São Paulo, terça-feira, 06 de março de 2001


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A MORTE DE COVAS

Mário Covas Júnior entrou na política pelas mãos de Jânio Quadros, combateu o regime militar e foi um dos fundadores do PSDB

Presidência foi o único sonho não alcançado

CLÓVIS ROSSI
DO CONSELHO EDITORIAL

Quando criança, Mário Covas Júnior sonhava em ser presidente. Do Santos F.C., o clube da cidade (Santos) em que nasceu no dia 21 de abril de 1930. Nem tentou. Já adulto, sonhou de novo em ser presidente. Da República. Tentou, em 1989, e perdeu.
A morte impede que volte a tentar em 2002, justamente quando, na opinião de dez entre dez líderes do PSDB, seu partido, era o candidato natural para suceder a Fernando Henrique Cardoso, pelo menos até ser operado de um câncer na bexiga, no final de 1998.
A Presidência foi o único sonho que as urnas negaram a esse engenheiro convertido em político 24 horas por dia. Por meio delas, foi tudo o mais: deputado federal por três vezes, senador (87/95) e governador de São Paulo (95 até morrer). Sem contar o posto de prefeito da capital paulista, embora biônico (83/85).
Nem essa longa carreira pública permite, no entanto, que se aplique a Covas um rótulo fácil, ao contrário do que ocorre com a maioria dos políticos brasileiros.
Começou janista, eleitor e partidário de Jânio Quadros, o efêmero presidente eleito em 1960 e que renunciou no ano seguinte. Jânio é, talvez, o mais escrachado exemplo de populista em um país em que o populismo teve incontáveis expoentes.
Foi Jânio, aliás, quem puxou Covas, então engenheiro da Prefeitura de Santos, para a política. Necessitava de uma jovem e promissora liderança e encontrou-a em Covas, a quem Saulo Ramos, fiel escudeiro do então presidente, convenceu a disputar a prefeitura.
Perdeu. Mas ficou na política. E foi colidir de frente com seu iniciador no ofício: prefeito de São Paulo, Covas trabalhou intensamente pela candidatura do senador Fernando Henrique Cardoso para sucedê-lo, em 1985, na primeira eleição direta para a prefeitura da capital paulista depois de quase 20 anos de administradores nomeados pelo governador. O adversário era justamente Jânio Quadros. Covas perdeu de novo.
Foi conferir os mapas de votação e descobriu que Jânio tivera mais votos que Fernando Henrique Cardoso mesmo em bairros periféricos nos quais a prefeitura de Covas realizara muitas obras.

"Carências dessa gente"
"São tantas as carências dessa gente que o poder público é visto
como opressor. E o voto vai para a oposição", filosofou.
O ziguezague entre o janismo e o antijanismo, na política, pode ser encontrado também nas características pessoais de Covas. É difícil dizer quem era o Covas verdadeiro, se o "Zuza", carinhoso apelido de infância usado pela família e por uns poucos amigos íntimos, ou se "o espanhol", tomado como sinônimo de teimoso e mal-humorado, mas também como referência à origem da família Covas (Pontevedra, cidade da Galícia, no norte da Espanha).
Talvez ambos fossem verdadeiros. Para os amigos, a família e os correligionários mais fiéis, era o "Zuza", capaz de encostar o umbigo no balcão de qualquer botequim para conversar fiado com eleitores. Para os demais assessores e para a maioria dos jornalistas, era o "espanhol", cheio de cobranças, idéias fixas e um mau humor que oscilava entre autenticidade e símbolo de austeridade.
Para o próprio Covas, o "Zuza" deveria ser o verdadeiro. "Quem nasce na Baixada (Santista) não pode ser mal-humorado", chegou a dizer certa vez.
Austeridade talvez seja a única qualidade que nem os adversários lhe negam. Quando explodiu no noticiário o papelório que ficou conhecido como dossiê Caribe, sobre uma suposta conta conjunta de Covas, FHC, Sérgio Motta e José Serra em um paraíso fiscal, o presidente Fernando Henrique Cardoso reagiu com bom humor: "Se já é difícil fazer negócios lícitos com o Mário, imagine então negócios ilícitos".
O governador de Santa Catarina, Esperidião Amin (do PPB, o mais encarniçado adversário de Covas), conta que o paulista levava um livro-caixa com anotações de todas as suas receitas e despesas desde muitos anos.
Mas austeridade nem sempre é qualidade valorizada pelo eleitorado. No dia em que assumiu o Estado, no primeiro mandato, não havia dinheiro em caixa nem para pagar "papagaios" que venciam naquele mesmo dia, sem contar a ameaça da Petrobras de cortar o fornecimento de gasolina para os veículos oficiais por causa de dívida acumulada.

Impopularidade
Covas não teve remédio senão passar os três primeiros anos de sua gestão arrumando a casa, investindo pouco. Resultado: a impopularidade que o levou a sofrer imensamente para passar para o segundo turno, ao disputar a reeleição, em 1998. Teve apenas meio ponto percentual mais que a petista Marta Suplicy, que jamais havia disputado um cargo majoritário na vida (22,95% x 22,51%) -um número baixo para quem acumulara recordes eleitorais.
Foi o senador mais votado da história republicana, ao eleger-se, em 1986, com 7.785.667 votos. Foi também o governador mais votado da história, no segundo turno de 98 (9.800.253 votos). Claro que se beneficiou do fato de São Paulo ser, de longe, o Estado com maior número de eleitores no país.
Covas era igualmente uma espécie de ser híbrido: alma de político, cabeça de engenheiro (sua profissão original, diplomado pela mais famosa escola do ramo, a Politécnica de São Paulo).
De alguma forma, híbrido também no aspecto religioso: embora espírita, jamais fez alarde dessa condição e nunca deixou de cultivar amigos de outras religiões, em especial a católica (o cardeal-arcebispo emérito de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns) e a judaica (o rabino Henry Sobel).
Como político, especialmente em cargos no Congresso, participou de todas as principais articulações do país tanto antes como durante o regime militar (64-85).

