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CONTESTADORES
Para filósofa indiana, indústrias pretendem dominar toda a cadeia alimentar
Biopirataria é colonialismo atual, diz Vandana Shiva
MARIA BRANT
DA REDAÇÃO
Hoje, para muitas pessoas, comer é
um ato político. As implicações econômicas, sociais, ambientais e sanitárias dos atuais meios de produção e
comercialização de alimentos
-principalmente a biotecnologia-
e as epidemias recentes afetando o gado europeu são as
principais responsáveis pelo
destaque que a questão ganhou nos últimos anos.
Pensando nessas implicações, diversos grupos e instituições têm surgido para tentar conter a concentração do
controle da comida nas mãos
de empresas privadas, além
de garantir a qualidade do
alimento e discutir o problema da segurança alimentar
em seus dois sentidos ("food
security", que diz respeito ao
acesso da população à comida, e "food safety", que trata
de seu caráter sanitário).
ONGs, intelectuais e ativistas políticos -cujo maior
expoente talvez seja o agricultor francês José Bové- formam um grupo
de contestadores da globalização que
temem os efeitos sociais e econômicos do uso da biotecnologia.
Outro grupo que contesta a indústria biotecnológica é formado por
ambientalistas, que defendem que o
uso de transgênicos pode afetar o
equilíbrio ecológico do planeta, com
consequências imprevisíveis.
A física e filósofa indiana Vandana
Shiva, diretora da Fundação de Pesquisas em Ciência, Tecnologia e Ecologia, com sede em Nova Déli, funde a
crítica econômica com a ambiental:
chama a política de patentes de "biopirataria" e a proposta do transgênico
Arroz Dourado, enriquecido com vitamina A, de "bobagem".
Ela faz parte de um grupo de intelectuais indianos -no qual também
se inclui o Nobel de economia Amartya Sen- que conquistou nos últimos
anos uma posição de destaque na crítica ao sistema econômico atual.
Descrita pelo jornal inglês "The
Guardian" como "uma das cientistas
mais radicais e proeminentes do
mundo", Vandana foi elogiada até
pelo príncipe Charles, em um seminário da BBC no ano passado. Seu livro "Biopirataria" chega às livrarias
brasileiras amanhã dentro da coleção
Zero à Esquerda, da editora Vozes
(tel. 0/xx/11/3277-6266).
Leia a seguir a entrevista que Vandana deu à Folha, por telefone, de
Lund (Suécia).
Folha - O que deveríamos discutir
quando falamos em comida?
Vandana Shiva - Deveríamos discutir a conservação da base de produtividade, ou seja: o solo, a água, a biodiversidade. Deveríamos falar sobre o
sustento dos agricultores, a segurança
["security"] alimentar para os pobres,
a segurança ["safety"] alimentar para
todos. O mesmo sistema que destrói a
Terra, destrói o direito dos pobres à
comida. Hoje, os mais afetados pela
fome são aqueles que produzem comida, mas não têm acesso a ela, que
têm de vender todos os grãos para
comprar produtos químicos para
produzir esses mesmos grãos.
Folha - Como isso se relaciona com
sua afirmação de que o patenteamento
é a nova forma de colonialismo?
Vandana - O controle pela semente
já havia sido realizado com o uso de
químicos na Revolução Verde. Hoje,
com a introdução da semente híbrida
e da semente patenteada, há uma colonização ainda mais profunda. A natureza da semente é se reproduzir, e
todas as tecnologias e truques jurídicos do mundo estão sendo aplicados
para impedir que a semente se reproduza e para fazer com que os agricultores não possam guardá-la, tendo de
comprá-la todos os anos.
Folha - Estaríamos passando por uma
corporativização da comida, com as
grandes empresas tentando dominar
toda a cadeia alimentar?
