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HERANÇA
Enquanto a Europa atravessava a "era das trevas", os países da órbita
islâmica aprimoravam a filosofia, a medicina, a matemática e a astronomia
Época áurea legou avanços na ciência e na cultura
"Meu querido pai, você me pergunta se deve me trazer dinheiro.
Saiba que, quando deixar o hospital, receberei roupa nova e cinco moedas de ouro, o que permitirá que eu não volte a trabalhar
tão cedo. Mas você deve se apressar caso ainda queira me encontrar. Estou no serviço de ortopedia, ao lado da sala de operação.
Para me achar, após atravessar o
portão principal, pegue a galeria
sul. Fica aí a policlínica para onde me levaram depois que eu caí.
Os doentes são examinados nesse
local, quando chegam, pelos médicos assistentes e pelos estudantes. Aos que não precisam ser hospitalizados, é entregue uma receita preparada ao lado, na farmácia do hospital. Assim que o exame terminou, registraram-me e
fui levado ao médico-chefe. Depois disso, um enfermeiro me
transportou para a seção dos homens, me fez tomar um banho e
me deu uma roupa limpa. Então
você deve virar a esquerda junto à
biblioteca e ao grande anfiteatro
onde o médico-chefe ministra
seus cursos... Se ouvir música ou
cantos através da divisória, adentre a sala. É possível que eu esteja
na sala de estar reservada aos
convalescentes, onde a gente se
diverte com música e livros. Esta
manhã o médico-chefe veio, como
de costume, fazer sua turnê,
acompanhado de seus assistentes
e de seus enfermeiros. Depois de
me examinar, deu uma ordem ao
médico responsável por mim. Este
me informou que eu poderia me
levantar no dia seguinte e que em
breve sairia do hospital. Mas saiba que eu não tenho a mínima
vontade de ir embora. Tudo aqui
é tão claro e tão limpo!"
PAULO DANIEL FARAH
DA REDAÇÃO
Essa carta foi escrita há
cerca de mil anos. As instalações descritas não se
encontram em muitos
dos hospitais atuais. No século 10,
a cidade de Córdoba, na Península Ibérica, possuía 50 estabelecimentos hospitalares. Ao contrário dos hospitais europeus, onde
era oferecido conforto religioso
mais que tratamento médico, os
do mundo islâmico eram vistos
como um lugar em que os doentes
podiam talvez ser curados.
Escolas de medicina e bibliotecas se ligavam aos hospitais. Os
alunos aplicavam o que tinham
aprendido na sala de aula no atendimento aos doentes, na ala masculina ou na feminina. No século
11, já havia clínicas móveis, que levavam assistência médica aos que
moravam longe ou estavam enfermos demais para ir ao hospital.
No mesmo período, o Cânone
(Qanun) de Abu Ali al Hussain
Ibn Sina (Avicena) trouxe descrições de doenças e tratamentos. A
obra do médico, filósofo, astrônomo, físico, músico e poeta foi usada nas escolas de medicina durante mais de 700 anos.
O uso da anestesia em cirurgias
foi observado nessa época, assim
como o estudo da ótica. A ciência
da visão combinava conhecimentos de disciplinas muito diferentes: a anatomia do olho e do sistema nervoso óptico foi descrita na
literatura médica; a psicologia da
percepção era uma questão de filosofia; a natureza da luz era abordada pela física propriamente dita. O tratado de Ibn al Haytham
-"A Ótica"- foi traduzido para
o latim e exerceu grande impacto
sobre a ciência européia.
Um dos primeiros tratados farmacológicos foi feito em 760, por
Jabir ibn Hayyan, considerado o
pai da alquimia árabe. A farmacopéia era extensa e incluía a descrição da origem geográfica, das
propriedades físicas e dos métodos de aplicação do que pudesse
ser útil ao tratamento. Os farmacêuticos muçulmanos introduziram vários medicamentos na prática clínica, como a cânfora, o sândalo, a mirra, o mercúrio e outros.
No início do século 9º, as primeiras farmácias particulares foram abertas em Bagdá -os preparados eram disponibilizados
sob várias formas: pomadas, pílulas, elixires, tinturas, supositórios
e inalantes. Na cidade iraquiana,
que foi um grande centro civilizatório ao lado de Damasco e Cairo,
Ibn Barmak inaugurou o primeiro hospital particular em 803.
Arrazi (conhecido na Europa
como Razes) escreveu mais de
cem trabalhos científicos, incluindo a primeira avaliação clínica da
varíola. O debate em torno da ética médica foi outra contribuição
importante de muçulmanos.
Enquanto a Europa atravessava
a "era das trevas", os países da órbita islâmica aprimoravam diferentes áreas da ciência.
Produziu-se um conjunto significativo de literatura científica na
língua árabe, com livros traduzidos do grego, sânscrito, siríaco e
pérsico, além de muitos tratados
originais. O islã serviu como uma
ponte entre a antiga cultura grega
e a chamada Idade Moderna.
Segundo o filósofo palestino
Edward Said, "toda a criação de
uma retórica científica em ótica,
em física e em astronomia, principalmente do século 10 ao século
15, foi invenção dos árabes".
Foram matemáticos árabes que
introduziram na Europa os algarismos indianos (também conhecidos como arábicos) e o conceito
do número zero, fundamental para chegar aos números negativos.
A trigonometria e a álgebra (aljbr)
foram desenvolvidas sobretudo
por adeptos do islã.
Em 875, Muhammad al Khwarizmi (de onde veio o termo algarismo) utilizou uma letra para representar a incógnita. O uso do
"x" vem de "shay" (coisa, em árabe). A classificação de equações
segundo seus graus, por Omar
Khayyam, em 1131, é outra contribuição matemática.
O desenvolvimento dos astrolábios permitiu a confecção de tabelas astronômicas precisas, necessárias a fiéis que precisavam orar
voltados em direção a Meca. Muito antes de Nicolau Copérnico, o
astrônomo Abu Reyhan Biruni
(973-1048) descreveu o sistema
solar com precisão, desafiando os
dogmas que faziam da Terra o
centro do universo. Abu Nasr al
Farabi (872-950), mestre de Biruni e de Avicena, era conhecido como "almuaalem aththani" (o segundo mestre da humanidade
-o primeiro era Aristóteles).
No século 8º, muçulmanos estudaram as mecânicas celestes e elaboraram tabelas astronômicas a
partir do desenvolvimento do astrolábio. Uma teoria embrionária
da gravidade apareceu no Livro
da Sabedoria (1121-2).
Muçulmanos conceberam equipamentos para destilação, evaporação e outros processos no século 9º. No século seguinte, a divisão
entre animais, vegetais e minerais
foi estabelecida. Descreveram-se
substâncias como amônia e ácido
nítrico, e foi realizada a extração
do álcool (do árabe alkuhul).
Todo esse conhecimento transferido de muçulmanos para a Europa foi matéria-prima vital para
a revolução científica.
A primeira palavra revelada ao
profeta Muhammad, dizem os
muçulmanos, foi "Leia" (Iqra').
Entre os ahadith (ditos atribuídos
a Muhammad), há vários que incentivam a pesquisa, como "busque o conhecimento do berço até
o túmulo" e "a tinta do sábio vale
mais que o sangue do mártir".
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