Regime militar
Articulou, por exemplo, a rejeição pela Câmara da licença para processar o então deputado Márcio Moreira Alves, em 1968, que fizera discurso considerado ofensivo pelos militares.
Covas era líder de um bloco de pequenos partidos, entre os quais o seu, o PST (Partido Social Trabalhista). "O governo tem medo do povo", chegou a dizer.
A licença para processar Moreira Alves foi de fato negada, mas a reação dos militares foi violenta: editaram o Ato Institucional número 5, um dos mais poderosos instrumentos de arbítrio que o país conheceu, fecharam o Congresso, cassaram mandatos.
Covas foi um dos parlamentares cassados (dia 16 de janeiro de 1969, um mês e três dias depois de editado o AI-5). Ficou dez anos no ostracismo, com os direitos políticos suspensos. Saiu da hibernação forçada em 1979 e ingressou no segundo partido de sua vida, o PMDB (o terceiro seria o PSDB, que ajudou a criar, em 1988).

Político engenheiro
Como administrador, prevalecia, no entanto, o cérebro de engenheiro. Era capaz de citar de memória, sem consultar um único papelucho, números relativos a ações de várias das secretarias de Estado. No caso de porcentagens, ia, sem pensar duas vezes, até a segunda casa decimal.
Mas a alma de político revelava-se também, com clareza, na capacidade de antever fatos menos por uma avaliação sociológica e mais por puro instinto.
Foi assim com o AI-5. Oito meses antes, Covas dizia, da tribuna da Câmara, que o governo militar caminhava para se tornar prisioneiro da lógica da força e da violência. Vinte anos depois, o então governador de Alagoas, Fernando Collor de Mello, despachou um emissário para propor a Covas a seguinte chapa presidencial: Covas presidente, Collor vice.
"Não confio nesse sujeito", devolveu Covas. O tempo lhe daria razão. Collor, em vez de vice, foi candidato e se elegeu, mas apenas para se tornar o primeiro presidente da história do país a ser expulso do cargo pela via constitucional, a do impeachment.
Covas ainda daria um segundo "não" a Collor. O então presidente chegou a convidar Tasso Jereissati, governador do Ceará, e Fernando Henrique Cardoso para uma conversa destinada a convidar os tucanos a participar de seu governo, que passaria então a ser de "notáveis", como a mídia da época batizou o ensaio.
Antes mesmo que Tasso e FHC anunciassem a decisão, Covas gritou "não" de público e inviabilizou a hipótese de as plumas do tucanato enfeitarem o governo do homem em quem não confiava (FHC diz, uma e outra vez, que a decisão dele e de Tasso também era essa e que, portanto, não foi Covas, sozinho, quem inviabilizou a operação).

Plano Real
A intuição que o levou a rejeitar Collor funcionou de novo em 1995, quando o governo Fernando Henrique e boa parte do público ainda estavam em lua-de-mel com um Real sobrevalorizado em relação ao dólar. Covas dizia à revista "Carta Capital": "Acho que o Real cometeu o pecado do orgulho. Não precisaríamos dar de graça 20% em cima do dólar, porque isso acaba criando problemas no futuro".
Quatro anos depois, o "futuro" cheio de "problemas" chegou, com a crise que vitimou a moeda.
Quando o intuitivo, no entanto, deixava-se dobrar pelos marqueteiros, o resultado era bem diferente. Foi assim na campanha presidencial de 1989. Para afastar a fama de esquerdista, que criara como líder do PMDB no Congresso constituinte, Covas fez um discurso para marcar posição inversa: defendeu um "choque de capitalismo" no Brasil.
Provocou certo "frisson" nos setores conservadores, que o viam como perigoso, estatizante e nacionalista, mas nem assim sua candidatura decolou. Terminou atrás dos verdadeiros esquerdistas (Luiz Inácio Lula da Silva e Leonel Brizola) e, é claro, de Fernando Collor, o vencedor.

Derrotas
Perderia de novo no ano seguinte, na eleição para governador, mas se recuperaria com duas vitórias consecutivas, sempre para
governador (em 94 e 98).
Mas acabou derrotado pela doença, aliás, por uma sucessão delas. Em 86 e 87, sofreu infartos. Após o segundo deles, teve implantadas duas pontes de safena e uma mamária. Em 93, extraiu a vesícula. Em 94 e 95, foi internado por conta de uma erisipela (infecção na pele causada por bactéria).
Em maio de 98, outra infecção (herpes-zoster) atingiu parte da cabeça e do lado direito da testa. Em outubro de 2000, um pólipo
no intestino revelou-se um tumor maligno.
Quando saiu do hospital, após tratar do segundo ataque de erisipela, disse aos jornalistas: "Não tenho planos de morrer nos próximos quatro anos. Me elegeram, agora terão que me aguentar".
Os eleitores aguentaram, tanto que o reelegeram três anos depois. Mas, desta vez, o plano de não morrer foi frustrado.


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