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26/08/2003 - 11h13

Leia a íntegra do discurso de Gilberto Gil sobre o cinema nacional

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da Folha Online

Veja abaixo, na íntegra, o discurso do ministro da Cultura, Gilberto Gil, no encerramento do 31º Festival de Gramado - Cinema Brasileiro e Latino, no sábado passado, dia 23, quando ele falou em intervenção estatal no cinema brasileiro.

"Boa noite cinema brasileiro, boa noite Festival de Gramado, boa noite cinematografias nacionais aqui representadas, boa noite Rio Grande
do Sul, emergente pólo regional de produção audiovisual.

O imaginário brasileiro está pontuado pelas caras e pelo talento dos
grandes atores e atrizes gaúchos que marcam nosso cinema e nossa
televisão: o cangaceiro Alberto Ruschel, o vilão José Lewgoy, o elegante Walmor Chagas, o refinado Paulo José, o debochado Paulo César Pereio. E das divas Ítala Nandi, Lilian Lemertz e Glória Menezes.

E mais recentemente também pontuado por uma iluminada geração de
cineastas: Jorge Furtado, Carlos Gerbase, Beto Souza, Giba Assis Brasil, Tabajara Ruas, Sérgio Silva, Roberto Henkin, Werner Schünemann e tantos outros que já estão disputando espaço com uma novíssima geração que está exigindo um lugar ao sol. Gramado está no centro dessa ebulição cinematográfica gaúcha e, portanto, é um bom lugar e um bom momento para o ministro da Cultura e do Cinema dizer a que veio.

Pois bem. O século 20 ficará na história da humanidade como o século do cinema. Foi durante ele que o cinema se consolidou como uma nova e fascinante forma de auto-conhecimento humano, transformando nosso modo de vida de maneira planetária, criando novos hábitos e costumes, inventando o homem contemporâneo.

Por sua qualidade artística, mas também pelo poder político e
econômico que o sustentou, o cinema feito nos Estados Unidos se tornou
hegemônico nesse período, a ponto de ser muitas vezes identificado com o próprio cinema do século 20. Os americanos compreenderam desde cedo a importância de seu cinema, um de seus presidentes da República chegou a formular o que chamou de uma estratégia dos três efes: "flag follows
films" (a bandeira acompanha os filmes).

Através de Hollywood, os americanos venderam ao resto do planeta,
não só os seus produtos de toda espécie, como também seu modo de vida, sua visão de mundo. E o mundo se acostumou a ver os filmes americanos como uma espécie de segundo cinema nacional de cada país, se identificando com seus heróis, com os sentimentos e as idéias deles. Nós todos fomos envolvidos por sua cultura e por sua forma de expressão, muitas vezes a adotamos como nossa.

Mas não é bom para a humanidade que mais de 90% das telas de todo
mundo estejam hoje ocupadas por apenas uma língua, uma cultura, um modo de vida, a expressão de um só país. Não é bom para a humanidade que
outros povos e outras nações não se expressem e não se conheçam através do cinema. Ou que essa expressão não chegue regularmente a todas as telas de todos os cantos do planeta. Um país sem cinema, um país sem filmes em circulação permanente e universal, é um país sem rosto e sem alma. Um país incapaz de se reconhecer plenamente a si mesmo, incapaz portanto de dialogar em igualdade de condições com seus pares, de trocar valores e experiências com eles.

No caso do Brasil, por sua dimensão e importância, essa ausência de um cinema nacional seria um absurdo inexplicável, um escândalo inaceitável. Somos um povo, um país, mas também, e acima de tudo, somos
uma civilização. Essa civilização precisa se expressar para se consolidar como tal e semear seus valores, servir de exemplo à humanidade. Essa civilização tem a obrigação de fazer um cinema que tenha, para o século 21, a mesma importância que o cinema americano hegemônico teve para o século passado.

Portanto, não se trata mais de perguntar se o Brasil tem condições
de ter um cinema nacional. É claro que a resposta será sempre duvidosa,
se encararmos os obstáculos que teremos de enfrentar, as dificuldades
inerentes ao estágio sócio-econômico em que o país ainda se encontra. Mas nada disso pode nos deter, pois não se trata mais de saber se podemos ter, e sim se devemos ter um cinema nacional, se é desejável que ele exista. E a nossa resposta, do estado e da sociedade, dos homens de cultura e da população em geral, a resposta de nossas próprias necessidades como povo, país e civilização, é claro que só pode ser a de um muito firme e convicto sim.

