São Paulo, terça-feira, 06 de março de 2001


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A MORTE DE COVAS

Ao contrário do ocorrido com o presidente eleito Tancredo Neves, quadro do governador não foi mascarado pelos envolvidos

Covas fez questão de tornar a doença pública

PATRICIA ZORZAN
DA REPORTAGEM LOCAL

Divulgando em detalhes a evolução de sua doença, o governador Mário Covas, 70, abriu um precedente histórico no país que viu o presidente eleito Tancredo Neves, vítima de um processo infeccioso causado por um tumor benigno perfurado, morrer -oficialmente- após complicações iniciadas com um ""divertículo de Meckel" (uma protuberância no intestino delgado resultante de má-formação congênita).
Apesar disso, nem sempre o que era divulgado correspondia exatamente ao quadro clínico do governador. Os médicos de Covas afirmam que, para preservá-lo, omitiram dados sobre o câncer de bexiga que o levaria à morte.
""Ele disse que queria tudo divulgado, que tinha sido eleito pelo povo e que, por isso, devia explicações ao povo", declarou o médico particular do governador desde 1987, David Uip.
""O governador deixou em minhas mãos decidir sobre o que seria dito e nunca reclamou. O que não revelamos não era essencial."
Foi assim no dia 4 de dezembro de 1998, quando Uip afirmou que Covas havia sido submetido a uma cirurgia para a remoção de um tumor na bexiga e de outro, benigno, na próstata.
A informação oficial era a de que o tucano havia sido internado na noite anterior devido a uma infecção na próstata causada por bactérias (prostatite). Apenas na operação o tumor na bexiga teria sido encontrado. Os médicos, entretanto, já estavam cientes da existência do câncer no órgão.
Antes da intervenção, exames feitos pelo urologista Sami Arap- diante das reclamações de Covas de que sentia dores para urinar- indicaram que o quadro ia muito além da prostatite.
""Fiz uma confusão na época. Foi a biopsia da bexiga que motivou a cirurgia", admitiu Uip no último dia 8 de fevereiro.
O tumor de bexiga, de um tipo raro, foi identificado como de agressividade três em uma escala que varia até quatro. Quanto maior o grau, mais grave a doença e menor a sobrevida do paciente.
Confirmado o câncer, o governador seria submetido a outra intervenção, dez dias depois, para a remoção do tumor e também da bexiga, da próstata, das vesículas seminais (reservatórios de sêmen) e dos gânglios linfáticos (estruturas que fazem parte do sistema de defesa do organismo).
A esperança de cura definitiva, dizem hoje os médicos, estava nessa cirurgia, que resultou na construção de uma bexiga (neobexiga) com partes do intestino.
Mas material coletado nos tecidos e analisado pelo Memorial Sloan Kettering Cancer Center, de Nova York, indicou que eram de 70% as chances de reincidência.
O número, conforme Sami Arap, foi omitido não só do público, mas também do próprio governador. ""Não havia por que dizer isso. Ele acabava de sair de uma cirurgia, aparentemente, bem-sucedida", declarou Arap.
No final de 2000, Covas se queixou de problemas para defecar e de dificuldades para engordar. ""Tem alguma coisa errada", disse a Uip, segundo relato do médico.
Testes revelaram, então, alterações em um exame de sangue e a existência de uma pequena fissura próxima à região anal, de um pólipo (espécie de verruga) no intestino e, hoje se sabe, de uma área inflamada no mesmo órgão.
Durante a cirurgia para o tratamento da fissura e para a retirada do pólipo, também foi colhido material para análises.
Embora a biopsia do pólipo tenha revelado que ele era benigno, estudos no tecido inflamado indicaram que a previsão dos norte-americanos estava correta e que o câncer estava de volta. Desta vez, envolvendo o reto.
Um outro tumor no intestino delgado ainda seria descoberto na cirurgia para a remoção da lesão no reto, em 21 de novembro.
Esse segundo câncer no intestino caracterizaria, conforme os médicos, a ocorrência de metástase, isto é, a contaminação de outros órgãos pela doença. Diante da repercussão da existência de metástase, os médicos recuaram.
""Quisemos deixar a coisa meio cinza para preservar o governador", disse Arap. "Covas sempre soube de tudo", rebate Uip.

Meninge
Na tentativa de eliminar os dois novos tumores, foram retirados o reto e dez centímetros do intestino delgado. Com a perda do reto, o governador foi submetido a uma colostomia definitiva para a criação de uma forma de evacuação por via não-natural.
""Tinha medo. Mas como posso reclamar disso se Deus me deu a vida? E quem ganha o principal não pode discutir o acessório", disse Covas sobre a colostomia.
A gravidade do quadro tornava necessária uma forma complementar de tratamento, mas, por debilitar o organismo, a quimioterapia preocupava os médicos. Em 1999, Covas teve a quarta sessão quimioterápica suspensa devido à sua fragilidade.
Foi adotada então a imunoterapia, um tratamento experimental feito com uma droga não disponível para o consumo comercial.
Mas apenas uma sessão chegou a ser feita. Queixas de dores de cabeça associadas a dificuldades de locomoção levantaram a suspeita de problemas neurológicos.
Quatro dias antes do Natal, Covas, na primeira aparição pública externa depois da alta, caminhou apoiado em sua mulher, Lila.
Em 11 de janeiro, o governador demonstrou dificuldades para raciocinar e pronunciar palavras ao discursar em uma cerimônia.
Dois dias depois, exames confirmariam células cancerosas na meninge (membrana que reveste o cérebro e a medula espinhal).
Cada vez mais debilitado, Covas passou a usar uma cadeira de rodas e, depois de uma queda no banheiro de casa de madrugada, foi internado repentinamente para o início da quimioterapia.
Com alterações em seu estado clínico e inchaço nos braços e pernas, em 21 de janeiro foi aconselhado por Uip a afastar-se do cargo. Pediu a noite para pensar e, na manhã seguinte, comunicou que deixaria o comando do Estado.
Apesar do afastamento, Covas fez questão de continuar participando de cerimônias e inaugurações. Uma ligeira melhora o levou a desistir definitivamente, em 12 de janeiro, de sua agenda extra-oficial para se dedicar à fisioterapia. Poder caminhar era a condição imposta pelo próprio Covas para retornar ao governo.
Mas, no dia 25 de fevereiro, seu quadro clínico se agravou e ele foi levado às pressas da praia, onde passaria o Carnaval, para o Incor.
Ao longo da semana, alterações complicaram seu estado. Além de uma infecção, foi descoberto um edema pulmonar agudo.
Segundo a Folha apurou, os médicos desistiram de entubá-lo diante da evidência de que a sedação necessária para isso poderia levar fazer com que Covas não acordasse mais. Depois do edema agudo -acúmulo excessivo de líquidos-, ainda foram constatadas taquicardia, obstrução intestinal, insuficiência respiratória e uma pneumonia. No domingo, Covas sofreu convulsões e perdeu a consciência. Segundo os médicos, era ""o final de uma luta" de dois anos e meio.




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