22/10/2001
-
10h11
Em filme, Julio Bressane reafirma idéia de beleza sem fronteiras
INÁCIO ARAUJO da Folha de S.Paulo
Desde os anos 90, os filmes de Julio Bressane deixaram de se preocupar quase exclusivamente com o Brasil e sua cultura. Era assim em "Os Sermões" (89) ou em "São Jerônimo" (99), assim é em "Dias de Nietzsche em Turim". Essa tendência não designa uma nova fase, até porque o que sempre interessou a Bressane no Brasil é o que podemos ter de universal, não o que eventualmente nos particulariza.
Quando, ao contrário, viaja no tempo e, sobretudo, no espaço, como em "São Jerônimo", reencontra seu personagem no sertão brasileiro, ou reconstrói Roma no parque Lage: sinais de um mundo de correspondências, onde tempo e espaço, idéias e imagens viajam sem passaporte.
Existe uma sincronia do mundo, na visão de Bressane, que certamente não acredita em idéias do tipo capitalismo tardio ou periférico para designar o Brasil.
Somos um centro do mundo, de um mundo quem sabe sem centro, e é isso que nos permite ler um autor como Nietzsche e, eventualmente, filmá-lo. No caso de "Dias de Nietzsche", a impressão é que se trata de um filme-manifesto. Para começar, existe o deslocamento geográfico: é fora da Alemanha que Bressane vai encontrar o pensador alemão, em êxtase diante de Turim, de seus costumes e paisagens.
Não por acaso os primeiros textos tratam de sua ruptura com Wagner e o wagnerismo, ou seja: com o romantismo, o nacionalismo germânico, o arianismo, o anti-semitismo. Em resumo, com a idéia de nação.
Nietzsche representa aqui o homem além da particularidade nacional, embora não só: sua aspiração é também romper a barreira do tempo. Certos homens nascem póstumos, dirá Nietzsche em um dos textos reencontrados aqui.
São idéias presentes em mais ou menos todo o cinema de Bressane, que ajudam a compreender, no mais, sua oposição ao cinema novo, corrente que decorre precisamente de idéias como nação, contemporaneidade e urgência.
Se tomarmos "O Mandarim" (95), outro filme recente de Bressane, veremos que a evocação de Mario Reis e dos compositores de sua época (Noel, Lamartine, Sinhô) busca menos reencontrar o Rio de Janeiro e uma época específica do que manifestar a permanência dessa época (tanto que os velhos sambistas reencarnam em compositores contemporâneos).
Assim também com Nietzsche. Estamos em Turim, por vezes. Mas nem sempre. Quando Nietzsche se refere ao êxtase, é uma paisagem carioca que vemos, expressão de uma beleza que não precisa ter sido vista por Nietzsche para impor sua beleza. Ou antes, para conter o belo (que também dispensa passaporte).
Da mesma forma, Nietzsche é o pensador a calhar para um artista, porque um filósofo-artista, poeta, anticristo, dionisíaco por excelência, capaz de se extasiar diante da "Carmen" de Bizet -o filósofo que não procura, acha, o filósofo para todos e para ninguém.
Não será assim que Bressane também se concebe como diretor de cinema? Filme significativo, "Dias de Nietzsche" talvez sofra pela extrema abstração. Cada imagem, cada palavra (ou signo, preferiria seu autor) parece nos remeter a outro lugar. Cada idéia, a outra idéia. Turim pode ser o Rio ou a Índia, Nietzsche pode ser Bizet ou Bressane. O encontro final com a música não deixa de evocar o cinema de Visconti.
Por fim, existe a postulação de uma filosofia experimental por Nietzsche, a designar a filiação do cinema experimental que Julio Bressane sustenta há 30 anos.
Coisa bastante para configurar uma viagem magnífica para os que acompanham a obra do diretor. Coisas demais para não deixar indiferente quem não a segue com constância.
Dias de Nietzsche em Turim Direção:Julio Bressane Produção: Brasil, 2001 Com: Fernando Eiras Quando: hoje, às 14h, na sala UOL
Leia notícias e programe-se para a 25ª Mostra Internacional de Cinema
|
|