Revista da Folha

Morar

31/08/2007

Teto Básico: No capricho

Arquitetos tentam mudar a sina da falta de criatividade que transforma os projetos de moradia popular em caixotões sem alma e sem graça

por Roberto de Oliveira

Fotos Nelson Kon

 


Caixotões padronizados, grudados uns aos outros, de janelinhas miúdas. Ou casinhas de pombo, na expressão consagrada pelo escracho nativo para classificar aquelas casinholas com telhados de duas águas encaixadas em lotes apertados. Se essas são as imagens recorrentes ao ouvir falar de moradia popular, você pode ter visto muito,mas não viu tudo. Tem gente por aí tentando mudar a sina de que, em termos arquitetônicos, os imóveis para baixa renda não permitem qualquer sombra de criatividade.

No bairro Ipiranga, um antigo cortiço e favela deu lugar a apartamentos de um tipo normalmente disponível só para alta renda, o dúplex, projetado por Marcelo Barbosa e Jupira Corbucci. Numa rua sem saída de Cotia (Grande SP), um terreno em aclive ganhou condomínio popular construído com painéis de blocos cerâmicos e terraços na cobertura.Aobra, desenhada por Joan Villà e Sílvia Chile,ganhou prêmio da seção paulista do Instituto de Arquitetos do Brasil em 2002.

Ângulos do condomínio projetado por Joan Villà e Sílvia Chile em Cotia
Ângulos do condomínio projetado por Joan Villà e Sílvia Chile em Cotia
Catalão, no Brasil desde 1952,Villà costuma sonhar com o surgimento da APB, a "arquitetura popular brasileira",uma versão arquitetônica tão criativa e festejada como a MPB. "Seria uma forma brasileira de morar, uma proposta de usar o popular como um elemento enriquecedor, e não de demérito." Um exemplo, em termos práticos, seria aproveitar melhor a laje, tão difundida de Norte a Sul do país e aplicada no seu premiado projeto.

Villà, assim como Héctor Vigliecca, arquiteto de projetos que vão da reurbanização da Oscar Freire ("apesar das transformações ocorridas") à da favela Paraisópolis, torce o nariz para o adjetivo "popular"."É uma definição política e um pouco constrangedora que estigmatiza esse mercado.Prefiro o termo habitação. Se é para quem tem muito ou pouco dinheiro é outra discussão", define Vigliecca.

Ronaldo Franco/Folha Imagem
Um dos prédios do mutirão Paulo Freire, que tem cinco tipos de apartamentos, com paredes de laje de cerâmica e varandas coletivas em cada andar
Um dos prédios do mutirão Paulo Freire, que tem cinco tipos de apartamentos, com paredes de laje de cerâmica e varandas coletivas em cada andar
Villà prefere "habitação econômica" ou "mínima". Esta última, uma terminologia arquitetônica surgida na década de 1920 na Alemanha, onde era chamada de "mínimo existencial", partia da idéia de desenvolver para o proletariado um tipo de habitação que não visse a casa como elemento isolado. "Imagine as kitchenettes de Copacabana.A habitação é compacta,mas, quando o morador desce, às portas do prédio existe toda uma cidade."

Para os arquitetos,uma concepção bem diferente do modelo de habitação popular fornecido pelo Estado, que seguiria apenas o paradigma do "mínimo"habitacional,geralmente privilegiando terras baratas, excluídas dos centros de serviço e convivência social.Esse modelo, diz Marcelo Barbosa, está "fadado ao fracasso e à segregação".

Sua proposta é usar as áreas deterioradas do centro expandido de São Paulo e construir edifícios com menor número de unidades,em áreas que não necessitem de investimentos em infra-estrutura.

Desde a década de 1980,os laboratórios de habitação dos cursos de arquitetura das principais universidades,como USP, Unicamp e Mackenzie, vêm abrindo espaço para incluir na pauta de discussão e nos projetos o segmento de moradia popular. Nas páginas a seguir, quatro exemplos de projetos que fogem do lugar comum.

PRAÇA E ÁREA DE LAZER
Cravado em Cidade Tiradentes,bairro com a maior concentração de conjuntos habitacionais da América Latina.Aprevisão era de um conjunto "padrão", com apartamentos de 40 m2, metade com fachada sem iluminação solar.Os futuros moradores decidiram desenvolver outro projeto, com a assessoria técnica da Usina, que reúne arquitetos e cientistas sociais que trabalham com movimentos populares.

