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03/08/2003 - 12h20

Obra exposta na França imita a digestão e produz excrementos

FERNANDO EICHENBERG
da Folha de S.Paulo, em Lyon

"A máquina fez cocô, papai!", exclamou a pequena Claire, 4, apontando um excremento ainda fresco, disposto sobre uma esteira rolante. Um ouvinte desavisado poderia pensar que a assertiva saíra da infinita imaginação infantil. Claire fizera, no entanto, uma descrição sumária e objetiva da obra maior do artista belga Wim Delvoye, 38, exposta atualmente no Museu de Arte Contemporânea de Lyon, na França.

"Cloaca" é uma complexa máquina que reproduz o processo digestivo humano. Composta de grandes recipientes de vidro interligados em sequência, essa aparelhagem de 12 metros de comprimento, mantida na temperatura média do corpo humano de 37C e totalmente informatizada, funciona à base de uma engenhosa química de líquidos biológicos e catalisadores, suco pancreático sintético, enzimas de laboratório, ácidos reguladores do nível de pH e cerca de 400 bactérias de diferentes famílias.

À medida que a digestão avança, no tempo real de uma digestão humana, o líquido inicial, rarefeito e de tonalidade clara, vai se tornando denso e de cor acastanhada. A clonagem é fiel até a derradeira etapa. Ao final de sua digestão, por meio de um tubo vertical encerrado numa câmara de vidro, "Cloaca" defeca suas fezes, de aparência e consistência idênticas à excreção humana.

Para digerir, é necessário, obviamente, se alimentar. No museu francês, a máquina é alimentada duas vezes ao dia pelos vigias da exposição. Seu modesto desjejum é servido às 10h55, hora em que tritura no seu bocal um croissant e meio. Às 16h30, o cardápio é bem mais generoso. Os organizadores da exposição aproveitaram a reputação gastronômica de Lyon e convidaram renomados chefs locais para ajudar a satisfazer o apetite da máquina. No último dia 26, o chef Michel Troigros lhe preparou um saboroso filé de dourado com arroz koshi-hikari.

Aos interessados em não perder seu momento mais íntimo e escatológico, na sua estada francesa a máquina foi programada para defecar às 14h30. Sua digestão raramente apresenta problemas, mas, em Lyon, ela sofreu numa tarde uma "leve diarréia", conta Sherezade, uma das vigias do museu.

Para Wim Delvoye, seu criador, "Cloaca" é uma metáfora política e artística. "Concebi 'Cloaca' como a obra de arte mais cosmopolita que se poderia imaginar", disse à Folha, por telefone, de Gand, na Bélgica. "A merda e a máquina são internacionais, e a máquina de merda é a coisa mais cosmopolita de todos os tempos, de todas as raças, sexos, classes", afirmou.

"Nosso cocô é parte de nós mesmos, é a fraternidade que não podemos construir com nossos cérebros. São nossos cérebros, nossos músculos e nossa carteira de dinheiro que criam as diferenças. Trata-se de um símbolo democrático e tem um poder político, de subversão", acrescentou.

Segundo ele, sua máquina contesta a globalização, como um espelho de nosso sistema econômico, e também faz uma autocrítica ao utilitarismo. "Como se a arte fosse única cidadela contra um mundo utilitário. Posso quase dizer que, se há algo inútil, é a arte."

A "Cloaca" exposta em Lyon, nomeada "New and Improved" (nova e melhorada), já é uma segunda versão, concluída em 2001, da máquina original de 1999. Auxiliado por cientistas, Delvoye levou cerca de oito anos para criar seu primeiro rebento. Agora, trabalha com duas empresas belgas no projeto da "Cloaca Turbo", de dimensões industriais, a ser exibida em Prato, na Itália.

"Essa nova máquina será menos transparente, feita em inox, e com capacidade para consumir 250 litros de comida por dia, ou seja, entre 40 e 50 quilos [de comida]", explicou. Para saciar essa fome pantagruélica, ele pretende apelar a uma grande rede de pizzarias. E um novo software em estudo deverá capacitar a "Cloaca Turbo" a produzir 200 gramas de excrementos a cada 30 minutos. "Será algo de uma ambição diabólica, grandioso, como a máquina de 'O Mágico de Oz' ou a bomba atômica considerada Deus em 'O Planeta dos Macacos'", prevê.

Na prancheta, aguarda ainda o projeto da "Personal Cloaca", de uso doméstico, "miniaturizada" no tamanho de uma máquina de lavar, uma geladeira ou um forno microondas. E sonha com a "Cloaca Portátil" e a "Cloaca Conversível" (que poderia produzir, à escolha, excrementos humanos, de cães e de coelhos).

Por onde passa, a polêmica "Cloaca" de Delvoye costuma provocar protestos contra o desperdício de comida numa máquina de excrementos.

"Algumas pessoas dizem que no Terceiro Mundo há tantas crianças com fome, e que eu não me dou conta disso. Sim, mas cada Ingres, Rubens ou Velázquez também é passível de receber essa mesma crítica. Ela é correta, graças à minha obra. É ela que faz pensar nisso. Todos pensam nos pobres na África, nas favelas, mas eu penso muito mais nisso do que Ingres", defende-se.
 

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