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31/07/2002 - 03h35

Maior pianista brasileiro, Nelson Freire, ganha filme de sua carreira

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SILVANA ARANTES
da Folha de S.Paulo

Quando viu as mãos miúdas do garoto de oito anos deslizarem pelo piano, ela enxergou mais que o prodígio. "Que bom! Ele já tem o seu mundo. Também para ele o resto será o resto."

Assim como Nise Obino, primeira professora de Nelson Freire (que é hoje, aos 58 anos, o maior pianista brasileiro e um dos expoentes mundiais), o documentarista João Moreira Salles mirou o virtuose para além do talento.

No longa inédito e recém-concluído "Nelson Freire", o cineasta entrelaça o perfil do músico com um "estudo sobre o recato".

"Tenho extraordinário fascínio e respeito pelo recato, pelo que é quieto, mas sublime. O Nelson é um pouco isso, um jeito de produzir a beleza sem nenhum espalhafato", diz Moreira Salles.

A decisão de filmar o que por definição não se mostra é desafio de documentarista. "Sabendo que todo cinema documental é, mal ou bem, uma invasão, uma violência, portanto, me parecia interessante a dificuldade de fazer um filme sobre alguém que não quer se expor, sem ferir esse desejo de permanecer recatado."

A vontade de registrar o mundo particular de Nelson Freire é também necessidade de quem quer devolver ao próprio território emocional alguma leveza.

"Filmei coisas tão sem sutileza _a dispersão, a desordem, a feiúra_, que pensei ser a hora de sair um pouco disso para poder voltar depois", diz o realizador de "Notícias de uma Guerra Particular", documentário sobre o tráfico nas favelas.

Com "Nelson Freire", Moreira Salles buscou "em contraposição à dispersão, um pouco de ordem; em contraposição à desordem, um pouco de razão; em contraposição à feiúra, um pouco de beleza". E, "sem querer ser grandiloquente", fez "um filme contra a barulheira, a algaravia, a revista "Caras", os Acyolis".

Rachmaninov
Durante 18 meses, desde 99, o cineasta e seu diretor de fotografia, Toca Seabra ("O Invasor"), acompanharam os concertos do pianista no Brasil e no exterior.

A primeira apresentação da carreira de Freire em São Petersburgo, na Rússia, em que interpretou Rachmaninov, foi a mais relevante do período, na avaliação do pianista. O filme ecoa essa análise, evidenciando os ensaios com a orquestra local e a récita pública.

Por ser um perfil, e não uma biografia, o longa prescinde de cronologias. "A ordem cronológica faz sentido quando se filma um processo. Não se tratava disso. Como pretendia fazer um filme que pudesse ser entendido com os olhos e os ouvidos, achei interessante ter pequenas histórias que falassem para diferentes sentidos", diz o cineasta.

As "pequenas histórias" se sucedem em capítulos embaralhados do cotidiano de ensaios e concertos de Nelson Freire, pelos quais passeiam obras maiúsculas, regentes, amigos como a pianista Martha Argerich e fãs.

Inarredável no propósito de filmar o recato, o diretor assumiu a consequência de que "ninguém fala sobre Freire no filme a não ser ele mesmo e, portanto, o filme só diz o que ele está disposto a dizer".

Silêncios
Com palavras, Freire se dispõe a dizer pouco. Deu uma única entrevista, no último dia de filmagens, na qual oferece mais silêncios que expansões de pensamento. Mas soube ser de generosidade cinematográfica ao se deixar flagrar embevecido com sua coleção de cenas de Rita Hayworth e Fred Astaire (é fã do cinema dos anos 40) ou com o piano jazzístico de Errol Garner (cultiva fascínio e inveja pela capacidade dos que improvisam).

Indiferente à câmera, Freire alisa o pêlo da cadela Danuza e adivinha-lhe um desejo de "tocar a quatro mãos". Negado. Mostra uma foto com os primos e aponta que é o único de sandálias entre crianças descalças: imposição de uma saúde precária que o impediu de "pertencer ao mesmo mundo" dos demais.

O pianista revela ao cineasta uma carta em que seu pai rememora o dilema da família ao se dar conta de seu talento extraordinário: criá-lo em Minas, como haviam feito com os outros filhos, ou se transferirem para o Rio, prevendo o encontro de um "ambiente padrasto em questões afetivas", mas próprio à formação de um grande músico?

No Rio, Freire encontrou a professora Nise, jovem desquitada, fumante e com idéias para "chocar a família mineira". Aprenderam a amar-se em suas respectivas singularidades, e o sentimento dele permanece, ainda que já não mais a alcance.

Em Nelson Freire as lágrimas brotam como as memórias _timidamente. "Nelson Freire" é capaz de emocionar sem contenções. Sua estréia nas telas, em novembro, o dirá.
 

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