É com esse objetivo que o governo do presidente Lula e o nosso Ministério da Cultura estão encarando a obra que se encontra diante de
nós. Trata-se de fazer do cinema brasileiro uma atividade permanente no
país, capaz de refletir nosso povo e colaborar para seu auto-conhecimento, para seu progresso material e espiritual, para a
consolidação de uma civilização brasileira, original e inédita, baseada
na democracia, na justiça e na fraternidade.

Nós sabemos que as dificuldades são muitas. Não podemos e não queremos resolvê-las apenas com medidas pontuais, com eventos precários de repercussão temporária, que no máximo geram apenas mais uma safra de filmes e deixam o futuro ainda incerto. Ou com bravatas inúteis e gestos vazios que provocam resultados de pouca duração. Estamos atentos à necessidade de certas medidas de emergência mas queremos, acima de tudo, estabelecer mecanismos estruturais, que sejam capazes de garantir a existência de nosso cinema com continuidade no tempo. Mecanismos capazes de garantir a fabricação e difusão de filmes de todas as tendências, de todos os formatos, de todas as gerações, de todas as regiões. Capazes de garantir que esses filmes alcancem todas as telas, desde as salas de exibição convencionais até os modos alternativos de exposição, na televisão aberta ou paga, no vídeo e no digital, nas transmissões via satélite ou pela internet, em todas as formas de difusão, primeiro no Brasil e depois no exterior. Primeiro no Brasil, sim, pois a conquista do mercado externo tem como imperativo irremovível a construção e consolidação de um vigoroso mercado interno.

Sabemos que essa não é uma tarefa fácil e muito menos instantânea. Para realizá-la, vamos precisar de um mutirão obsessivo que nos reuna a todos. E sobretudo de muita tolerância, compreensão e paciência da parte de todos os envolvidos. Mas temos, como ponto de partida para essa caminhada, a inequívoca e invencível vocação do país para o cinema, além do talento comprovado de nossos artistas e técnicos.

A par de ser uma manifestação magnífica do espírito humano, o cinema é também uma economia. Uma economia moderna e sofisticada, cheia de alternativas. Entre essas alternativas, precisamos escolher as mais
convenientes às estruturas reais do país e ao projeto que o governo do
presidente Lula tem para o Brasil.

O presidente Luis Inácio Lula da Silva inseriu o audiovisual no rol
das atividades estratégicas do governo, em consonância com a crescente
importância psico-social e econômica, em escalas nacional e planetária,
do cinema, da televisão, do vídeo, do DVD, das novas e futuras mídias
eletrônicas, da transmissão de conteúdos audiovisuais por satélite e por internet, da digitalização das transmissões televisivas, do
desenvolvimento de tecnologias que tendem a mudar a nossa relação com a imagem e o som em movimento, como a realidade virtual e a interatividade plena. Em consonância com a mega tendência que aponta a comunicação como o mais importante e rentável setor da economia mundial nas próximas décadas e o audiovisual como cabeça, como ponta de lança dessa nova realidade econômica - e o que isto significa na geração de emprego e renda. E em consonância com o caráter do mais poderoso injetor e propagador de idéias, ideologias, comportamentos, hábitos e crenças da história da humanidade.

Trata-se, então, de organizar uma economia que incorpore a complexidade que é própria da cadeia produtiva da atividade audiovisual. Nessa medida o diálogo a ser estabelecido exige que apontemos em múltiplas direções. Assim, continuaremos a dialogar com o Estado brasileiro, procurando articular ações e recursos da União, dos Estados e dos Municípios, instâncias constitutivas do Sistema Nacional de Cultura que estamos construindo. Com as empresas estatais - a quem devemos agradecer e saudar pelo esforço dispendido na direção da retomada da
capacidade produtiva do cinema nacional nos anos mais recentes. Com o
empresariado privado. Com as várias agências de fomento e instituições
financeiras, criando, consolidando e ampliando linhas de crédito para a
produção, distribuição e exibição de filmes. Vamos promover a instalação e funcionamento dos Funcines, fundos de investimento cinematográfico previstos em lei já em vigor, com a mesma finalidade de montar mecanismos sólidos, transparentes e permanentes para a atividade.

