Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
14/09/2002 - 03h44

Zora Hurston pinta contrastes negros nos EUA dos anos 30

DENISE MOTA
da Folha de S.Paulo

Filha de um estupro, abandonada pela mãe, desconhecida pelo pai, criada pela avó para se casar com o primeiro homem que lhe emprestasse um sobrenome ao menos respeitável, a vida de Janie Mae Crawford está longe de ser modelar, mas transformou-a numa das mais importantes mulheres de seu país, ao menos na literatura negra americana.

Sobrevivente de guerra _não entre potências, mas entre homens e mulheres negros e brancos que forjaram os EUA pós-escravidão_, Janie é a voz de Zora Neale Hurston (1891-1960), antropóloga, dramaturga e ficcionista que tem "Seus Olhos Viam Deus", mais conhecida obra de sua lavra, publicada agora no Brasil.

Escrito em sete semanas, em 1937, o livro descreve a trajetória de Janie rumo ao autoconhecimento e à libertação pessoal, numa jornada emoldurada por três relacionamentos, nos quais experimentou graus variáveis de submissão, devotamento e paixão.

"Zora era uma mulher muito independente e, nesse romance, ela toca em questões que teve de enfrentar em sua vida também: o livro foi inspirado em um relacionamento que ela teve e do qual fugiu, e Janie representa muitas de suas informações biográficas", afirma Lucy Anne Hurston, sobrinha da autora, que tinha três anos quando a escritora morreu.

"Era difícil compreender que ela era uma mulher fora do comum. As negras não eram educadas para serem escritoras. Zora viajava livremente, vivia fora das normas da época."

Fraturas e "autopiedade"
"Seus Olhos Viam Deus" sintetiza boa parte do pensamento de Neale Hurston, ao construir um retrato dos negros que se afastava da descrição -algo fantasiosa, a seu ver- de que se constituíssem num grupo solidariamente coeso, depois de séculos de servidão na América.

A autora não deixava de notar as fraturas dessa comunidade. Hurston expressaria seu desgosto, por exemplo, com relação ao racismo entre negros, dos mulatos em relação a conterrâneos de pele mais escura, que observara numa de suas pesquisas antropológicas na Jamaica, em 1936.

Outra das características do livro intimamente ligadas a toda a obra da autora refere-se à sua defesa da tomada de consciência individual em detrimento de protestos políticos coletivos.

Tais postulados a fizeram ser renegada pelos escritores negros ascendentes nos Estados Unidos dos anos 30 e 40, que não consideravam sua produção suficientemente militante para aquele momento, a quem Hurston rebatia ironicamente, dizendo não ser "tragicamente negra".

Também de forma irônica, justamente sua distância do que classificava de "autopiedade" acabaria por lhe causar trajetória digna de pena. Num intervalo de sete anos, entre 1943 e 1950, passa de pesquisadora e autora prestigiada -chegando à capa da "Saturday Review"- a empregada doméstica em Miami.

O ostracismo em que suas obras entrariam a partir do início dos anos 50 só teria fim depois de 1975, com a publicação de texto de Alice Walker (de "A Cor Púrpura") sobre a descoberta do túmulo sem identificação -num cemitério dedicado apenas a negros em Fort Pierce (Flórida)- onde Hurston fora sepultada em 1960 ("conforme seu desejo", enfatiza Lucy).

Entre 1990 e 1995, "Seus Olhos Viam Deus" vendeu cerca de um milhão de exemplares, o que impulsionou a reedição de todos os trabalhos mais significativos de Hurston nos EUA, dando abertura a um novo ciclo de redescoberta da autora.

"Zora hoje não é analisada apenas dentro dos estudos afro-americanos ou femininos, mas juntamente com Faulkner, Hemingway e outros escritores que trouxeram contribuições à literatura norte-americana", diz Lucy.

Embora tenha dedicado toda a sua produção acadêmica, teatral e literária à descrição do mundo negro, rural e urbano, na América do Norte e Central, Neale Hurston, sua dialética e seus personagens não estavam limitados a condição social, sexo ou cor da pele, apesar de viverem em situações e meios decorrentes desses parâmetros. Como costumava afirmar, "não pertenço à chorosa escola negra que sustenta que a natureza, de alguma forma, lhes tenha dado um golpe baixo".

SEUS OLHOS VIAM DEUS (Their Eyes Were Watching God). De: Zora Neale Hurston. Editora: Record. Quanto: R$ 32 (224 págs.).
 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página