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12/01/2002 - 03h51

"A loucura une toda minha obra", diz Hilst

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CASSIANO ELEK MACHADO
da Folha de S.Paulo

Leia a seguir trechos de entrevista com a escritora Hilda Hilst.

Folha - O comediante norte-americano Groucho Marx dizia que não gostaria de frequentar nenhum clube que o aceitasse como sócio. Como você se sente "frequentando", com a reedição de sua obra pela Globo, um grande clube?
Hilda Hilst -
Você sabe que quando vem tão tarde como veio, a gente não sente muita alegria mais. Se fosse aos 30 anos, quando eu era linda, aí eu podia entender, mas quando você já está velha, com 70 anos, fica tudo muito sem graça. Mas, ainda assim, devo dizer que fiquei surpresa. Eu nunca achei que iam me ler mesmo. Não sei por quê. Tinha alguma coisa grave que eu não podia explicar. Eu achava que eu escrevia de modo simples e que era um absurdo não me entenderem.

Folha - Foi por isso que você começou a escrever, nos anos 90, as obras "pornográficas", tidas como mais fáceis?
Hilst -
Achei que seria gostoso se as pessoas rissem, porque nunca riam de mim. E foi delicioso. Diziam que eu era difícil. Fizeram até teses dificílimas sobre mim. Esta semana mesmo veio aqui uma moça e disse: "Puxa, a Hilda Hilst mora aqui? Na Unicamp, ela é considerada uma deusa".

Podem achar que sou deusa, mas nunca ganhei nem grana, nem título de notório saber, como uma amiga minha. A única coisa que ganhei na vida foram várias tartarugas (estátua do Prêmio Jabuti). Queria mesmo era o Nobel.

Folha - Muitos artistas e escritores têm pudor em falar bem de seus próprios trabalhos, mas você sempre exaltou a sua obra. Por quê?
Hilst -
Sempre me achei impressionante. Tudo o que eu escrevo é bom demais. Não sei por que dizem que não entendem nada.

Folha - Você relê seus livros?
Hilst -
Ultimamente tenho relido algumas coisas, principalmente por causa das reedições.

Folha - Você se arrepende de algo que escreveu? Você pediu para que alguma de suas obras ficasse de fora de suas "Obras Completas"?
Hilst -
Não, não tenho nenhum texto renegado. Gosto de tudo.

Folha - E qual o que você tem mais prazer em reler?
Hilst -
Gosto tanto de quase todos que é difícil escolher um particular, mas eu acho que talvez eu diria o "Qadós". Parece que todo mundo achou esse livro chato. O brasileiro não lê nada, picas.

Folha - Por isso que você parou de escrever, como vem declarando?
Hilst -
Na verdade até escrevo, mas eu acho que são coisas muito complicadas. Estou fazendo um livro que deve chamar "O Koisa". "O Koisa" é exatamente o caroço de azeitona que está na empada. Ninguém sabe o que falar sobre um caroço de azeitona.

Eu escrevo: "Entrei dentro da empada/ à meia-noite, e, em seguida/caguei o grãozinho negro/ dentro da privada de âmbar/ comecei a cantar o canto chulo de amoras negras/ mas belo, coloquial e absurdo/como é a vida".

Folha - "O Koisa" vai ser um romance? Eu vi uma entrevista sua em que você dizia que ficava muito chateada de nunca ter feito um romance tradicional: começo, meio e fim. Você ainda se arrepende?
Hilst -
Eu não consigo. Eu assistia muito às novelas na TV por causa disso, eu tento ler coisas mais simplificadas, para ver se aprendo a ser simples, mas eu nunca consegui. Em "O Koisa" eu tentei, mas ele é tão complicado que quase ninguém vai entender.

Folha - Hilda vou te fazer uma pergunta difícil.
Hilst -
Difícil eu gosto.

Folha - Eu queria saber se tem algum elemento comum que você enxergue em toda sua obra, seja nas poesias, no teatro, na prosa.
Hilst -
A loucura. A tentativa de fazer uma coisa louca e boa. Eu tenho muito a ver com tudo isso, porque eu acho que o meu pai, que era louco, era deslumbrante. Ele era um gênio. Em 1920, por exemplo, dizia que o casamento é uma imoralidade porque faz do que nós temos de mais puro, o amor, uma coisa legal, isto é, pública e indecente. Ele publicou isso nos jornais de Jaú (SP).

Acho que ele ficou louco pela sua genialidade. Louco varrido. Teve uma vida terrível. Passou em montanhas de manicômios.

Folha - Você teme a loucura?
Hilst -
Tive muito medo, eu nunca quis ter filhos por causa disso. Medo de que meu filho fosse esquizofrênico, como meu pai. Ainda tenho medo de ficar louca.

Folha - Mas dizem que as pessoas que têm medo de ficar loucas geralmente não ficam, não é?
Hilst -
Graças a Deus.

Folha - Você fala sempre em Deus, mas também em imortalidade. Nos anos 70, você diz que gravou a voz de mortos.
Hilst -
Imortalidade é minha maior crença. Já vi muitas pessoas que morreram. Outra vez eu vi meu pai. Cada coisa que eu tenho para contar. Mas não vou falar mais que pode fazer mal.

Folha - E por outra imortalidade, a da Academia Brasileira de Letras? O escritor Sérgio Sant'Anna disse que, se pudesse indicar alguém para a ABL, seria você, para "animar, erotizar e espiritualizar as sessões" Você aceitaria o convite?
Hilst -
Não. Não sou ligada a essas coisas de Academia. Eu não tenho a menor vontade. Além disso, às vezes penso que posso um dia ser conhecida mais no mundo do que aqui, apesar de que para escritor brasileiro isso é difícil. Nem o Jorge Amado ganhou o Prêmio Nobel. Só aquele português, o Saramago, por quem não fico nada entusiasmada.

Folha - Quem te entusiasma?
Hilst -
Os ensaios do George Bataille e o Guimarães Rosa.

Folha - Você considera Rosa o seu "duplo", como já disseram?
Hilst -
Não sei, mas posso dizer que ele era muito meu amigo. Eu dizia a ele: Guimarães, você é ótimo, é lindo, mas você nunca vai ser traduzido porque você escreve cada coisa. Ele respondia: Acredite, eu vou ser, Hilda. E logo começaram a traduzir "Grande Sertão: Veredas" para tudo que é língua. E a tradutora do "Grande Sertão", Maryvonne Lapouge, acabou sendo minha tradutora para o francês, veja só. Incrível.

Folha - Falando em coisas "incríveis", quando você começou a juntar tantos cachorros em sua casa?
Hilst -
Eu sinto muita compaixão dos cachorros pelo fato de eles não conseguirem se expressar. Eu moro na mesma casa há 35 anos. Sempre jogaram cachorros abandonados aqui. Eu ficava com pena e pegava. Acho que é o problema que eu tenho, o fato de eu mesma ter sido, por meu pai ter ficado louco, abandonada.

Folha - Você...
Hilst -
Chega. Boa noite, ouviu? Tchau. Cansei.
 

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