O mercado é uma instância que, bem regulada, bem gerida, pode representar e reproduzir os interesses da população. Mas nosso ministério não se limitará apenas a promover sua diversidade, inserindo nele a idéia do interesse social. Nós trataremos de encontrar meios de financiar diretamente a fabricação de certos filmes e outras ações que não tenham a vocação do mercado, mas que precisam existir. Neste último caso, está a indispensável atenção com a memória do cinema brasileiro e com o ensino de cinema no Brasil. Cultura e mercado são elementos constitutivos da natureza de um mesmo corpo, é ingênuo e arcaico insistir numa distinção sistemática entre os dois.

Vamos estabelecer, juntos com todos os envolvidos na atividade, metas concretas para o resultado dessas ações, o objetivo de nosso projeto comum. Nosso desejo é o de que, até o fim desse mandato do governo do presidente Lula, se esteja produzindo no Brasil de 120 a 150 filmes por ano. Produzindo, distribuindo e exibindo nossos filmes. Temos certeza de que, com trabalho e racionalidade, essa é uma meta perfeitamente viável.

O cinema contemporâneo está baseado em uma nova economia que não é mais aquela dos grandes estúdios do passado, nem a da aventura solitária de alguns pioneiros corajosos. Hoje, para os incipientes cinemas nacionais que precisam se impor em seus próprios países, o nó do sistema é a distribuição dos filmes e sua conseqüente difusão.

Continuaremos a incentivar a política de associação com as grandes distribuidoras que já cooperam, através do artigo terceiro da Lei do
Audiovisual, com a produção e a distribuição de filmes nacionais, alguns deles com enorme sucesso de público e prêmios internacionais. Mas vamos estimular também o surgimento de distribuidoras nacionais que, pela qualidade e quantidade de filmes em seu catálogo, possam vir a ter presença e peso no mercado, diversificando e multiplicando as
oportunidades. Este estímulo poderá vir através do fortalecimento de
empresas já existentes, e também através do incentivo à associação entre distribuidores e produtores nacionais que se consorciem com essa
finalidade. A distribuição é tão estratégica para nós que não descartamos nem receamos a intervenção direta do Estado nesta área. O que não podemos permitir é a continuidade da situação atual em que à produção cinematográfica nacional não corresponde a necessária capacidade de distribuição.

Nessa mesma questão da distribuição, não podemos desprezar a vocação internacional da atividade cinematográfica. Mesmo que o Brasil seja hoje, por sua dimensão, tamanho da população e estágio econômico, um dos poucos países do mundo em que se pode montar uma indústria de cinema contando apenas com o potencial de seu mercado interno. A internacionalização de nossos filmes deve passar por uma integração com os países do continente, nossos vizinhos. E, sobretudo, a partir do Mercosul, através de convênios e acordos, como o que já está sendo assinado entre nós e a Argentina, neste mesmo mês de agosto.

Uma parceria saudável e produtiva entre cinema e televisão é também indispensável ao crescimento e fortalecimento do cinema brasileiro. Sem
ela, as duas partes têm tudo a perder.

Não podemos olvidar o fato de que a televisão é basilar na relação do audiovisual com a sociedade como um todo, onde a maioria está tecnicamente fora do mercado porque não tem dinheiro para comprar um
ingresso de cinema e muito menos para acessar um canal de tv a cabo, que é onde se pode ver ocasionalmente cinema nacional. Ou porque, mesmo tendo dinheiro para comprar um ingresso, mora no interior ou na periferia urbana e está longe dos cinemas que, ocasionalmente, exibem filmes brasileiros.

Na construção desta indispensável e inadiável parceria estaremos trabalhando para a expansão da televisão pública, tanto no que se refere ao espaço físico quanto ao conteúdo, para um novo patamar de
responsabilidade social da televisão privada. Vamos reunir os
interessados e criar mecanismos que permitam a participação de todas as emissoras e redes de televisão na produção, exibição e promoção de filmes brasileiros, atendendo às demandas de ambas as partes da parceria. Para isso, criaremos um forum de discussão entre representantes do cinema e da televisão, para que a parceria não nasça de imposições de qualquer um dos lados, o que a estaria condenando ao fracasso de seguidas contestações e de uma conseqüente vida curta.

