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20/07/2000 - 03h56

João Gilberto: "Não ser feliz tudo explica"

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da Folha de S.Paulo

Terça-feira, 11 de julho

Às 21h, o artista se veste. Como o Grec é ao ar livre, decide não colocar gravata. Passa Benguay, um unguento muscular, nas pernas e coloca uma ceroula para que o creme não passe para o pano da calça azul-marinho, da mesma cor do paletó. Calça um par de tênis brancos que seu filho João Marcelo lhe deu de presente.

Sai da suíte pouco antes das 22h, e 20 minutos antes do horário marcado já está no camarim do Grec. Fica sozinho, concentrado. Enquanto isso, Pequinho e Octavio Terceiro fixam com fita adesiva sete cartolinas no chão do palco, ao redor do banquinho onde João Gilberto sentará. Nelas estão escritos os nomes das músicas que o artista interpretará.

"Eis aqui esse sambinha feito de uma nota só", canta o artista. São 22h30 em ponto e o show está começando. Canta em seguida "Sandália de Prata". Ao final, pede que aumentem o volume do violão. Quatro músicas depois, muda o banquinho de lugar. "Está vindo um vento de frente", explica ao público. Mais quatro músicas e reclama do microfone do violão: "Nunca vi um como esse, parece um helicóptero".

Uma hora e 15 minutos depois, o artista sai do palco. É ovacionado, volta e canta por mais 15 minutos. O público o aplaude e pede que volte. O artista, no entanto, saiu correndo, entrou no Mercedes e já está no hotel enquanto a audiência ainda grita "bis".

De volta à suíte, sua primeira providência foi telefonar para sua irmã Dadainha, que mora em Vitória. Sempre faz isso, onde quer que esteja. Ela aguarda o telefonema de velas acesas, rezando para que o show tenha sido bom.

No entender do artista, o concerto não foi bom. Mesmo nos dias seguintes, depois de cinco jornais espanhóis terem publicado críticas extremamente elogiosas do primeiro show em Barcelona, manterá a sua opinião. "O violão estava baixo. Ele tinha de estar em torno da voz, formando um todo com ela", diz.

Ele liga para o serviço de quarto e encomenda talharim e filés para todos. Pede que Joaquim escolha o vinho. O garçom traz um Rioja engarrafado especialmente para o hotel. "Escândalo", diz o artista ao provar o vinho, fazendo um brinde a Joaquim.

Toca o telefone. É Paul Berdah, um francês nascido na Tunísia que veio de Paris para ver o show. Formado em odontologia, ele é amigo de João Gilberto há dez anos, se bem que nunca tenham conversado pessoalmente. A amizade deles é telefônica. Ao ouvir o artista cantar e tocar pela primeira vez, Berdah desistiu de ser dentista. Tornou-se jornalista, especializou-se em música brasileira, aprendeu português e violão unicamente com o intuito de entender melhor a arte do artista.

Berdah estava acompanhado por seu irmão mais novo, Jean-Jacques, também ele fascinado pela música de João Gilberto. Ambos acharam o show excelente, mas concordam que o violão estava baixo. Paul Berdah se prontifica a ir no dia seguinte corrigir o som do teatro Grec.

João Gilberto chama Berdah para ver o que há no criado-mudo à direita da cama: uma foto emoldurada de sua mãe, fotos e dois livros do guru Paramahansa Yogananda, morto em 1952, uma imagem de santa Clara e uma Bíblia.

Como o artista, Berdah é iogue. João Gilberto conta como descobriu Yogananda. Ele vivia em Nova York com "uma mulher que gostava de sair de casa". Num sábado, ela o convocou a passearem pela Broadway, "como se isso me fosse fazer mais feliz", conforme diz. "Mas me lembrei do trecho da Bíblia em que está dito que, se te obrigarem a andar cinco léguas, ande sete. Fiz então força da minha fraqueza e fui à Broadway".

Lá, entraram numa livraria. A mulher pegou um exemplar da "Autobiografia de um Iogue", de Yogananda, e leu alguns trechos em voz alta. João Gilberto interessou-se e comprou o livro. Passou a seguir os ensinamentos do guru. Depois, já no México, encontrou uma mestra que havia estudado com Yogananda. Foi ela quem o iniciou na krya yoga.

O artista acha que a krya yoga de Yogananda o ajudou a encontrar-se, ou a reencontrar-se. "Antes de ir para a América, eu não falava sobre assuntos. Não criticava nem atores canastrões. Ficava quieto enquanto todo mundo metia o pau neles porque entendia que eram seres humanos fazendo o melhor que podiam. Na América, eu mudei. Com Yogananda, voltei a concentrar-me. Aprendi com ele que o temperamento é uma doença: não é preciso ter temperamento, basta ser".

