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15/06/2003 - 08h36

Millôr Fernandes completa 40 anos de fábulas e reúne cem em livro

CASSIANO ELEK MACHADO
da Folha de S. Paulo

Lobo em pele de cordeiro, o raposa Millôr Fernandes viu desde cedo um saboroso e abandonado cacho de uvas quase caindo da árvore. Era o esquecido gênero das fábulas, de Esopo e La Fontaine.

Formiga disfarçada de cigarra, o chamado "guru do Méier" foi mais rápido do que a lebre ou a tartaruga e começou a trabalhar nesse estilo de historietas até que lançou, redondas quatro décadas atrás, o livro "Fábulas Fabulosas".

Moral da história, o humorista-dramaturgo-tradutor-desenhista-frasista acabou por virar também o grande fabulador nacional.

Agora, aos 78 anos, Millôr resolveu fazer uma reunião de condomínio com todo o seu zoológico fabular. Juntou leões e ratos, bodes e burricos, deuses gregos e políticos maranhenses e saiu de lá com uma centena de alegorias.

O resultado está no livro "100 Fábulas Fabulosas", que esse "irmão Grimm" carioca (e amoral) lança pela editora Record.

Algumas historietas já andavam por aí em velhas brochuras esgotadas, outras estavam em seu "saite", o www.millor.com.br, mas a parte mais polpuda dessa centena de alegorias nunca tinha saído do escritório do criador.

Milton, digo Millôr (um tabelião desastrado, diz uma fábula, lhe deu esse nome que não tem par), também não é muito de sair do escritório. Pelo menos não para entrevistas. Mas o autor de frases como "a informática criou uma coisa realmente maravilhosa: erros cada vez maiores cometidos em espaços de tempo cada vez menores" - "Millôr Definitivo" (editora L&PM)- topou bater papo por e-mail com a Folha.

Começou afirmando que não lembrava de quando iniciou-se na arte da fábula ("A primeira que ouvi foi Noé quem contou, no meio do porre comemorativo") e terminou se mostrando um cordeiro em pele de lobo. Contrariando a fama de rabugento, pôs ponto final na conversa com um "sou indecentemente feliz". Leia a seguir trechos da entrevista.

Folha - Por que você chama de "fabulosas" as fábulas que faz há 40 anos?
Millôr Fernandes - Tenho a vaga impressão de que é só trocadilho.

Folha - "Só" por que, Millôr? (pergunta sugerida pelo entrevistado)
Millôr - O trocadilho não é "a mais baixa forma de humor", como querem trocadilhistas idiotas. Cristo, que possuía a graça divina, fez a base de sua igreja com um trocadilho: "Pedro, tu és pedra, e sobre ti edificarei a minha igreja".

Folha - Existe algum fabulador vivo que você considere fabuloso? Dos que não confabulam mais, Esopo, La Fontaine ou até Italo Calvino, quem é mais de seu agrado?
Millôr - Somos 6 bilhões de seres humanos, todos mentindo e, portanto, fabulando. Não conheço Calvino. Esopo e La Fontaine hoje são, pra mim, tias velhas.

Folha - La Fontaine escreveu sobre Esopo: "A leitura de suas obras espalha na alma, sem que se sinta, as sementes da virtude, ensinando-nos a nos conhecer sem que disto nos apercebamos, crendo até que estejamos fazendo outra coisa inteiramente diversa". Você acha que suas fábulas ensinam o autoconhecimento sem que disso se aperceba o leitor?
Millôr - Virtude? Eu, hein? Tias velhas, eu já disse. O único autoconhecimento que conheço é o das escolas de motoristas.

Folha - Existe fábula sem a moral?
Millôr - Sem moral não há fabula. Explícita ou implícita. As minhas são devidamente incorretas. Sempre foram assim porque eu sou absolutamente correto. Se é que você me entende.

Folha - Com o que é mais difícil fazer uma fábula: animais, personagens da mitologia, políticos...?
Millôr - Nada é mais difícil. Dificuldade de escrever é coisa pra quem não sabe escrever. Ou melhor, frescura. Difícil é traduzir o "cockney" de (Bernard) Shaw, botar em português compreensível, mas em linguagem que o público sinta como "cockney".

Folha - Por que suas fábulas são em maior parte em terra estrangeira, sempre ambientados entre chineses, árabes, tibetanos...?
Millôr - Estranheza. Efeito. Mas não é intencional. É instintivo.

Folha - Você usa enredos de fábulas alheias para construir as suas ou você é sua própria galinha dos ovos de ouro? Você recicla fábulas suas mesmo em outras fábulas?
Millôr - Vale tudo. Fábulas já existentes, fatos "fabulosos", piadas. É evidente que tudo tem que ser feito com aquilo que se chama qualidade "literária". Enfim, tudo vale a pena quando a alma é pequena, como diria um cafajeste.

Folha - O repórter Jayson Blair, do "New York Times", fez um estardalhaço quando disse recentemente que inventava boa parte de seus textos. Em seus tempos de Redação você fazia fábulas desse tipo?
Millôr - Não. E não vou falar do conluio já denunciado racista ao contrário dentro do "Times" porque nós todos sabemos que não existe nenhum negro desonesto.

Folha - La Fontaine, inimigo do violento Luís 14, criou um fabulário em que muitas vezes a coisa terminava com a paz, inclusive entre animais inimigos. As suas fábulas não são propriamente pacifistas. Suas alegorias são impermeáveis ao dia-a-dia turbulento do Rio?
Millôr - Vou te responder estranhamente: vivo na melhor época da história da humanidade.

Folha - La Fontaine aproximou-se na velhice da Igreja, renegou seus contos e se voltou às penitências. Você tem algum plano parecido?
Millôr - Meu destino não passa pelo poder, pela religião, por qualquer dessas entidades idiotas. Meu script é original, fui eu quem fiz. Por isso eu não morro no fim.

Folha - Que é que você anda fazendo atualmente?
Millôr - Existindo.

Folha - Qual a moral desta entrevista "fabulosa"?
Millôr - Eu sou indecentemente feliz.

100 FÁBULAS FABULOSAS. Autor: Millôr Fernandes. Editora: Record. Quanto: R$ 28 (216 págs.)
 

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