São Paulo, domingo, 23 de setembro de 2001


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ANÁLISE
Terrorismo é uma comunicação política: "América, chegou a hora de descobrires o quão implacavelmen te és odiada"

Medo e repulsa


Uma vintena de canivetes causou meio milhão de toneladas de escombros



O novo inimigo não é nem um estado; a URSS foi derrubada por suas próprias contradições


MARTIN AMIS

Foi o advento do segundo avião sobrevoando a Estátua da Liberdade em baixa altitude: foi esse o instante definidor. Até esse momento, a América achou que estivesse assistindo a nada mais do que o pior desastre aéreo da história; a partir dele, começou a vislumbrar a fantástica veemência que se armava contra ela.




Nunca antes vi um objeto tão familiar tão transtornado pelo efeito. O segundo avião parecia estar ansiosamente vivo, imbuído de maldade, um ser totalmente estrangeiro.
Para os milhares de pessoas que estavam na torre sul, o segundo avião representou o fim de tudo. Para nós, sua passagem veloz foi o flash mundial de um futuro próximo. O terrorismo é comunicação política por outros meios.
A mensagem transmitida em 11 de setembro foi a seguinte: América, chegou a hora de descobrires o quão implacavelmente és odiada. O vôo 175 da United foi um míssil balístico intercontinental disparado contra a inocência da América. Essa inocência, afirmou-se com a mensagem, era uma ilusão anacrônica, um luxo.
Mais de uma semana após o ataque, estamos livres para sentir o gosto de fel da atroz engenhosidade da mensagem. Já virou lugar-comum -mas não deixa de ser necessário- destacar que um roteiro como esse seria motivo de constrangimento para roteiristas ou escritores.
"O que aconteceu hoje não foi crível", foi o comentário de Tom Clancy. No entanto, em plena luz do dia e em plena consciência, esse roteiro virou realidade plenamente aceita: cerca de 20 canivetes causaram meio milhão de toneladas de escombros.

TV
Vários fios condutores da política americana foram invalidados pelos acontecimentos da terça-feira, entre eles o do sistema nacional de defesa antimísseis. Alguém se dera conta de que os céus da América já estavam repletos de mísseis, todos armados e prontos para ser disparados.
O plano era capturar quatro aviões de carreira -no espaço de meia hora. Todos os quatro estariam partindo para a Costa Oeste, garantia de que estariam com os tanques cheios de combustível.
O primeiro se chocaria com a torre norte exatamente na hora em que o dia de trabalho estivesse plenamente engrenado. Em seguida, uma pausa de 15 minutos, para dar ao mundo tempo para reunir-se em volta de seus aparelhos de TV. Com a atenção do mundo garantida, o segundo se chocaria com a torre sul, e, nesse instante, a juventude da América se transformaria em velhice.
Se o arquiteto dessa destruição foi Osama bin Laden, que é engenheiro, então ele certamente saberia algo sobre o grau de impacto que o World Trade Center seria capaz de suportar. Ele também saberia algo sobre os efeitos do combustível inflamado: a 500C (um terço da temperatura que foi de fato alcançada), o aço perde 90% de sua resistência.
Ele deve ter previsto que uma ou ambas as torres iriam desabar. Mas nenhum gênio visionário do cinema poderia ter tido a esperança de recriar a majestosa abjeção daquela rendição dupla, à qual a escala dos edifícios conferiu sua câmera lenta própria.
Além disso, compreendeu-se perfeitamente que uma construção tão manifestamente composta de concreto e aço também se transformaria numa metáfora inesquecível. Aquele momento foi a apoteose da era pós-moderna, a era das imagens e das percepções. As condições do vento também estavam favoráveis; em questão de horas, Manhattan parecia atingida por 10 megatons.
Enquanto isso, um terceiro avião se chocaria com o Pentágono e um quarto seria arremessado contra Camp David (local onde foi assinado o primeiro acordo entre árabes e israelenses) ou, possivelmente, a Casa Branca (mas certamente não contra o avião presidencial: esse boato teve por objetivo desculpar as voltas descritas por Bush naquele dia).
O quarto avião caiu de barriga para cima, não sobre algum marco da paisagem americana, mas na zona rural da Pensilvânia, depois do que parece ter sido a resistência heróica dos passageiros.
O destino do quarto avião teria, normalmente, sido um dos grandes assuntos do ano para a imprensa. Mas não neste ano. O fato de que, nos primeiros dias, era preciso procurar muito para encontrar mais do que uma menção a ele é um indício do tamanho da derrota americana.

