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24/05/2003 - 04h36

Sarcasmo de "Jane Spitfire" empalidece diante de cinismo atual

SERGIO SALVIA COELHO
Crítico da Folha de S.Paulo

Em 1975, exilado na Argentina, Augusto Boal pressentia que um golpe iria derrubar Isabelita Perón, no mesmo processo intervencionista norte-americano que havia apoiado o golpe militar no Brasil. Inspirado pelas falcatruas folhetinescas de Nelson Rodrigues e David Nasser, escreve então "A Deliciosa e Sangrenta Aventura Latina de Jane Spitfire", paródia dos romances baratos de espionagem que décadas atrás havia traduzido para a revista "X9".

Com sua experiência de exercícios teatrais nos quais a encenação de fotonovelas evidenciava a ideologia reacionária por trás dos clichês, Boal se propôs a "fazer o feitiço virar contra o feiticeiro", ao exacerbar violência e sexo, atrativos do gênero, como estratégia para denunciar "o mecanismo imperialista norte-americano por trás dos acontecimentos".

Publicada pelo "Pasquim" um ano depois, "Jane" valeu como um desabafo interno entre resistentes, por meio de um humor corrosivo contra a hipocrisia do "american way of life" que embalava o sonho brasileiro.

Em tempos de Doutrina Bush, quando uma guerra de ocupação com objetivos econômicos quase não disfarçados se candidata ao Prêmio Nobel da Paz, parece que as piores caricaturas tomaram corpo, tornando assim oportuna a republicação do folhetim subversivo. Porém, o sarcasmo, que é devastador contra a hipocrisia, empalidece diante do cinismo.

A fábula é de um primarismo aterrador, não só estilístico -sendo propositalmente medíocre, ainda se tolera do autor a trama repetitiva e a pobreza do diálogo-, mas estratégico: combate clichês da direita com clichês de esquerda, em um maniqueísmo que felizmente envelheceu. Mais eficaz do que esse reacionarismo de esquerda é a crítica que os próprios norte-americanos fazem de seus valores, como prova o documentarista Michael Moore, ou mesmo uma peça como "Quem Tem Medo de Virginia Woolf", de Albee. Hoje, porém, quem tem medo de Jane Spitfire?

Mais constrangedor para o criador do Teatro do Oprimido é o achincalhe sistemático da protagonista por sua sexualidade exacerbada. Deve o leitor deduzir por oposição que a castidade é uma virtude revolucionária? O tom, nesse caso, fica estranhamente parecido com o fascínio das beatas pelo pecado. Se fosse transformada em musical, essa cartilha ideológica poderia atrair sem dúvida uma platéia jovem: mas, então, haveria o forte risco de Jane Spitfire, como hábil agente dupla que é, fazer novamente o feitiço virar contra o feiticeiro.

Avaliação:

A Deliciosa e Sangrenta Aventura Latina de Jane Spitfire
Autor: Augusto Boal
Editora: Geração Editorial
Quanto: R$ 32 (272 págs.)

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