Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
29/12/2001 - 06h00

Livro épico mostra anti-heróis à procura da América Latina

Publicidade

SYLVIA COLOMBO
da Folha de S.Paulo

Em "A Tempestade" (1611), Shakespeare fala de uma ilha imaginária controlada pelo sábio Próspero, que tem como serviçais Ariel -um espírito dos ares- e Caliban, ser bruto cujo nome seria um anagrama de "canibal" (ou uma corruptela de "caribbean").

Apesar de controvérsias, para muitos intelectuais, Caliban foi tomado como uma metáfora da América Latina, dominada pela força e pela língua de Próspero.

O pernambucano Marcus Accioly, 58, não hesita em identificar-se com esse símbolo. "Fui sempre Caliban", diz, em "Latinomérica".

Com mais de 600 páginas, o texto de Accioly é um poema único, um épico que atravessa a história do continente desde tempos pré-colombianos até hoje. A obra, que levou 20 anos para ser concluída, acaba de chegar às livrarias, numa co-edição da Topbooks com a Fundação Biblioteca Nacional.

Accioly -que já tem 13 livros publicados e traduções para o espanhol, francês e alemão- tem admiradores entre os mais ilustres homens de letras do Brasil.

A apresentação da obra, por exemplo, é de João Cabral de Melo Neto (morto em 99), e já haviam lhe derramado elogios, entre muitos outros, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado, Wilson Martins e Gilberto Freyre.

Accioly mostra como a língua do dominador serviu aos poetas em sua busca por restituir o "cânon perdido".

Para ele, os cantos e sons da América pré-Conquista foram destruídos pelos conquistadores e o destino de todo poeta seria reconstruir essa linguagem desaparecida a partir da nova realidade. Exemplifica com Walt Whitman ("Agora o artista solta sua coragem, ele já tocou seu prelúdio nas flautas dentro de si").

O texto utiliza a oitava rima "camoniana", em decassílabos, "um retorno à tradição épica da língua portuguesa". Parênteses são recurso recorrente e criam uma segunda leitura, além de viabilizar citações.

Mas, em vez de dividir sua epopéia em cantos, Accioly o faz em "rounds", como no boxe. Boxe? Isso mesmo. Cada fase apresenta um "lutador" diferente que assume as luvas para enfrentar o "inimigo comum", a colonização e a neocolonização.

Accioly conecta poetas, escritores, heróis e, especialmente, anti-heróis latino-americanos. Acidentes geográficos não ficam de fora, interagem com o poema arquipélagos e cordilheiras.

A narrativa segue uma linha principal: o herói-poeta sai em busca de seu pai (o conquistador). Não encontrando-o, volta-se para a mãe (a América). A América teria, então, como destino, ser violada, primeiro pela sanha do pai e depois pelo amor do filho.

Leia os principais trechos da entrevista que o poeta, nascido num engenho no Vale do Siriji, norte de Pernambuco, deu à Folha.


Folha - Sua obsessão pelo todo vai de encontro à fragmentação cultural que marca o momento que vivemos. Acha que o pan-americanismo é uma utopia?
Marcus Accioly - Drummond sinalizou o fragmentarismo do nosso tempo: "Este é tempo de partido/ tempo de homens partidos". Sim, somos pedaços, detalhes, partes do grande quebra-cabeças que é o homem e que ainda não conseguimos armar. Como diria Eduardo Portella, não somos globais, estamos globais.

Quanto ao "pan-americanismo", que remonta ao diplomata brasileiro Alexandre de Gusmão, ou ao "bolivarismo", que pretendia "formar de todo o Novo Mundo uma única nação", não creio que tais princípios sejam utopia. Como o futuro é dos poetas ou dos loucos, continuo acreditando. Minha obsessão pelo todo vislumbra um tempo sem partido, um tempo de homens inteiros.


Folha - Você apresenta a língua como um dos nossos paradoxos. No seu modo de entender, Caliban e Malinche são "traidores"?
Accioly - A língua é a mais forte resistência humana. Digo sempre que a língua é uma raiz que vem do ventre, é um cordão umbilical que liga à mãe. Porém, cortadas as línguas primitivas, o nosso idioma vem do pai. Pela língua somos unidos e estamos separados. Somos unidos como Caliban, que aprendeu a língua de Próspero para amaldiçoar o colonizador. Estamos separados, como a Malinche, que aprendeu a língua de Cortés para trair e entregar seu povo ao alienígena.


Folha - O conceito de "realismo mágico" foi tão disseminado que acabou servindo para abarcar vários tipos de experimentalismos. Para onde caminha a literatura latino-americana?
Accioly - Utilizo, com respeito à poesia épica, a expressão realismo-épico para combater não o realismo mágico, mas expressões, como as de Miguel Ángel Asturias, de que "a literatura latino-americana irá florescer, mas não em versos". Afinal, contradizendo isso e incluindo o próprio Asturias, dos seis escritores que receberam o Nobel na América Latina [Gabriela Mistral, Miguel Ángel Asturias, Pablo Neruda, García Marquez, Octavio Paz e Derek Walcott", cinco são poetas.
Talvez pelo mal do tempo ou pela pressa da comunicação, uma boa parte da poesia aqui tem virado prosa, e a prosa, jornalismo. Mas aposto que este início de milênio vai trazer um novo Renascimento, em que o homem e o canto poderão voltar a ser inteiros.


Folha - Você diz que "na América Latina não há heróis sobreviventes, mas anti-heróis exterminados". Acha que, aqui, o engajamento do escritor é inevitável?

Accioly - Suponho que, na Europa, um autor pode tratar, sem remorso, só das questões do espírito -como, aliás, fez a poesia inglesa do século 18. Na América Latina, o poeta é obrigado a lidar com os problemas da selva e da cidade, do sofrimento e da injustiça, a miséria e a violência, em detrimento dos grandes temas metafísicos. Por isso dividi o livro em rounds, como uma luta de boxe.

LATINOMÉRICA - De: Marcus Accioly. Editora: Fundação Biblioteca Nacional e Topbooks. Quanto: R$ 49 (620 págs.).



 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página