Vôo raso
A irmã de minha mulher acabara de levar seus filhos à escola e estava na esquina da Quinta Avenida com a rua 11, às 8h58 do 11º dia do nono mês de 2001 (aniversário do segundo milênio da cristandade). Por um momento, ela imaginou estar numa pista do aeroporto Kennedy. Ela olhou para cima e viu a lustrosa barriga do 767 a poucos metros de sua cabeça.
Há um arco modesto na Washington Square; o vôo 11 da American Airlines, que partira de Boston para Los Angeles, estava voando tão baixo que precisou subir para não esbarrar nele.
Todos nós já vimos aviões se aproximarem de um grande edifício ou dar a impressão de que se aproximam. Ficamos tensos à medida que o impacto imaginado se aproxima, mesmo tendo a certeza de que não passa de uma ilusão paraláctica e que o avião vai seguir adiante. Minha cunhada estava logo atrás do vôo 11.
Ela o instou a se desviar, voltando-se para o amplo céu azul. Mas o avião não se desviou do curso. Naquela tarde, seus filhos lhe levaram água, enquanto ela esperava na fila de um quarteirão de comprimento formada pelas pessoas querendo doar sangue no hospital St. Vincent.
Agora veio a segunda aeronave, e o terror foi revelado -foi dobrado ou quadruplicado. Falamos em "raiva contra aviões", mas era o próprio avião que parecia estar num frenesi, sentíamos, enquanto mirava, se endireitava e então se atirava para dentro da torre sul. Mesmo as chamas e a fumaça eram de uma abundância malévola, com suas tonalidades vampíricas de vermelho e preto.
O assassinato-suicídio de fora passou a duplicar-se por dentro, criando o que talvez tenha sido a visão mais desoladora do dia. Eles chutavam o ar e se debatiam à medida que caíam. Como se fosse possível afastar a queda abismal.
Também você chutaria e se debateria. Você não poderia impedir-se de fazê-lo, assim como não consegue impedir seus dentes de bater quando o frio atinge certa intensidade. É um reflexo. É o que os humanos fazem quando caem.
O Pentágono é um símbolo, o World Trade Center é, ou era, um símbolo, e um avião de passageiros americanos também é um símbolo -da mobilidade e do prazer de viver dos habitantes do país e da galáxia de destinos reluzentes que os esperam.
Os condutores do terror eram moralmente bárbaros, mas conferiram a seu trabalho uma sofisticação demente. Pegaram essas grandiosas criações americanas e as esmagaram todas juntas no mesmo pilão. Descrever os ataques como tendo sido "covardes" não ajuda em nada.
O terror sempre teve suas raízes na histeria e na insegurança psicótica; mesmo assim, precisamos conhecer nosso inimigo. Os bombeiros não tiveram medo de morrer por uma idéia. Mas os matadores assassinos fazem parte de uma categoria psicológica diferente, e sua eficácia na batalha não tem equivalente em nosso campo.
Está claro que eles desprezam a vida. E está igualmente claro que desprezam a morte.
Seu objetivo foi torturar dezenas de milhares e semear o terror entre centenas de milhões. Eles o alcançaram. A temperatura do medo planetário alcançou o grau de febre; o "zunido mundial", para empregar a frase de Don DeLillo, tornou-se audível.
No entanto, o legado mais duradouro da ação tem a ver com o futuro distante e com o desaparecimento de uma ilusão que nutrimos acerca de nossos entes queridos, especialmente nossos filhos. Os pais americanos vão sentir a perda de forma mais aguda, mas nós também a sentiremos.
Os pais precisam sentir que são capazes de proteger seus filhos. Não o são, é claro, e nunca foram, mas precisam sentir que são. O que antes parecia ser mais ou menos impossível -a proteção dos filhos- hoje se configura como óbvia e palpavelmente inconcebível. Assim, de agora em diante, todos nós vamos ter de nos virar sem aquele sentimento necessário.
A terça-feira pode não marcar uma época, e deve ser a tarefa imediata da administração atual impedir que o faça. Vale lembrar que o ataque poderia ter sido infinitamente pior.

