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12/04/2003 - 04h52

"A Paixão Segundo G.H." altera percepção da realidade

SERGIO SALVIA COELHO
crítico da Folha

Clarice Lispector (1920-77) fascina pela ambiguidade. Em "A Paixão Segundo G.H.", uma dona-de-casa entediada resolve fazer faxina no quarto de empregada e se depara com uma barata. Esse fato banal desencadeia uma lisérgica reflexão sobre a natureza humana, descamando o cotidiano cada vez mais profundamente.

Uma adaptação teatral, para ficar à altura desse texto, depende de dois elementos: é preciso uma encenação vigorosa que dê conta dessa metamorfose do real, mas, por outro lado, uma atriz que consiga manter a verossimilhança do relato, sem ceder à declamação da densa poesia que se depreende da angústia de Lispector.

A montagem atual no Sesc Belenzinho preenche totalmente esses requisitos, contando ainda com a adaptação de Fauzi Arap, que tem o raro privilégio de ser cúmplice da autora. A experiência que ambos compartilharam -segundo relata Arap, o consumo de LSD sob supervisão terapêutica- dá uma chave de interpretação inovadora. Não se trata mais de uma deformação estilística, nos moldes de um realismo fantástico, mas do relato de uma busca dos limites da percepção, algo como se Proust houvesse trocado a madeleine por uma barata.

Remove-se do texto original, portanto, tudo o que não relate esse despojamento das garantias do cotidiano, em uma progressão gradual e inexorável. Mariana Lima apresenta G.H. antes de tudo como uma mulher aflita, tímida diante do enorme enigma que precisa compartilhar. Seu tom é de um realismo cinematográfico, parece esquecer o texto a cada instante, olhando nos olhos o público que está em cena com ela, em sua sala de estar.

Logo, no entanto, o público é convidado a trocar esse set de filmagem por outros, cada vez mais terapêuticos, segundo o recurso itinerante do Teatro da Vertigem, de onde vêm não só a atriz mas o iluminador Guilherme Bonfanti e o cenógrafo Marcos Pedroso. Percorrendo um longo corredor, no qual alguns elementos realistas ainda remetem ao mundo real, chega-se à branca "nowhere land" do quarto de empregada.

Aqui, somos tragados pelo expressionismo das arenas de Francis Bacon. Sombras são lidas como hieróglifos, e a própria figura esguia de Pierrot lunar de Lima se contorce em nojo e na transubstanciação do banal em experiência mística.

O diretor Enrique Diaz tem o raro talento de distinguir qual a responsabilidade da atuação, que não fica ofuscada pela encenação, e qual o momento em que o espetacular tem que estabelecer a maravilha.

Quando parece que o despojamento bastaria, o vídeo de Carolina Jabor injeta LSD em nossas veias, e o mundo deixa de ser confiável.

Quando somos devolvidos ao corredor, ele está diferente. O que parecia ser mera indicação realista já se tornou um incômodo lembrete da inconfiabilidade do real. "A Paixão Segundo G.H." altera nossa percepção do mundo. Não há maior elogio que se possa fazer em arte.

Avaliação:

A Paixão Segundo G.H.
Texto:
Clarice Lispector
Adaptação: Fauzi Arap
Direção: Enrique Diaz
Com: Mariana Lima
Onde: Sesc Belenzinho (av. Álvaro Ramos, 615, Quarta Parada, tel. 6602-3700)
Quando: sáb. e dom., às 21h; até 1º/6
Quanto: de R$ 10 a R$ 20 Patrocinador: Banco do Brasil
 

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