A escada que liga os andares do dúplex popular no Ipiranga
A escada que liga os andares do dúplex popular no Ipiranga
São cinco tipos de apartamentos, com 54 m2, varanda coletiva por andar e paredes de laje cerâmica, que dificulta o vazamento acústico e favorece o conforto térmico.

A opção pela estrutura metálica, segundo a arquiteta Beatriz Tone, permitiu melhor distribuição dos cem apartamentos. Foi possível ganhar uma praça-anfiteatro no centro do conjunto e outro espaço coletivo, que poderá ser revertido em área de lazer, creche ou biblioteca comunitária.

Aestrutura tem a chamada planta livre, em que cada unidade pode realizar mudanças conforme suas necessidades. Aobra, iniciada há quatros anos com previsão de entrega em 2008, é financiada pela Cohab. Cem famílias participam do mutirão em revezamento nos fins de semana.

DÚPLEX
Quem passa pelo número 303 da Pedro Facchini, no Ipiranga (zona sul de SP), não imagina que há menos de cinco anos, naquele mesmo terreno, existia uma casa que virou cortiço e, demolida, abrigou uma favela onde moravam oito famílias.

Fotos Vigliecca e Associados
Nas fotos do alto, o casarão do Carmo como é hoje, ao lado da maquete que mostra como seriam os apartamentos; à esq., vista de cima da passagem, da praça e da área comunitária
Nas fotos do alto, o casarão do Carmo como é hoje, ao lado da maquete que mostra como seriam os apartamentos; à esq., vista de cima da passagem, da praça e da área comunitária
Desde dezembro de 2004, no terreno de 280 m2 foi erguido um prédio de 12 apartamentos. No térreo, seis unidades de um dormitório e 35 m2. No primeiro piso, outras seis,mas do tipo dúplex, com dois dormitórios e 45 m2, acessadas por escadas metálicas externas.

O projeto, assinado pelos arquitetos Marcelo Barbosa,48, e Jupira Corbucci,46, feito para a Cohab, também é diferente de outros "populares" nos quesitos iluminação e ventilação, com portas-balcão, venezianas e pequenas janelas nas áreas de sala, cozinha,banheiro e lavabo.As famílias se revezam na limpeza, jardinagem e reparos.

TERRAÇO NA COBERTURA
Sílvia Chile
Condomínio de Cotia com três pavimentos; sala, cozinha e área de serviço ficam no térreo, quartos e banheiro, no primeiro andar e o segundo abriga um terraço; no fundo, cada unidade tem um pequeno quintal
Condomínio de Cotia com três pavimentos; sala, cozinha e área de serviço ficam no térreo, quartos e banheiro, no primeiro andar e o segundo abriga um terraço; no fundo, cada unidade tem um pequeno quintal
No terreno de 3.200 m2, em Cotia, o condomínio privado com 24 unidades foge do convencional. Para favorecer a ventilação, iluminação e visibilidade no terreno em aclive, Joan Villà e Sílvia Chile erigiram três patamares. No térreo, ficam sala, cozinha e área de serviço; quartos (dois) e banheiro estão no primeiro pavimento.

O segundo abriga um terraço com telhado metálico, incorporando um hábito freqüente no país, o de aproveitar a "laje". É o lugar de estender a roupa, do churrasco e da festa, além de ser uma área de possível expansão da casa. Cada unidade tem ainda um pequeno quintal nos fundos.

O conjunto foi construído com pré-fabricação cerâmica, que consiste na execução de painéis de blocos cerâmicos para laje,paredes e escadas, técnica desenvolvida por Villà nos Laboratórios de Habitação da Belas Artes e Unicamp.A mão-de-obra foi treinada no canteiro pelos arquitetos.


CASARÃO HISTÓRICO
Um bom exemplo de revitalização do centro que ainda continua emperrado é o projeto do casarão do Carmo, que o escritório de Héctor Vigliecca desenvolveu para a Cohab em 2002. A proposta é transformar em 26 apartamentos de 30 m2 o atual cortiço instalado na lateral da igreja do Carmo e ao fundo da antiga residência do bispado.

O projeto valoriza as obras históricas no triângulo das ruas do Carmo, Flores e Tabatingüera, ao contemplar uma passagem para pedestre que atravessa o casarão e forma uma praça. Aporta do casarão passaria a ser um portal público, transformando suas dependências em área para uso comunitário. O intuito é criar, nas palavras do arquiteto,"um compromisso direto de todas as habitações com o espaço público".

A Secretaria Municipal de Habitação informa que a obra está atrasada, porque a empreiteira licitada faliu. Uma nova licitação está em andamento, sem data definida para o início da obra.

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