Vandana - Elas definitivamente estão, por meio de três processos. Um
deles é a aquisição da propriedade do
primeiro elo da cadeia alimentar (a
semente), usando as patentes. O segundo utiliza as novas ferramentas da
engenharia genética para controlar o
sistema alimentar, como a tecnologia
"terminator" (que impede a semente
de se reproduzir). De forma ainda
pior, estão tentando controlar a cadeia alimentar pela contaminação. As
corporações tentam criar uma lei que
diz que, se elas poluírem as plantações e os campos de outras pessoas
(pela polinização com suas sementes), não apenas elas não pagarão por
isso como serão pagas. Estão inviabilizando todas as alternativas, seja a
agricultura sustentável, seja a agricultura orgânica.
Folha - A sra. pode explicar o que é a
dieta biodiversa que defende?
Vandana - Como na Revolução Verde, hoje, na época da engenharia genética, nos dizem que produziremos
mais comida. Mas, ao se calcular a
área e a nutrição por hectare, um sistema biodiverso produz mais nutrição. O sistema de agricultura industrial acabou com a diversidade das
plantações e a substituiu por monoculturas de arroz e trigo. Isso cria deficiências de nutrientes.
Como solução, querem nos oferecer o Arroz Dourado. Mas esse arroz
só vai criar mais fome e mais desnutrição. Uma razão é o fato de que vai
desviar nossos recursos já escassos da
única forma viável de alimentar as
pessoas, especialmente os pobres.
Pesquisas de órgãos internacionais
mostram que os únicos lugares em
que deficiências sérias de vitamina A
foram eliminadas são aqueles onde
foram cultivadas sementes variadas.
Tudo o que temos de fazer é dar sementes de alimentos que são ricos em
ferro e vitamina A e nos livramos dos
dois piores problemas de desnutrição. Mas os recursos são dados a essas
enormes corporações, e elas oferecem
essa solução feudal para a desnutrição, que agrava o problema, porque
cria outra receita de monocultura.
Estima-se que 100 g desse arroz terão 30 mg de vitamina A. Então, para
suprir as necessidades de vitamina A,
seria preciso comer 10 kg da bobagem
que é esse arroz. Como ninguém come 10 kg de arroz, essa é na verdade
uma receita para aumentar a deficiência da vitamina A. Verduras, abóboras e outros alimentos usados em
nossas culturas podem prover de 10
mil mg a 14 mil mg.
Folha - O que é biopirataria?
Vandana - A biopirataria é o modo
atual de colonização. As corporações
vão para o Terceiro Mundo, descobrem com que objetivo usamos nossa
biodiversidade e depois alegam que
inventaram essa forma de usá-la.
Folha - É possível reagir a isso?
Vandana - Temos de mudar o sistema de direitos de propriedade intelectual, especialmente o sistema global, o Trips (Acordo sobre os Aspectos Comerciais dos Direitos de Propriedade Intelectual, na sigla em inglês), que dá poder às empresas para
piratear o mundo e transformar o conhecimento dos outros em seu monopólio, ordenando que paguemos
royalties sobre o que era nosso. As
formas de vida e o conhecimento nativo deveriam estar fora da alçada do
Trips, e a biopirataria deveria ser tratada como crime.
Folha - Como a sra. vê o futuro da
agricultura?
Vandana - O meu medo é que a crise
criada pela agricultura industrial -a
disseminação de febre aftosa, a doença da vaca louca e o temor em relação
aos transgênicos- seja usada para
diminuir ainda mais as opções de
agricultura rural nativa e de pequena
escala e deixar a agricultura totalmente nas mãos das corporações. Meu sonho é que tenhamos milhões de pequenos agricultores. E que os jovens
nas ruas de Londres, Davos e Seattle,
que estão buscando uma alternativa,
procurem uma vida com mais significado, mais interação com outros
membros da sociedade e com a natureza... Eu adoraria imaginar que, por
meio da agricultura descentralizada e
sistemas alimentares locais, possamos criar um futuro empolgante.
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