João Gilberto encerra a conversa sobre a krya yoga ciente de que há limites para explicá-la. Usa duas citações. Uma, de Lao-tsé, o legendário filósofo chinês: "Quem sabe não o diz; e quem diz não o diz". A segunda, tirada do poema "A Mesa", de Drummond: "Não ser feliz tudo explica".

Quarta-feira, 12 de julho

"Odete, ouve o meu lamento, lamento de um coração magoado" -João Gilberto está abrindo o segundo show no anfiteatro Grec com um samba de Herivelto Martins dos anos 40 que nunca gravou. Termina de cantar, Paul Berdah se aproxima e pergunta se precisa mexer no som. Não, não é necessário. O artista está feliz. Só fala uma vez: "Essa é a cidade mais bela do mundo, e eu peço a Deus que ajude a me aproximar dessa beleza".

Depois do show, no hotel, o artista telefona para amigos no Rio de Janeiro e conta que o concerto foi ótimo. Fala primeiro com o jurista Simão Isaac Benjó. Em nome do artista, o professor Benjó está processando a gravadora EMI-Odeon por ter adulterado a mixagem dos três primeiros discos de João Gilberto, quando os reuniu no CD "O Mito".
Conversa em seguida com Pedro Bloch, o médico que o ajuda a cuidar da voz.

O artista diz a Paulo Berdah que ele deve voltar a ser dentista. "A odontologia é a parte mais importante da medicina", sustenta. "A boca é uma caixa acústica. Se o dentista entende o paciente e lhe dá o tratamento adequado, pode fazer com que ele mude a sua postura, a sua voz, a maneira de situar-se no mundo; pode fazer com que ele seja mais feliz".

O artista fala que irá encontrar-se na Inglaterra com Ivan Lessa, que também não conhece pessoalmente. É admirador do jornalista radicado em Londres desde o início dos anos 60, ao saber que, quando lhe telefonavam e perguntavam quem estava falando, ele respondia: "É Ivan, coitado".

"Vejam que maravilha: "Ivan, coitado". Eu é quem deveria ter inventado isso. Vou pedir ao Ivan para me passar o direito de criação e uso da frase".

João Gilberto encomenda o vinho que tomou no dia anterior. Como Joaquim estava de folga, quem vem ao quarto é um jovem de cabelo raspado com máquina um. Ele explica que o armário com o Rioja especial está trancado, mas que trouxe um tão bom quanto aquele. O atendente sai, as garrafas são abertas, e o vinho parece estragado. O artista reclama. O garçom lhe bate o telefone na cara. João Gilberto volta a ligar e dá uma bronca em quem atende o telefone.

Pouco depois, se arrepende. Telefona uma outra vez e pede desculpas. Volta à sala, onde todos riem, e diz, grave: "O temperamento é uma doença".

Quinta-feira, 13 de julho

O artista continua sem sair da suíte, com as cortinas fechadas. Mas repete que adora Barcelona. "Que avenidas largas, que luzes, que frisos, que povo legal. Só não gosto muito do nome: Barcelona. Parece meio largadona".

Ele só lê duas críticas do show. Ri de uma na qual o articulista o chama de "chansonnier" da Amazônia. "Vai ver que ele está me comparando com um índio", diz. E gosta de outra em que o crítico se pergunta por que determinadas músicas, banais na interpretação de outros cantores e violonistas, provocam sentimentos tão complexos quando tocadas e cantadas por João Gilberto.

Sexta-feira, 14 de julho

O avião sai de Barcelona no horário, 14h. O artista é aguardado no aeroporto de Londres pela baiana Maria das Graças Fish, da embaixada brasileira. Informada do problema com as passagens da volta para o Brasil, já no aeroporto ela começa a dar telefonemas para tentar resolvê-lo.

No hotel, o Great Eastern, no centro financeiro de Londres, o seu colchão também é mole, se bem que menos que o de Barcelona. O artista come pouco e vai dormir. Uma hora depois, acorda: doem-lhe as costas.

Sábado, 15 de julho

São 9h e o artista já está de pé. "Não consegui dormir depois que entraram uns 40 ingleses no quarto para colocar o colchão no chão", diz.
Paul e Jacques Berdah chegam de Paris às 13h e vão direto para o Barbican Centre, cuidar do som. Paul tem certeza de que a aparelhagem do teatro está ótima. Os 2.000 ingressos para o primeiro show do artista na Inglaterra estão esgotados há uma semana.

Às 19h, João Gilberto não respondia telefonemas nem às batidas na porta de seu quarto. Mais de meia hora se passou e a sua suíte parecia vazia. Maria do Céu pede à gerência que arrombe a porta. Finalmente o artista abre a porta. Estava tomando banho. Tivera dificuldade porque o ralo do chuveiro entupira e o banheiro inundara.