Perigo nuclear
No dia 11 de setembro, peritos do Centro de Controle de Doenças correram para o local da catástrofe para testar a atmosfera e ver se detectavam indícios do uso de armas biológicas ou químicas. Eles sabiam que essa era uma possibilidade, e sempre continuará a ser uma possibilidade.
Também há o perigo inteiramente insolúvel representado pelas usinas nucleares inativas da América (nenhuma usina nuclear já foi desmontada, em nenhum lugar). Ataques equivalentes a alvos como esses reduziriam enormes extensões do país a túmulos de plutônio, durante dezenas de milhares de anos.
Há, também, a ameaça quase inevitável de armas nucleares terroristas -possivelmente dirigidas contra uma usina nuclear. Uma das tarefas que Bush e seus assessores não estarão à altura de empreender será compreender que a terça-feira do terror, apesar de toda sua maldade estudada, foi um mero prenúncio do que pode estar por vir. Ainda estamos no primeiro círculo.
Também será terrivelmente difícil e doloroso para os americanos compreenderem o fato de que são odiados e odiados de maneira inteligível. Quantos deles sabem, por exemplo, que seu governo já destruiu pelo menos 5% da população iraquiana? Quantos deles são capazes de transferir essa proporção para a América e ver que o número equivalente seria 14 milhões de pessoas?
Várias características nacionais -a autonomia, um patriotismo mais acirrado do que existe em qualquer parte da Europa Ocidental, uma ausência onipresente de curiosidade geográfica- geraram um déficit de empatia com o sofrimento de pessoas que se encontram distantes.
O que é mais doloroso e mais crucial ainda é que a idéia de que estão certos e são bons é uma base quase tautológica do "eu" americano: os americanos seriam bons e teriam razão sempre pelo fato de serem americanos. O termo que Saul Bellow utiliza para descrever essa característica é a "angelização". Assim, do lado liderado pelos EUA, é preciso não apenas uma revolução conscientizadora, mas uma adaptação da personalidade nacional -o que talvez seja trabalho para toda uma geração.

Consciência de espécie
E do outro lado? É estranho -de repente sentimos o mundo como sendo bipolar. Mais uma vez o Ocidente se confronta com um sistema teocrático/ideocrático irracional e agônico que se opõe à sua existência, de maneira essencial e radical. O velho inimigo era uma superpotência; o novo não é nem mesmo um Estado.
A URSS acabou sendo derrubada por suas próprias contradições e anormalidades, sendo forçada a compreender, nas palavras de Martin Malia, que "o socialismo não existe, e a União Soviética o construiu". Além disso, o socialismo era um experimento modernista, até mesmo futurista, sendo que o fundamentalismo militante ainda se convulsiona na fase medieval final de sua evolução.
Teríamos que esperar enquanto passa por seu renascimento e sua reforma, para, em seguida, ter seu iluminismo. E isso é algo que não vamos fazer.
Então vamos fazer o quê? Terá de haver violência; a América pede uma catarse. Esperemos que a resposta seja, sobretudo, de "caráter não escalatório". Além disso, ela deve espelhar o ataque original, no sentido em que deve ser capaz de surpreender.
Exemplo utópico: a população sofrida e miserável do Afeganistão, no momento em que se prepara para encarar um inverno de fome, seria bombardeada, mas não com mísseis cruise, mas com pacotes de comida marcados "USA".
Pensando em termos mais realistas, a não ser que o Paquistão consiga a entrega de Bin Laden, a retaliação americana quase certamente se tornará enorme, pesada e desajeitada. O terror vindo de cima vai alimentar a fonte de todo o terror vindo de baixo: as chagas ainda abertas. Esse é o ciclo já conhecido e tão bem captado pelo tema e título do conto "Tell Me Who to Kill" (Diga-me a quem matar), de V.S. Naipaul.
A melhor hipótese de destino que temos pela frente, enquanto habitantes do mesmo planeta, é o desenvolvimento de algo que foi descrito como "consciência de espécie" -algo que ultrapassa e se sobrepõe a nacionalismos, blocos, religiões e consciências étnicas.
Durante esses dias de tristeza incrédula, venho tentando aplicar essa consciência e essa sensibilidade. Pensando nas vítimas, nos perpetradores e no futuro, senti tristeza por minha espécie, depois vergonha por minha espécie e, por fim, medo por minha espécie.

Martin Amis, escritor inglês, é autor de "Água Pesada" e "A Informação" (Companhia das Letras), entre outros.

Tradução de Clara Allain


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