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19/04/2002 - 04h21

Agnès Varda recicla visão do lixo em "Os Catadores e Eu"

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FRANCESCA ANGIOLILLO
da Folha de S.Paulo

Agnès Varda não se cansa de se surpreender. E faz questão de ostentar a sua qualidade de curiosa com toda a liberdade em "Os Catadores e Eu", documentário exibido na noite de hoje, em São Paulo, e amanhã no Rio, dentro do festival É Tudo Verdade.

Em poucas palavras, "Os Catadores e Eu" é um filme sobre o ato de recuperar. Recuperar comida do lixo para a sobrevivência, repetindo urbanamente o gesto camponês do "glaneur", aquele que recolhe do chão das plantações os restos do que não foi ceifado.

Ou, se quiser, recuperar objetos que ninguém quis mais, dar-lhes novo uso, fazer deles arte.

Por fim, recuperar imagens que são subprodutos do desperdício: gente remexendo o lixo, eletrodomésticos sobre a calçada. Com sua câmera-pinça, Agnès Varda recupera o que vemos sem enxergar. Ela é a catadora, a "glaneuse" do título original.

Em outra "camada" do filme, há também a questão do tempo que passa, que não se pode agarrar. Que sulca as mãos, que se evidencia na raiz dos cabelos.

Aos 73 anos, a cineasta belga, considerada uma predecessora da nouvelle vague, constata: "Eu estou com um problema de tempo. Estou envelhecendo, o que é interessante, mas me coloca numa perspectiva em que o tempo tem muita importância, então entra naturalmente no filme. Não é para ser "chique". Eu pensei na ação do tempo sobre mim, das mudanças no corpo. Assim".

Naturalidade é o que amarra o filme, essa espécie de "road movie" em que a diretora se coloca, sempre, como a voz que conduz o percurso do espectador e, eventualmente, como personagem frente à câmera. É naturalmente que ela aborda as pessoas, faz com que exibam seus hábitos e dificuldades. Naturalmente, também, passa do lixo ao museu de arte, do espelho à sua mala de viagem.

Justamente porque se colocou tão livremente em "Os Catadores e Eu", Varda se admirou com a repercussão do filme, exibido em 75 festivais em todo o mundo desde sua conclusão, em abril de 2000.

"Se as pessoas gostaram do filme, é porque fala de um assunto muito grave, social, mas contado por uma mulher -eu- que não tem medo de dizer que ela ama a pintura, mesmo se está falando da pobreza, que não tem medo de fazer gracejos ou mostrar imagens completamente inesperadas, que não tem medo de falar dela e de sua idade", arrisca a diretora.

Varda lamenta que, com tanto sucesso, o filme não tenha sido comprado para exibição comercial no Brasil, um país onde, entende, a miséria é tão mais dramática que na "França profunda", que ela quis recolher em imagens. A seguir trechos da entrevista que Varda concedeu à Folha
Folha - Seu filme é um "road movie" que cruza uma França diferente da que costumamos imaginar.
Agnès Varda -
Meu filme me levou a toda a França. Ao sul, ao norte, às colinas, ao litoral, às cidades e ao campo. Foi uma maneira de mostrar a França profunda, a França simples. Não a da moda, você sabe, a de todas as coisas "chiques".

Folha - Para alguém que só conhece a França "chique"...
Varda -
É um choque ver a França pobre.

Folha - Não exatamente um choque. Também conhecemos a idéia de uma França contestadora, que clama pelos direitos humanos. No filme, descobrimos que há uma lei que permite que as pessoas...
Varda -
Porque você está no Brasil, você conhece melhor que eu a miséria daí. Ficamos muito chocados com um acidente aí, há uns anos. Havia barracos ao lado de uma enorme montanha de lixo, onde os caminhões jogavam os dejetos. E havia essas cabaninhas bem perto porque havia pessoas que estavam lá para serem os primeiros a recolher. E houve um desabamento dessa colina, que destruiu umas 20 dessas cabanas.
Tudo depende de onde o filme é visto. Há lugares -não só no Brasil, mas na Índia, na América do Sul, na África do Sul- onde as pessoas são obrigadas a se nutrir cada vez mais de dejetos.

Folha - Eu queria falar da lei que há aí. Acho que não existe uma lei aqui que permita às pessoas entrar nos campos e recolher as sobras.
Varda -
Essa é a França. E é desde o Código Napoleônico. O advogado que vemos no filme fala de leis do século 17. Mas, se voltarmos mais ainda, na Bíblia, no Levítico e no Deuteronômio, eles dizem que, se sobra trigo na sua colheita, que se deixe aos pobres e os órfãos. É quase uma lei natural.

Folha - Aqui não é natural; há uma população enorme morrendo de fome, num país...
Varda -
Que tem tanta comida. Acho que é uma lei natural da solidariedade que, na França, virou uma lei oficial. É muito interessante: não se estabelece a lei de recolher, mas os limites para recolher. Leis à parte, existe a consciência do esbanjamento.

Folha - A sra. compara o ato de catar a filmar e até posa de catadora.
Varda -
Certamente. Era preciso fazer uma colheita. E há a liberdade do filme, de ir de um tema ao outro, recolhendo.
 

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