Revista da Folha

Morar

31/08/2007

Morar Mundo: Sexo, mortes e arquitetura

Obras sobre Frank Lloyd Wright, cujo nascimento faz 140 anos, revelam a vida conturbada do mais influente arquiteto da história dos EUA

por Sérgio Dávila, de Washington

 

Reprodução

Western Pennsylvania Conservancy

Frank Lloyd Wright, em foto de 1952, aos 85 anos Fallingwater, o projeto mais famoso, feito em 1935 para a família de Edgar J. Kaufmann em Pittsburgh (Pensilvânia);


Você ouve a sucessão dos três nomes que parecem grudados em concreto, e a primeira associação que vem à mente é a sede do Museu Guggenheim, em Nova York, seu projeto público mais dramático e conhecido. Ou Fallingwater, a mais importante das residências privadas que construiu. Enfiada na vegetação e com sua queda d'água entre lajes, foi desenhada entre 1935 e 1939 para um casal da Pensilvânia e ainda hoje torce pescoços e conceitos no mundo inteiro.

Três obras recentes, no entanto, sugerem que havia mais do que pranchetas e réguas T abaixo do indefectível chapéu e da basta cabeleira branca de Frank Lloyd Wright (1867-1959), o mais importante e influente arquiteto da história dos Estados Unidos, 600 obras em seis décadas de atividade, 362 delas moradias, 300 ainda em pé.

AP photo/Richard Drew
Interior do Guggenheim, em Nova York
Interior do Guggenheim, em Nova York
São o documentário "Murder, Myth and Moder-nism" (Assassinato, Mito e Modernismo), que a TV pública dos EUA vem exibindo nos últimos dias, a biografia "The Fellowship - The Untold Story of Frank Lloyd Wright & The Taliesin Fellowship" (A Irmandade - A História Secreta de Frank Lloyd Wright e a Taliesin Fellowship), lançada no ano passado, e o romance "Loving Frank" (Amando Frank), que acaba de sair.

Todos apontam para o mesmo lugar: Taliesin.

O nome, tirado de um bardo galês (como os pais de Lloyd Wright) e que significa "cume brilhante", batiza a residência de verão que o arquiteto começou a construir em 1911, em terras da família em Spring Green, no Estado de Wisconsin.

FLW chegou ali depois de abandonar mulher e filhos na casa-estúdio que mantinha em Oak Park, em Illinois, hoje parte do patrimônio histórico norte-americano.

Ao projetar uma das "casas de pradaria", como ficariam conhecidas as residências em que começou a aplicar o conceito de "arquitetura orgânica", integrando elementos arquitetônicos e ambiente, FLW se apaixonou pela mulher do cliente e vizinho, Mamah Borthwick Cheney.

Fotos Taliesin Preservation
Jardim de Taliesin, a casa de Frank Lloyd Wright no Estado de Wisconsin
Jardim de Taliesin, a casa de Frank Lloyd Wright no Estado de Wisconsin
Os dois largaram tudo e todos e foram para a Europa, fugindo da repercussão nos puritanos EUA do começo do século passado. Na volta, estabeleceram-se em Taliesin, onde o arquiteto construiu três alas, uma residencial, outra com o escritório e a terceira originalmente dedicada às atividades rurais. No dia 15 de agosto de 1914, enquanto ele via um cliente em Chicago, seu mordomo trancou todas as portas (exceto uma) e janelas da casa, embebeu-as em gasolina e riscou o fósforo.

Naquele momento, na sala principal, jantavam Mamah, seus dois filhos e outras seis pessoas, entre convidados e empregados. Ao sentirem a fumaça e o calor e perceberem que todas as saídas estavam trancadas, os nove correram à única porta destrancada. Do outro lado dela, Julian Carlton, o mordomo, um nativo de Barbados de 30 anos casado com a cozinheira, estava à espera com um machado nas mãos. Matou sete, entre eles a mulher do arquiteto e as crianças.

