Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
29/10/2001 - 14h16

Autor britânico fala sobre relação entre teatro e Estado

Publicidade

VALMIR SANTOS
free-lance para a Folha de S.Paulo

Na Grã-Bretanha, ele é equivalente a Augusto Boal, no Brasil, ou a Dario Fo, na Itália. Pouco conhecido entre nós, o dramaturgo Edward Bond dedica-se há mais de três décadas ao pensamento político-social voltado para as relações contemporâneas entre cultura e sociedade, sempre tomando como perspectiva o teatro.

Um dos autores mais engajados da cena britânica desde os anos 70, Bond participa hoje do seminário "O Teatro e a Cidade", no Centro Cultural São Paulo.

Autor de peças como "Saved" (65) e "Bingo" (73), ele envereda ainda pelo campo da poesia e do ensaio -pertence a essa categoria sua publicação mais recente, "The Hidden Plot: Notes on Theatre and the State" (2000), que norteia a conferência e os melhores trechos da sua entrevista à Folha.

GRÉCIA

Fundadores do nosso teatro, que perpetuaram à base do questionamento da humanidade e de sua criação, os gregos não faziam distinção entre drama e religião. Eles viram que o drama era um processo "ficcionalizante" a partir do qual os humanos criam a realidade.
O drama realmente se dá sobre o "desembaraçamento" de duas realidades: a material e a imaginária. Essa é tão real, conduz a significados tão reais como a material. Shakespeare disse que "o mundo é um palco". Ele deveria ter dito algo como "todas as sociedades são palcos".

"AUTOCRIAÇÃO"

Claramente, a natureza mutável do drama permite e promulga o desenvolvimento do autoconhecimento humano. Nós somos "autocriadores" e temos de criar modelos de nós mesmos (ruídos de nossos passos) não abstraindo-os, mas expondo os problemas.

Um carro não precisa projetar-se e depois fazer-se de acordo com o desenho. Mas isso é exatamente o que ocorre aos seres humanos: eles desenham a si mesmos -sobretudo nos planos político e tecnológico, além de outras formas de drama. Essa projeção é também um ato de criação. Constantemente nos reduzimos à condição de máquinas ou animais, e como é impossível descrever os problemas humanos, inventamos deuses.

DEUS-MERCADO

O mercado global começa por padronizar seus produtos, depois passa a padronizar seus consumidores. Na medida que a humanidade é criada, a economia global pode intervir na criação. Ela está no caminho que a Igreja e o Estado seguiram no passado. O ser humano global padronizado será uma espécie de engenhoca, ficará detido em vastas conglomerações de tecnologia. Será um ser humano sem sentido interior. Mas há uma limitação: não somos máquinas (só podemos fingir que somos) ou animais (só podemos imaginar que somos).

MEDO

Uma criança nasce com a consciência de ser no mundo. Sua mente não pode funcionar a não ser que acredite que tenha o direito de estar no mundo. Esta é a origem do desejo -e atual necessidade- por justiça. Isso é distorcido pela ideologia, e assim a justiça universal transforma-se, restringindo noções de patriotismo, nacionalismo e filiação a uma classe ou religião.

Todas as crianças nascem iguais, todos os adultos vivem em prisões -seja dentro ou fora, mas perto delas. E aqueles que vivem fora vivem na prisão do medo. Em nossas sociedades há uma noção de que você vai preso para ser livre, em que o crime chega a ser um ato de bondade. Eu não digo isso no sentido romântico, mas faz parte do paradoxo da nossa confusão humana.

JUSTIÇA

Ultimamente, o teatro é a criação da justiça, não meramente em sua particularidade ou em determinações históricas, mas na retomada da necessidade de justiça. Justiça é o pão do pensamento, mas sua necessidade pode se converter em vingança. Essa é a causa da miséria no mundo atual.

Só o drama pode desemaranhar a complexa realidade dos atos humanos, e também só ele pode criar justiça. Como os gregos sabiam, esse é o propósito do drama. Eis o motivo de Atenas, o primeiro esforço de democracia formal, haver criado o teatro.

NOVO TEATRO

Temos de tornar o teatro novamente importante. Isso é vital após o 11 de setembro de 2001. Não é uma questão de fazer descobertas científicas sobre os seres humanos ou conquistar forças armadas e policias mais eficientes. Temos que recriar a humanidade. Isso significa uma época política totalmente nova. No passado, falávamos de direitos humanos. Os nazistas, contudo, tinham direitos humanos, a obrigação humana, de eliminar com gás seus inimigos. Enfim, temos de dizer que qualquer um tem o direito de ser humano, só isso.

DESUMANIDADES

Ser humano é um esforço histórico. Parece um exagero dizer que o nosso futuro pode depender de algo como o teatro, mas é assim. O drama formal é essencial, uma expressão básica do ser humano, que começa a se refletir em todo o processo de dramatização do indivíduo e da comunidade.

O drama não é auto-expressão, não é uma expressão da "arte". É uma expressão da nossa inquieta e fraturada humanidade. É inquieta e fraturada porque herdamos as injustiças do passado. É uma verdade chocante não nascermos humanos -e realmente muitas vezes herdamos desumanidades de nossos familiares. Possivelmente começamos a nos tornar humanos porque nascemos com inocência radial.

O drama é a expressão da necessidade de nos tornarmos humanos, porque representa nossa inocência. Assim, uma nova época criará um novo direito. Isso quer dizer: qualquer um terá o direito de ser humano. É o que deve tornar o drama importante novamente. Caso contrário, todo dia será o 11 de setembro.
 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página