rua. É quase como se não estivesse na cidade, como se eu morasse dentro de mim. Morar em casa é olhar para dentro de você. Às vezes, tenho saudades de morar diferente. Um tipo de nostalgia urbana.

Quando criança, deitada na cama do meu quarto, lembro de uma sensação engraçada. Eu morava no terceiro andar, o prédio tinha 11. Conhecíamos todos os moradores, meu pai comprou o apartamento "na planta". Como íamos sempre à casa dos vizinhos, era muito estranho pensar que aquelas pessoas, à noite, dormiam empilhadas em cima e em baixo de mim.

Depois que me formei arquiteta aconteceu outra coisa curiosa. Quando você vê o imóvel na planta, como os arquitetos fazem o dia todo, é inevitável não perceber a proximidade de certos ambientes. Uma cliente notou que o banheiro da esposa do vizinho encostava parede com parede com o closet de seu marido. Deu um chilique e mudou o desenho todo; não adiantou o marido argumentar que era possível fazer uma parede mais grossa, com tratamento acústico, o caramba a quatro. Ela foi categórica, nem pensar. Não conseguiria morar num lugar onde outra mulher ficasse pelada tão perto do marido dela, que também poderia estar pelado no closet.

A transição do apartamento para a casa foi um pouco complicada. Passamos os primeiros meses respondendo a uma única pergunta: "Vocês não têm medo de morar numa casa?". O fantasma da segurança, que não era uma questão na nossa família, passou a nos assolar. Tratamos logo de aumentar o muro, colocar trancas nas portas, cerca elétrica e infravermelho, como todos os vizinhos. Horrível, eu sei, mas quem é tão valente? A minha rua, que deveria ser linda há 40 anos, é hoje uma via totalmente murada.

Um dia, uma das casas estava sendo reformada, e o muro foi retirado para construir outro. A rua ficou larguíssima naquele local. Era outra. Se todos tirassem os muros, o espaço urbano seria outro. Pensamos em fazer uma campanha: "Tire seu muro e ganhe sua rua", mas duvidamos que alguém da rua topasse, infelizmente.

Ao mesmo tempo, mesmo sem ver os vizinhos encapsulados, passamos a descobrir as delícias de morar no chão. Não temos mais briga por garagem, ninguém reclama dos filhos que jogam bola na sala. É possível tomar chuva na varandinha. Temos um jardim com ervas e frutas, os filhos jogam bola no quintal.

Mas não dá para julgar se é melhor ou pior morar em casa. Outro dia, num encontro de amigos, os moradores de casas se lembraram do maldito elevador. "Nós estamos livres", alguém disse; "Já temos trânsito demais na cidade para tomar um veículo a mais", retrucou outro. Perguntei ao meu sobrinho de sete anos o que achava melhor e ele não teve dúvidas. "Casa, claro". Mas por quê? "Ora, tia, videogame tem nos dois. Mas nos apartamentos o quintal é muito longe."

LUCIA CARVALHO é arquiteta e autora do blog Frankamente...
www.frankamente.blogspot.com

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