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24/05/2000 - 17h09

"Gladiador" é um filme detestável, cínico e desonesto

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da Folha de S.Paulo

Os romanos voltaram. Depois de 40 anos de descrédito, surge nos cinemas um filme "épico", no estilo das aventuras de Ben-Hur, Maciste, Spartacus e companhia. É, como todo mundo sabe, "Gladiador", de Ridley Scott, com Russell Crowe no papel principal.

Depois de enfrentar a indústria tabagista em "O Informante", nosso herói assume o papel de um general romano. Por pouco tempo. Escravizam-no. Torna-se gladiador em arenas mambembes. Seu talento é tamanho que obtém sucesso em Roma. Quer vingar-se do imperador. Luta, como todo escravo americano, por justiça.

Não conto mais do filme. É um produto violento, cínico e enfático, lacrimoso, kitsch e desonesto. O diabo é que a máquina da propaganda hollywoodiana funciona mais uma vez. Dá vontade de ver "Gladiador", e a gente vai ver não porque sinta falta de corridas de biga e homens de saiote, mas porque Hollywood sente falta disso e, então, mobiliza sua máquina publicitária.

A revista "Veja" dedicou páginas e páginas à proeza colossal de "Gladiador". Se não era propaganda, a matéria funcionou como se fosse.

Talvez a burrice seja empolgante. Voltar às cenas de gladiadores equivaleria, para o crítico que gosta de "Batman", de "Star Trek" e deste último golpe de Hollywood, a um reencontro com a inocência perdida. Logo, quanto mais inocente for o filme, melhor: elogiá-lo constará como atestado de pureza, como suave infantilismo por parte do crítico.

Acontece que "Gladiador" não é um filme inocente nem "pura diversão", frase que funciona como pretexto para quem quer idiotizar-se sem culpa.

O crítico Roland Barthes escreveu, nos idos de 50, um artigo muito agudo sobre os romanos no cinema. Analisava o "Júlio César" de Mankiewicz. Implicou com as franjinhas que todo ator usava.

Para Roland Barthes, aquelas franjinhas na testa não eram "reais". Todo ator, mesmo sem muito cabelo, usava franjinhas porque, na pobre mentalidade de Hollywood, aquilo era um signo da "romanidade". Um filme convencional como o de Mankiewicz estava obrigado a dizer, todo o tempo, que a história se passava em Roma, na época dos césares. O estereótipo era ridículo; cada franja funcionava como placa de trânsito, indicando que tudo era "romano".

Hollywood sofisticou-se bastante desde que Barthes escreveu esse artigo. Hoje em dia, os estereótipos lamentáveis de "Gladiador", suas franjinhas e sua "romanidade" deixam de referir-se a uma "Roma" de manual de história.

Referem-se à "Roma" de Hollywood. "Gladiador" repete os clichês do cinema "épico", aludindo ao passado do próprio cinema. Usa tons de sépia, joga com o preto-e-branco, numa indicação de que sabe o quanto de "retrô" está pondo em cena.

Como se soubesse das críticas de Barthes, "Gladiador" americaniza brutalmente a cena romana. Russell Crowe é pouco mais do que um homem de Marlboro, nostálgico de sua pequena fazenda no Meio-Oeste dos EUA, onde correm cavalos pelos descampados. Sua motivação vingativa é a de um caubói; tudo é americaníssimo nesse filme que ironiza por conta própria a "romanidade" denunciada por Barthes em tempos mais inocentes.

As flechas incendiárias contra os bárbaros, velocíssimas, evocam os mísseis da guerra do Iraque pela CNN. O problema de Russell Crowe é menos o de vencer a luta contra os bárbaros do que o de conquistar o público do Coliseu. Já em Roma, portanto, predominava a sociedade do espetáculo. Mais vale ser simpático à platéia do que cuidar da saúde republicana.

Lutar por Roma, diz alguém no filme, "é lutar por uma idéia...". Nada mais coerente com os bombardeios e intervenções do império americano. "Gladiador" tenta conciliar as figuras do civismo imperial com o belicismo "heróico" de uma América que se esquece do Vietnã.

Como ninguém mais acredita na inocência americana, esse filme faz ironia aos velhos épicos de Hollywood. Mas sua ironia reafirma, de modo odioso, os "valores" _justiça, democracia_ em torno dos quais está a girar o mais louco, o mais fantasioso, o mais benigno e nocivo sistema de dominação sobre o mundo.

Nesse sentido, é um filme ambíguo. Defende ideais republicanos, jeffersonianos, fundados na virtude do pequeno agricultor. Esses se traduzem vagamente numa "grandeza de Roma", numa "idéia de Roma", que Russell Crowe defende com sanguinolência. O lado bélico e idealista do filme contrasta, todavia, com os recursos do cinismo e da alusão.

Tudo se torna irônico quando os próprios romanos estão conscientes de que tudo é espetáculo, de que tudo é pão e circo e de que conquistar midiaticamente a plebe romana, por meio de heroísmos na arena, significa a salvação do herói e da cidade.

O filme se fecha, assim, na própria glorificação do cinema, do espetáculo. A falsidade denunciada por Roland Barthes se torna verdade. "É mentira mesmo": eis o que afirma galhardamente essa superprodução. A "América" sempre será uma idéia democrática, a ser imposta com massacres reais ou cinematográficos. Confiante na farsa que encena, "Gladiador" transforma a ironia em cinismo, rola na ideologia mais cansativa.

Mas o fato de não ter novidade nenhuma, de apostar no reconhecível e no passadista, é saudado como originalidade. O círculo se fecha como uma arena hedionda. Esse filme é detestável.
 

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