A idéia e a disposição que nos anima é levar o cinema, o vídeo e demais expressões audiovisuais ao maior número possível de brasileiros, ao maior número que possamos alcançar com nosso esforço e nossa dedicação. Exibir filmes brasileiros para as comunidades mais afastadas e apartadas do país, nos rincões mais carentes, nas periferias das grandes cidades, na selva, no cerrado, no agreste, nas fronteiras, nos gerais.

Em todos os aspectos da atividade econômica, nenhuma dessas medidas desejadas terá sentido, se não permitirem que todos possam se manifestar, numa produção complexa e plural, feita a partir da diversidade e da grandeza que caracterizam o nosso país. Como já disse antes, é preciso que se façam filmes de todas as tendências, formatos, gerações e regiões.

Um cinema que esteja à altura da vocação plural e democrática do Brasil.

Para isso, a próxima vinda da ANCINE para o Ministério da Cultura, completando o quadro de reestruturação pela qual nosso Ministério acaba
de passar, será decisiva para o deslanche dessa política de consolidação das vitórias já alcançadas pela televisão e pelo cinema nacional e da pavimentação de sua estrada para o futuro. Passaremos a contar, nesse novo quadro, com a Secretaria do Audiovisual, que está sendo potencializada e re-batizada como Secretaria para o Desenvolvimento das Artes Audiovisuais, dedicada ao desenho das políticas públicas para o universo audiovisual, com o norteamento das ações do setor pelo Conselho Superior de Cinema, composto por sete ministros e por representantes da atividade e da sociedade civil, e sua execução pela Agência Nacional de Cinema, a Ancine, que está sendo transmutada para a abrangência cinema-televisão (e outros conteúdos audiovisuais) da Ancinav, Agência Nacional do Audiovisual.

Segundo informações recentes publicadas, o mercado de cinema no Brasil, incluindo filmes americanos e de outras nacionalidades, cresceu 17% (dezessete por cento) no primeiro semestre de 2003, em relação ao
mesmo período do ano passado. Mas o crescimento do público de filmes
brasileiros, nesse mesmo primeiro semestre, foi de 236% (duzentos e
trinta e seis por cento). É mais do que gritante o significado desses
números, quando comparados. É impossível qualquer tergiversação sobre nossa capacidade de produzir filmes excelentes e amados pelo público, sempre que se dá a nossos cineastas condições para fazê-lo. Ou mesmo quando essas condições são precárias, como reconhecemos que ainda são.

Não estamos aqui hoje para prometer o futuro para amanhã de manhã. Há muito o que fazer. O governo do presidente Lula e o nosso ministério o farão sempre ouvindo a sociedade de um modo geral, todos os agentes
econômicos da atividade e sobretudo os profissionais do cinema brasileiro e suas entidades representativas. Esses profissionais são os responsáveis pelos filmes que estão gerando tanta esperança, os herdeiros dessa heróica resistência cinematográfica que já tem uma história mais que secular.

Segundo Paulo Emílio Salles Gomes, um dos grandes teóricos de nosso cinema, o brasileiro sempre esteve dividido entre o não-ser e o ser-o-outro, isso refletindo-se em nossa cultura. Hoje, temos consciência de que precisamos assumir nossa própria identidade, em todas as suas
múltiplas formas. E o cinema e a televisão são instrumentos indispensáveis a esse projeto. Contamos com todos para, com nosso trabalho comum, tornar realidade o sonho de Mário Peixoto e de Humberto Mauro, de Lima Barreto e de Alberto Cavalcanti, de Glauber Rocha e de Walter Hugo Khoury, entre tantos outros que ajudaram a escrever essa história da qual a cultura brasileira tem muito do que se orgulhar.

Este é o sonho, este é o objetivo, esta é a meta. O que temos de fazer, povo e governo brasileiros, porque podemos fazer, é materializar sonhos. Vamos materializar juntos este, o de um cinema que reflita a dimensão de nossa grandeza cultural, territorial e econômica, de uma expressão audiovisual que reflita e energize nossa consciência de
nacionalidade e nossa soberania, que apresente com luz própria, para nós e para mundo inteiro, a nossa maneira brasileira de ser."

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