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04/12/2001 - 03h49

"Para Ler o Pato Donald" foi um dos maiores ataques ao império Disney

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ALCINO LEITE NETO
da Folha de S.Paulo, em Paris

Se o século 20 foi americano, ele também foi o século de Walter Elias Disney. O aumento progressivo do poder dos EUA sobre o mundo caminhou par a par com a influência que o criador de Mickey exerceu sobre o
imaginário de gerações e gerações.

Amanhã, faz cem anos que Disney nasceu. A cultura de massa e a indústria de entretenimento americanas lhe devem quase tudo. Ele fixou a forma moderna e o modelo industrial dos desenhos animados. Desenvolveu como nunca se tinha visto o marketing das histórias em quadrinhos.

Materializou a ficção em parques de divertimento construídos nos EUA e na França. Inventou um império econômico baseado na fantasia, que rende hoje cerca de US$ 20 bilhões por ano.

Contam que Stálin chorava ao ver "Bambi". Mas Disney foi, e ainda é, um dos personagens americanos mais odiados pela esquerda. Tanto por sua delação de esquerdistas em 1947, durante os processos da Comissão de Atividades Antiamericanas, quanto por colocar suas criações a serviço do "american way of life" e como propaganda da política dos EUA.

Um dos ataques mais fortes da esquerda ao império Disney foi feito pelo belga Armand Mattelart e o chileno Ariel Dorfman em "Para Ler o Pato Donald" (lançado no Brasil pela Paz e Terra). O livro foi escrito há exatamente 30 anos, no Chile, durante o governo do socialista Salvador Allende. Em 1973, um golpe liderado pelo general Augusto Pinochet depôs Allende. Mattelart e Dorfman se exilaram, o livro foi banido do Chile, mas se transformou em leitura obrigatória em vários países, inclusive o Brasil.

Mattelart e Dorfman examinavam como os personagens de Disney reproduziam a lógica capitalista, onde o dinheiro e a acumulação tinham papel predominante nas relações "interpessoais" entre os personagens, e como as histórias promoviam o imperialismo americano, ao caracterizar os povos estrangeiros como atrasados, tribalizados, ingênuos e/ou espertalhões. "O livro era um panfleto. Mas a relação de dominação no mundo, entre centro e periferia, tal como a examinamos, permanece válida", diz Mattelart, 65, na entrevista abaixo, feita em Paris, onde ele vive.

Dorfman é hoje um famoso escritor e dramaturgo, autor de "A Morte e a Donzela" (Paz e Terra), e "Terapia" (Objetiva), entre outros. Mattelart tornou-se um prestigiado teórico de comunicação.

Estudou as novelas brasileiras em "O Carnaval das Imagens" (com Michele
Mattelart, ed. Brasiliense) e dedicou-se a examinar os laços entre a comunicação e o processo de mundialização econômica, em livros como "Comunicação-Mundo" (Vozes) e "A Globalização da Comunicação" (Edusc). Em janeiro, estará lançando no Brasil, pela Sulina, "A História da Utopia Planetária".

Folha - Fazem 30 anos que o sr. publicou "Para Ler o Pato Donald". O que ainda é válido no livro e o que precisaria ser revisto?
Armand Mattelart -
"Para Ler o Pato Donald" é um livro de circunstância. Era um panfleto, que escrevemos em condições muito particulares no Chile, ou seja, quando já havia três anos da Unidade Popular, o regime de Salvador Allende. Paralelamente à pesquisa de outros modelos de cultura de massas, de revistas para crianças, jovens e mulheres, nós elaboramos uma crítica dessa forma de expressão.

Pois bem, apesar disso, eu creio que há uma coisa que ainda é válida no livro, que é o capítulo que fala sobre subdesenvolvidos e o bom selvagem. Ele mostra como os patos saem da metrópole e chegam em países que se chamam, por exemplo, Aztecland. São lugares que se pode identificar [no caso, o México", mesmo se se trata de ficção. E, nestes países, os personagens estabelecem sempre uma relação de dominação.
Justifica-se o roubo das riquezas porque o bom selvagem não sabe o valor das coisas. A relação de dominação no mundo, entre centro e periferia, tal como a examinamos no livro, permanece válida.

Folha - O sr. acha que nada mudou nestas relações desde os 70?
Mattelart -
Elas evoluíram, digamos. O mundo hoje é multipolar. Mas o que vemos em um período de guerra como agora? O problema hoje não é que a relação de dominação tenha mudado, mas que os Estados Unidos sejam, como nas palavras de Bill Clinton, a superpotência solitária. O que é surpreendente é que haja uma história de violência, na Ásia ou na América Latina, desde a década de 60, e que os americanos não tenham se tocado que a sua ação e intervenção produzem danos a milhões de pessoas. Foi preciso um ataque ao país para eles se perguntarem: por que nos odeiam tanto?

Folha - O sr. acredita que os americanos continuam tendo uma visão fantasiosa dos povos estrangeiros, como nas histórias em quadrinhos de Disney?
Mattelart -
Provavelmente, como grandes ingênuos. E hoje eles reagem também como ingênuos, nesta espécie de roteiro de faroeste que é a cruzada contra o jihad. Eles continuam não se dando conta que há um conjunto de povos que foi explorado e que continua a sê-lo por um modelo de crescimento mundial que deixa à margem 80% da população mundial. O que não quer dizer, evidentemente, que se possa estar de acordo com esse tipo de atentado que tirou a vida de mais de 5.000 pessoas em Nova York.

Folha - Mas os personagens de Disney não se tornaram ingênuos, se forem comparados aos novos personagens infantis, mais violentos, ou aos videogames?
Mattelart -
Sim. Creio que são personagens que foram muito marcados pela história, mas o problema não está aí. O que importa é que o seu universo se tornou um signo de reconhecimento mundial, no plano do imaginário infantil. Disney é o primeiro produto transnacional para crianças. Os personagens parecem ingênuos, hoje, mas isso não impede de ver o tipo de divertimento que eles representam. Para muitas crianças, é um imaginário que se naturalizou, em nível maciço.

Folha - A que o sr. atribui a longevidade dos personagens de Disney?
Mattelart -
Digamos que eles se revificam e se revitalizam a cada vez em outros suportes, como nos filmes e nos parques. Em Paris, a Eurodisney costuma ter quase o dobro de visitantes que a Torre Eiffel e o Museu do Louvre.

Folha - O fascínio exercido pela cultura de massas é um fato ideológico, psicológico ou religioso?
Mattelart -
Os três ao mesmo tempo. Quando escrevemos "Para Ler o Pato Donald", eram os produtos americanos que faziam os laços entre os diferentes países, sobretudo na América Latina. Nos domingos à tarde, sempre havia uma programação americana, de Disney inclusive. O que houve, contudo, foi uma "alfabetização" do imaginário, como dizem os publicitários. Hoje, tudo isso mudou. No Brasil, por exemplo, existe uma forte programação nacional. E já entramos em outra fase. O que se prepara agora é a mercantilização da educação. As universidades são mais e mais solicitadas pelas empresas. Se se deixa as universidades se privatizarem progressivamente, é evidente que se chegará também aos poucos à alienação da educação.

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