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A MORTE DE COVAS
Ao contrário do ocorrido com o presidente eleito Tancredo Neves, quadro do governador não foi mascarado pelos envolvidos
Covas fez questão de tornar a doença pública
PATRICIA ZORZAN
DA REPORTAGEM LOCAL
Divulgando em detalhes a evolução de sua doença, o governador Mário Covas, 70, abriu um
precedente histórico no país que
viu o presidente eleito Tancredo
Neves, vítima de um processo infeccioso causado por um tumor
benigno perfurado, morrer -oficialmente- após complicações
iniciadas com um ""divertículo de
Meckel" (uma protuberância no
intestino delgado resultante de
má-formação congênita).
Apesar disso, nem sempre o que
era divulgado correspondia exatamente ao quadro clínico do governador. Os médicos de Covas
afirmam que, para preservá-lo,
omitiram dados sobre o câncer de
bexiga que o levaria à morte.
""Ele disse que queria tudo divulgado, que tinha sido eleito pelo
povo e que, por isso, devia explicações ao povo", declarou o médico particular do governador
desde 1987, David Uip.
""O governador deixou em minhas mãos decidir sobre o que seria dito e nunca reclamou. O que
não revelamos não era essencial."
Foi assim no dia 4 de dezembro
de 1998, quando Uip afirmou que
Covas havia sido submetido a
uma cirurgia para a remoção de
um tumor na bexiga e de outro,
benigno, na próstata.
A informação oficial era a de
que o tucano havia sido internado
na noite anterior devido a uma infecção na próstata causada por
bactérias (prostatite). Apenas na
operação o tumor na bexiga teria
sido encontrado. Os médicos, entretanto, já estavam cientes da
existência do câncer no órgão.
Antes da intervenção, exames
feitos pelo urologista Sami
Arap- diante das reclamações
de Covas de que sentia dores para
urinar- indicaram que o quadro
ia muito além da prostatite.
""Fiz uma confusão na época.
Foi a biopsia da bexiga que motivou a cirurgia", admitiu Uip no
último dia 8 de fevereiro.
O tumor de bexiga, de um tipo
raro, foi identificado como de
agressividade três em uma escala
que varia até quatro. Quanto
maior o grau, mais grave a doença
e menor a sobrevida do paciente.
Confirmado o câncer, o governador seria submetido a outra intervenção, dez dias depois, para a
remoção do tumor e também da
bexiga, da próstata, das vesículas
seminais (reservatórios de sêmen) e dos gânglios linfáticos (estruturas que fazem parte do sistema de defesa do organismo).
A esperança de cura definitiva,
dizem hoje os médicos, estava
nessa cirurgia, que resultou na
construção de uma bexiga (neobexiga) com partes do intestino.
Mas material coletado nos tecidos e analisado pelo Memorial
Sloan Kettering Cancer Center, de
Nova York, indicou que eram de
70% as chances de reincidência.
O número, conforme Sami
Arap, foi omitido não só do público, mas também do próprio governador. ""Não havia por que dizer isso. Ele acabava de sair de
uma cirurgia, aparentemente,
bem-sucedida", declarou Arap.
No final de 2000, Covas se queixou de problemas para defecar e
de dificuldades para engordar.
""Tem alguma coisa errada", disse
a Uip, segundo relato do médico.
Testes revelaram, então, alterações em um exame de sangue e a
existência de uma pequena fissura próxima à região anal, de um
pólipo (espécie de verruga) no intestino e, hoje se sabe, de uma
área inflamada no mesmo órgão.
Durante a cirurgia para o tratamento da fissura e para a retirada
do pólipo, também foi colhido
material para análises.
Embora a biopsia do pólipo tenha revelado que ele era benigno,
estudos no tecido inflamado indicaram que a previsão dos norte-americanos estava correta e que o
câncer estava de volta. Desta vez,
envolvendo o reto.
Um outro tumor no intestino
delgado ainda seria descoberto na
cirurgia para a remoção da lesão
no reto, em 21 de novembro.
Esse segundo câncer no intestino caracterizaria, conforme os
médicos, a ocorrência de metástase, isto é, a contaminação de outros órgãos pela doença. Diante
da repercussão da existência de
metástase, os médicos recuaram.
""Quisemos deixar a coisa meio
cinza para preservar o governador", disse Arap. "Covas sempre
soube de tudo", rebate Uip.
Meninge
Na tentativa de eliminar os dois
novos tumores, foram retirados o
reto e dez centímetros do intestino delgado. Com a perda do reto,
o governador foi submetido a
uma colostomia definitiva para a
criação de uma forma de evacuação por via não-natural.
""Tinha medo. Mas como posso
reclamar disso se Deus me deu a
vida? E quem ganha o principal
não pode discutir o acessório",
disse Covas sobre a colostomia.
A gravidade do quadro tornava
necessária uma forma complementar de tratamento, mas, por
debilitar o organismo, a quimioterapia preocupava os médicos.
Em 1999, Covas teve a quarta sessão quimioterápica suspensa devido à sua fragilidade.
Foi adotada então a imunoterapia, um tratamento experimental
feito com uma droga não disponível para o consumo comercial.
Mas apenas uma sessão chegou
a ser feita. Queixas de dores de cabeça associadas a dificuldades de
locomoção levantaram a suspeita
de problemas neurológicos.
Quatro dias antes do Natal, Covas, na primeira aparição pública
externa depois da alta, caminhou
apoiado em sua mulher, Lila.
Em 11 de janeiro, o governador
demonstrou dificuldades para raciocinar e pronunciar palavras ao
discursar em uma cerimônia.
Dois dias depois, exames confirmariam células cancerosas na
meninge (membrana que reveste
o cérebro e a medula espinhal).
Cada vez mais debilitado, Covas
passou a usar uma cadeira de rodas e, depois de uma queda no banheiro de casa de madrugada, foi
internado repentinamente para o
início da quimioterapia.
Com alterações em seu estado
clínico e inchaço nos braços e pernas, em 21 de janeiro foi aconselhado por Uip a afastar-se do cargo. Pediu a noite para pensar e, na
manhã seguinte, comunicou que
deixaria o comando do Estado.
Apesar do afastamento, Covas
fez questão de continuar participando de cerimônias e inaugurações. Uma ligeira melhora o levou
a desistir definitivamente, em 12
de janeiro, de sua agenda extra-oficial para se dedicar à fisioterapia. Poder caminhar era a condição imposta pelo próprio Covas
para retornar ao governo.
Mas, no dia 25 de fevereiro, seu
quadro clínico se agravou e ele foi
levado às pressas da praia, onde
passaria o Carnaval, para o Incor.
Ao longo da semana, alterações
complicaram seu estado. Além de
uma infecção, foi descoberto um
edema pulmonar agudo.
Segundo a Folha apurou, os
médicos desistiram de entubá-lo
diante da evidência de que a sedação necessária para isso poderia
levar fazer com que Covas não
acordasse mais. Depois do edema
agudo -acúmulo excessivo de líquidos-, ainda foram constatadas taquicardia, obstrução intestinal, insuficiência respiratória e
uma pneumonia. No domingo,
Covas sofreu convulsões e perdeu
a consciência. Segundo os médicos, era ""o final de uma luta" de
dois anos e meio.
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