O artista sai da suíte às 20h10, 20 minutos antes do início do show. Veste um terno Armani escuro e gravata Versace. O concerto começou pontualmente e durou duas horas. João Gilberto emendou uma música depois da outra e não falou nada.

"O som era ótimo, mas eu não tinha dormido, estava cansado", diz o artista no hotel, inseguro quanto à qualidade do concerto. Na dúvida, telefona para Ivan Lessa e pergunta o que ele achou. O jornalista lhe assegura que o show foi espetacular, que o som não podia ser melhor.

"Ivan, eu queria a sua autorização para usar a frase do "coitado", diz ele a Lessa. "Assim que voltar ao Brasil, vou comprar uma secretária eletrônica e gravar o recado: "Aqui quem fala é João, coitado".

Depois de mais de meia hora de conversa, ele desliga o telefone e fala aos amigos: "O Ivan é o máximo. Sabem o que ele respondeu quando pedi autorização para usar o "coitado'? Ele disse: "Pode, João, você merece". Acho que o "você merece" é ainda melhor que o "Ivan, coitado".

Jean-Jacques Berdah lhe pergunta qual é melhor: Ary Barroso ou Tom Jobim. "Não dá para comparar", responde João Gilberto. "Ao ouvir o Tom, a sensação é a mesma de comer uma fruta muito gostosa." Canta três músicas de Tom Jobim e fala de Ary Barroso: "Ele é grande, é enorme. Do nada, ele tirou "Aquarela do Brasil", "Rancho Fundo", tanta coisa". Canta cinco músicas dele.

Lembra que falou com Ary Barroso uma vez. Ou melhor, o ouviu. No final dos anos 50, João Gilberto, que havia lançado o LP "Chega de Saudade", estava jantando no Fiorentina, no Rio. Ary Barroso se aproximou da mesa e disse ao artista: "Nunca deixe que lhe digam o que você deve fazer e me procure daqui a um ano se eu ainda estiver vivo". Dito isso, Ary Barroso se retirou.

Domingo, 16 de julho

João Gilberto acorda à tarde. Está cansado, sem condições de enfrentar a viagem de volta via Espanha. Decide ficar mais um dia em Londres.

Telefona para Maria das Graças. Ela, que conseguira cortar a escala em Barcelona, diz que vai batalhar para que ele viaje direto de Londres para o Rio.

À noite, o artista ouviu uma fita com a gravação do concerto no Barbican. "Foi o melhor show da viagem", avalia. "No segundo de Barcelona eu podia estar mais emocionado. E no de Londres, mais cansado.
Mas não há som como esse do Barbican. O violão está alto, forte, redondo, e forma um todo com a voz".

Os três shows foram um sucesso. Nos três, o artista se apresentou no horário marcado. Os três estiveram lotados e os críticos o elogiaram. "As exigências de João são bem menores que a de outros artistas", diz Jo Patton, 26, sua produtora em Londres. "Esse folclore em torno da falta de pontualidade e profissionalismo de João Gilberto não passam disso: folclore", diz Alfonso Fitjá. O artista suportou estoicamente as horas de aeroporto e os colchões moles. Mas não abriu mão da qualidade do som.

Segunda-feira, 17 de julho

Maria das Graças conseguiu passagens para que João Gilberto e sua trupe voltassem para o Brasil via Paris. O artista não quer a escala. Prefere tentar a sorte em Londres: irá ao aeroporto e, se alguns passageiros não aparecerem, embarcará no vôo direto para o Rio.

Mas não há desistências. Maria das Graças leva o artista para o hotel Grosvernor. Depois de três noites mal dormidas, ele consegue descansar direito.

Terça-feira, 18 de julho

"A Graça só me deixou quando viu que eu estava bem, depois de me botar na cama e cantar canções de ninar", conta o artista. "O hotel é um escândalo. Tem até uma varandinha onde tomei sol. Depois, saí na rua, vieram várias moças correndo atrás de mim e gritando: "Moreninho! Moreninho!" Tive de voltar às pressas para o quarto".

À noite, João Gilberto escuta um programa na rádio BBC2 dedicado à sua obra. Fica alegre, toma um pouco de vinho e, sem tomar conhecimento da crítica elogiosa do "The Guardian", vai dormir.

Ontem, 19 de julho

O artista decide ficar em Londres mais uns dias. Está gostando da cidade. Faz sol em Londres. Da varanda de seu quarto, contempla o Hyde Park. Pega o telefone. Vai ligar para Maria das Graças e convidá-la para jantar com o seu marido na suíte do Grosvernor. "Estou doido para voltar ao Brasil e contar que cortei o cabelo com o barbeiro do rei", diz o inventor da bossa nova. O artista João Gilberto Prado Pereira de Oliveira está em paz.

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