Nunca ficou claro o motivo do crime, e o empregado, que escapou por pouco de ser linchado pela população, morreria de inanição na cadeia semanas depois, antes de ir a julgamento. O arquiteto resolveu reconstruir o lugar. De 1922 a 1924, morou ali com a terceira mulher, Maude "Miriam" Noel, cujo vício em morfina acabaria com o casamento.

Estúdio do arquiteto, que teve a construção iniciada em 1911
Fachada da residência do arquiteto, que teve a construção iniciada em 1911
No ano seguinte, conheceu a voluptuosa, voluntariosa (e casada) russa Olga Lazovich Hinzenburg numa exibição do Balé de Petro-grado em Chicago e, com ela, voltaria a morar em Taliesin. Que seria destruída por novo incêndio, ainda em 1925, dessa vez provavelmente causado por um curto-circuito ou uma descarga de raio. A casa seria mais uma vez reconstruída por Wright, agora rebatizada "Taliesin 3" e dessa vez destinada a entrar para a história.

Nos anos seguintes, o casal faria do lugar um local de refúgio para estudantes de arquitetura, aspirantes à fama, artistas de diversas áreas (o ator Anthony Quinn era um deles) e desajustados em geral. A fama cresceu tanto que levou Wright a construir em 1937 uma "Taliesin de inverno", Taliesin West, em Scottsdale, Arizona. O grupo era renovado periodicamente e se movia de um lugar a outro conforme a estação.

É a tal "irmandade" a que se refere o livro do historiador de arquitetura Harold Zellman e do sociólogo Ro-ger Friedland. O programa de estudos, sério, continua em atividade até hoje. De ambas as residências saíram projetos como os já citados Guggenheim e a residência Fallingwater. Mas é o que acontecia findas as aulas, segundo as três obras e, mais especificamente, a biografia feita pela dupla de acadêmicos, que choca mesmo os menos chocáveis ainda hoje, 80 anos depois.

O mordomo trancou tudo, riscou o fósforo e se postou na única porta destrancada com um machado nas mãos. Matou sete, incluindo a mulher do arquiteto e as crianças
Do quadro pintado por eles, sai-se pior a terceira mulher de Wright, a russa Olga, como uma mulher dominadora que se divertia tramando para que seus estudantes se apaixonassem entre si, especialmente os do mesmo sexo. A filha do casal, Iovanna, surge como uma ninfomaníaca que encontra na sensualidade sem controle uma maneira de compensar o desinteresse dos pais e acaba internada numa instituição psiquiátrica.

E Frank Lloyd Wright? Homossexual latente e antigay ao mesmo tempo, para começar. Racista. E, apesar de ter feito trabalhos importantes para clientes judeus e aceitar estudantes da mesma religião, anti-semita, sustentam os autores.

O casal é acusado de fazer os aprendizes realizar trabalhos braçais que tinham mais a ver com a manutenção de Taliesin, como cortar lenha e recolher estrume, do que com arquitetura. Mas Olga é a grande figura. Tão logo se instala, implanta os "ensinamentos" do guru greco-armênio Georgi Gurdjieff, que achava Wright um idiota e dizia provocar orgasmos numa mulher no outro canto da sala apenas com o olhar.

Estúdio do arquiteto, que teve a construção iniciada em 1911
Estúdio do arquiteto, que teve a construção iniciada em 1911
O aspecto de "seita" da coisa toda ultrapassou as cercas de madeira e valeu relatos do FBI, a polícia federal norte-americana, que nunca chegou a fazer nenhuma acusação concreta. Mas talvez o clima de Taliesin tenha sido mais bem resumido por, entre tantos outros, ninguém menos que a filha do ditador soviético Joseph Stálin (1878-1953). Enredada por Olga e já uma famosa escritora vivendo exilada nos EUA, Svetlana casou-se com um dos aprendizes de Wright.

Diria depois que sofreu muito na vida por ser filha de quem era. Mas nada se comparava ao que passou em seu período em Taliesin...

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