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22/10/2003 - 03h34

Faceta independente do cinema argentino revela-se em "La Cruz del Sur"

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SYLVIA COLOMBO
editora-adjunta da Ilustrada

Bem agora que o público brasileiro já estava começando a se acostumar com um cinema argentino urbano e emotivo, voltado às agruras das famílias de classe média portenha e de grande potencial comercial, eis que surge um filme que destoa e incomoda.

Com a estréia hoje na 27ª Mostra Internacional de Cinema de "La Cruz del Sur", de Pablo Reyero, São Paulo experimentará a faceta mais independente --e menos afeita a fazer concessões-- da produção do país vizinho.

Dessa mesma estirpe, já foi exibido em rara apresentação por aqui o claustrofóbico "La Ciénaga", de Lucrecia Martel, uma investigação sobre o torpor em que a sociedade argentina se enterrou em meio à falta de perspectivas.

Em "La Cruz del Sur", um trio de marginais vive seus últimos dias entre o desespero de realizar seus últimos desejos e a certeza da morte violenta que os aguarda.

Javier, Nora --um casal-- e Wendy --irmão travesti de Javier-- roubam uma carga de pó de um barco atracado num porto isolado no sul da costa Argentina.

Enganados por quem receberia a encomenda, saem em uma fuga desesperada para se desfazer da droga e conseguir por ela algum dinheiro. Refugiam-se por uns dias na casa dos pais dos dois irmãos, que vivem num balneário abandonado, erigido pelos militares durante a ditadura e logo abandonado pelos mesmos.

O pai de Javier e Wendy imagina que pode salvar o lugar e transformá-lo num lucrativo destino turístico. A mãe duvida e crê que esqueletos históricos enterrados sob sua casa a amaldiçoam.

Javier acha que pode alcançar o Paraguai e lá se tornar um bandido famoso. Nora quer ter um filho que salve sua existência da aniquilação total. Busca também, na longa estrada costeira, a cruz que indica o lugar em que seu pai foi enterrado nos anos 70. Já Wendy quer superar a rejeição paterna.

Pouquíssimos diálogos deixam lugar para os longos silêncios e o incessante barulho das ondas do mar e do vento. A natureza ameaçadora e sempre presente é um aviso de morte para os três marginais. O road movie melancólico e angustiante é o primeiro longa de Reyero, que realizou antes dois documentários, entre eles o premiado "Dársena Sur" (97).

"La Cruz del Sur" foi finalista do último concurso de roteiros de Sundance e recebeu o prêmio de melhor diretor jovem no Festival de Cannes, neste ano. É exibido agora em São Paulo antes mesmo de estrear na Argentina.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista que Reyero, 37, deu à Folha, de Buenos Aires.

Folha - O que é a "cruz"?

Pablo Reyero -
O interessante dessa metáfora é que não se refere a um sentido único, mas lança vários sentidos possíveis: a cruz de viver no sul, a cruz de carregar um passado sinistro de dezenas de milhares de desaparecidos, a cruz de cada drama pessoal, a constelação do Cruzeiro do Sul, que serve de guia aos marinheiros, a morte entrelaçada com a vida permanentemente. Mas prefiro que cada espectador lhe dê seu próprio significado.

Folha - Há uma sensação clara, desde o princípio do filme, de que o trio protagonista está marcado pelo infortúnio. A idéia de fatalidade o preocupou desde o começo?

Pablo Reyero -
"La Cruz del Sur" é uma tragédia, e como toda tragédia não importa tanto o desenlace --que se pode intuir desde o começo--, mas as motivações e ações dos personagens que se rebelam contra esse destino trágico. Mas o filme é também um cruzamento de gêneros, policial noir, drama familiar, road movie.

Folha - O cinema argentino contemporâneo tem como característica tratar muito de temas urbanos. Seu filme destoa dessa tendência. Por quê?

Reyero -
Minha família é da região onde fiz "La Cruz del Sur". O filme me fez voltar a lugares da infância e me permitiu também realizar outro sonho, filmar junto ao mar que acompanhou meu crescimento e que continua sendo para mim uma fonte inesgotável de energia renovadora.
Desde 1992, quando comecei a fazer documentários, sempre abordei temas, conflitos e pessoas marginais ao "sistema", ainda que transcorressem em uma grande cidade, como Buenos Aires. Desde então sentia que fazer um filme que se passasse na costa atlântica era algo que me faltava, assim como trabalhar com atores que habitassem aquela zona.

Folha - Todos os personagens se encontram afastados da sociedade, num universo onde parece existir uma espécie de código moral próprio. Você concorda?

Reyero -
Creio que através dos protagonistas o filme mostra um cenário de crise total e de ruptura de certos códigos de honra e solidariedade que as gerações anteriores respeitavam --ainda entre os delinquentes-- e que as novas gerações não seguem.

É um "salve-se quem puder" dentro de uma crise geral de valores que alcança a todos os estratos da sociedade, algo que não apenas acontece nos nossos países da América do Sul, mas que considero ser um fenômeno mundial.

Folha - Sua maneira de filmar é muito direta, ao mesmo tempo em que segue a ação como se a tensão da história contaminasse a própria câmera. Como concebeu o filme?

Reyero -
Fiz com que as manifestações da natureza transformassem os caráteres dos personagens, tornando-os imprevisíveis e de reações inesperadas. A câmera devia estar em função do que se passava nas situações em foco e nas cabeças dos protagonistas.

Tratei de integrar a câmera como se fosse um personagem, movendo-se de acordo com o fluir de energia e da lógica interna de cada cena. Por isso no filme há aproximadamente 90% de câmera na mão e muitos planos-sequência.

Folha - Em quem você se inspira?

Reyero -
Tarkovsky, Herzog, Flaherty... Cada história leva implícita a maneira mais adequada de ser contada, só é preciso saber escutá-la e concretizá-la. Isso é o mais difícil, pois nos tornamos escravos das histórias que narramos.

Folha - Fala-se muito de um "novo cinema argentino", mas existem diferenças entre o que fazem hoje diretores como Campanella ou Piñeyro --um cinema mais comercial e "europeu"-- e pessoas como você e Lucrecia Martel. Há dois cinemas argentinos hoje?

Reyero -
A partir de meados da década de 90 foi se tornando evidente na Argentina a existência desses dois modelos de produção: um "mainstream" e outro mais independente. Creio que é fundamental superar a antinomia entre esses dois modelos mediante uma política regulatória que fomente o desenvolvimento de ambos, que não deveriam ser opostos, mas complementares.

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