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27/03/2003 - 04h20

Peça expõe a trágica ética brasileira

SÉRGIO SALVIA COELHO
da Folha de S. Paulo

Chico Pelúcio chega à cidade com o melhor do teatro-aula, o que expõe à platéia de iniciados do festival o resultado de um período de pesquisa. Formada pelo quinto Oficinão do grupo Galpão, de Belo Horizonte, a recém-fundada Companhia do Homem expõe com fé um caleidoscópico painel de cenas urbanas em "O Homem que Não Dava Seta".

Como nos oficinões anteriores, o texto é o resultado de um ano de trabalho conjunto entre atores, diretor e dramaturgos, no processo de "dramaturgia participativa" que vem sendo determinante para o autor Luís Alberto de Abreu.

Nesta peça, Abreu coordena cinco dramaturgos em torno do mote da ética no Brasil contemporâneo. Para contar uma história de um homem injustamente acusado pela imprensa de ser um matador, a equipe criou uma ágil sequência de cenas que remete ao "Pulp Fiction" de Tarantino.

Outra referência forte para o estilo de Pelúcio é o teatro de rua, que aqui está como transposto no palco: o mascate/narrador começa se dirigindo para uma platéia de transeuntes projetada em um telão ao fundo, e a história se desenvolve apoiada em poucos elementos cenográficos. Embora tenha o mérito de concentrar a atenção nos atores, a precariedade acaba comprometendo o acabamento estético do espetáculo.

O elenco é desigual, como todo em formação, mas conta com um número surpreendente de boas promessas. As cenas que vão e voltam na sequência cronológica acabam transformando pequenos dramas urbanos em um trágico painel sobre o Brasil de hoje.

No teatro-blefe, outro setor dominante do festival, está "Belarmino e o Guardador de Ossos", de Amauri Tangará. O termo pode parecer pejorativo se tomado apenas no sentido de enganação. Mas, o gênero tem o charme do pôquer, no qual o jogador com cartas ruins pode induzir a que se atribua a elas um valor maior.

Assim, uma comitiva, na qual predominam adolescentes preparados para o frio que irão enfrentar com gorros e japonas, toma um ônibus até um suposto enclave da Chapada dos Guimarães, na verdade a pedreira Leminski de Curitiba precariamente cenografada. Todos se aplicam em sentir arrepios diante de ossos sobre pedras ou do mato se agitando.

Porém, quando surge o coureiro Belarmino, que se tornou um jacaré devorador de homens para se vingar do pai, se aplicando em transformar os chavões do texto em arquétipos à custa de uma dicção canastrônica, a platéia tem que tomar um partido.

Ou embarca na mística, se deslumbrando com o pobre Belarmino mergulhado no lodo gelado, uivando de paixão pela elemental Orejona ou, aferrada à autocrítica, vê tudo como uma longa história para jacaré dormir, algo como o remake de "A Bruxa de Blair" feito pelo Zé do Caixão.

Ao final, há o prêmio de uma dose de cachaça "quebra cama", de alegados efeitos afrodisíacos. Pelo menos, pode ser aí o início de uma noite de amor sem precedentes. E, para quem não se empolgou, resta o consolo de poder criar um texto melhor quando for explicar aos amigos como pegou aquele resfriado. Em todo caso, será inesquecível.

 

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